segunda-feira, 27 de março de 2023

Quando a liberdade dói..


Quando a liberdade dói...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não foi só mais um episódio de violência em ambiente escolar 1, no Brasil. Como não é nos EUA 2 ou em qualquer outro lugar. Como não é uma questão de acesso ou não à arma de fogo/arma branca. O que se tem bem diante dos olhos ultrapassa a linha do visível materializado pela violência, para mergulhar nas profundezas de uma discussão difícil e indigesta, em uma sociedade que nutre um encantamento desmedido pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

Enquanto o país se digladia discursivamente sobre uma legislação mais incisiva a respeito das Fake News, a alienação promovida e disseminada pelos instrumentos criados pelas TICs confunde a consciência coletiva quanto ao fato de que vigora, através do Código Penal brasileiro (Decreto-Lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940) 3, a punição quanto à incitação ao crime (art. 286) 4 e à apologia de crime ou criminoso (art. 287) 5.

Portanto, o país já dispõe no seu arcabouço jurídico de instrumentos importantes para atuar sobre esse fenômeno contemporâneo tão socialmente destrutivo.  De modo que a fragilização percebida advém maciçamente do desconhecimento e da baixa fiscalização dos conteúdos, pelas autoridades competentes, ou seja, tudo aquilo que transita freneticamente pelos espaços da web e da deep web acaba passando despercebido, voluntária ou involuntariamente, por quem deveria estar atento.

Considerando que o público alvo das TICs, no que diz respeito à produção, à disseminação e ao consumo dos conteúdos e produtos oriundos delas, é justamente a geração Z, aquela que por definição sociológica contempla pessoas nascidas entre 1995 e 2010, e a posterior a ela, ainda sem denominação específica, é de extrema importância conhecer a tecitura dialógica e ideológica que forma a construção identitária e de valores, crenças e convicções desses indivíduos.

Afinal, são milhares de seres humanos que orbitam contemporaneamente o mundo virtual e não o contrário. Enquanto a sociedade se preocupa com inúmeras drogas ilícitas e lícitas no curso da dinâmica cotidiana, sob diferentes frentes de problematização, não se observa quaisquer sinais de discussão ou reflexão sobre o efeito deletério da alienação tecnológica no campo da saúde mental, no mundo contemporâneo.

Não se trata só da quantidade de horas à frente das telas; mas, da qualidade do que é oferecido por elas. Portanto, chega de romantizar a tecnologia! Infelizmente, ela se tornou sim, um catalisador potente para a exacerbação das mais diferentes expressões da violência humana. Uma verdadeira arena de duelos extremos, em que não escapam, até mesmo, renomados veículos de comunicação e informação, quando se colocam à disposição de fomentar essas violências, ainda que de maneira sutil e quase velada.

A formação de grupos em redes sociais é uma das manifestações mais claras desse efeito manada imposto pelas ideologias alienantes. Basta que alguém exerça o papel de multiplicador de uma ideia, para que esta seja acolhida e propagada sem contestação em face do próprio ajustamento ideológico preexistente, que deu origem aquele grupo.  O que o efeito manada propõe é a legitimação de uma verdade a partir do silenciamento crítico. Não há discordância. Não há contestação.  

Então, quando um (a) aluno (a) invade uma instituição de ensino, por exemplo, e atenta contra à vida de colegas, professores e funcionários, por mais pretextos plausíveis sejam por ele (a) apresentados, isso é só espuma. O que leva alguém a uma violência nesse nível é algum indício de legitimação social, que geralmente provém do universo virtual, com seus grupos, suas redes de bate-papo. É nesse espaço que o (a) autor (a), através de intensa interação, delineia o passo a passo para transformar uma intenção em ação.  No fundo, é como se o lobo solitário precisasse da aprovação e do suporte da alcateia para se mostrar capaz de fazer.

Em alguns casos, esses comportamentos são utilizados como uma senha de ingresso para pertencer àquele núcleo social. Um tipo de batismo criminoso, para demonstrar a extensão de até onde se pode chegar para ser considerado apto a estar naquele contexto social. O que prova a importância de se conhecer mais profundamente essa complexa teia tecnológica, em termos do que é produzido no seu universo dialógico.

Não é de hoje que a história da humanidade é repleta de registros a respeito da influência da comunicação tendenciosamente desvirtuada de valores éticos e morais; mas, a realidade contemporânea é muito mais avassaladora porque não precisa de espaços concretos, apenas o tempo infinito. Isso sem contar o fato de que dispensa muitas vezes de recursos humanos para efetuar suas ações pela tecnologia em si.

Segundo Yuval Noah Harari, “Quando derrubamos os muros da nossa prisão e corremos para a liberdade, estamos na verdade correndo para o pátio de uma prisão maior”. O mundo contemporâneo mercantiliza, a todo instante, a ideia de que somos livres para decidir, para escolher, para fazer e acontecer. Em tese, porque na prática viver implica em limites; portanto, livres só até a página dois, ok?

No entanto, o mundo virtual ainda permanece um espaço social que permite essa crença de liberdade infinita, porque seus limites parecem sim, demasiadamente flexíveis e mutantes. O que nos leva a esquecer de que “Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois” (Zygmunt Bauman).

Daí a necessidade urgente de se conhecer em profundidade o que circula nos ambientes tecnológicos contemporâneos. Só assim, é que se pode traçar estratégias eficazes e contundentes no campo da segurança virtual, da educação cidadã e da saúde, especialmente, a saúde mental. Sem ir ao cerne do problema, que é o cenário tecnológico, as autoridades não resolverão nada. Afinal, o problema não é só a arma na mão do indivíduo; mas, também, esse tipo de arma subjetiva e imaterial que vem deflagrando a violência no consciente e inconsciente social sob o pretexto da liberdade.   



4 Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.

5 Art. 287 – Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa. 

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