Quando
a liberdade dói...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não, não foi só mais um episódio
de violência em ambiente escolar 1, no
Brasil. Como não é nos EUA 2 ou em
qualquer outro lugar. Como não é uma questão de acesso ou não à arma de
fogo/arma branca. O que se tem bem diante dos olhos ultrapassa a linha do
visível materializado pela violência, para mergulhar nas profundezas de uma
discussão difícil e indigesta, em uma sociedade que nutre um encantamento
desmedido pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).
Enquanto o país se digladia
discursivamente sobre uma legislação mais incisiva a respeito das Fake News, a
alienação promovida e disseminada pelos instrumentos criados pelas TICs confunde
a consciência coletiva quanto ao fato de que vigora, através do Código Penal
brasileiro (Decreto-Lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940) 3, a punição quanto à incitação ao crime
(art. 286) 4 e à apologia de crime ou
criminoso (art. 287) 5.
Portanto, o país já dispõe no seu
arcabouço jurídico de instrumentos importantes para atuar sobre esse fenômeno
contemporâneo tão socialmente destrutivo.
De modo que a fragilização percebida advém maciçamente do
desconhecimento e da baixa fiscalização dos conteúdos, pelas autoridades
competentes, ou seja, tudo aquilo que transita freneticamente pelos espaços da
web e da deep web acaba passando despercebido, voluntária ou involuntariamente,
por quem deveria estar atento.
Considerando que o público alvo
das TICs, no que diz respeito à produção, à disseminação e ao consumo dos
conteúdos e produtos oriundos delas, é justamente a geração Z, aquela que por
definição sociológica contempla pessoas nascidas entre 1995 e 2010, e a
posterior a ela, ainda sem denominação específica, é de extrema importância
conhecer a tecitura dialógica e ideológica que forma a construção identitária e
de valores, crenças e convicções desses indivíduos.
Afinal, são milhares de seres
humanos que orbitam contemporaneamente o mundo virtual e não o contrário.
Enquanto a sociedade se preocupa com inúmeras drogas ilícitas e lícitas no
curso da dinâmica cotidiana, sob diferentes frentes de problematização, não se
observa quaisquer sinais de discussão ou reflexão sobre o efeito deletério da
alienação tecnológica no campo da saúde mental, no mundo contemporâneo.
Não se trata só da quantidade de
horas à frente das telas; mas, da qualidade do que é oferecido por elas.
Portanto, chega de romantizar a tecnologia! Infelizmente, ela se tornou sim, um
catalisador potente para a exacerbação das mais diferentes expressões da
violência humana. Uma verdadeira arena de duelos extremos, em que não escapam,
até mesmo, renomados veículos de comunicação e informação, quando se colocam à
disposição de fomentar essas violências, ainda que de maneira sutil e quase
velada.
A formação de grupos em redes
sociais é uma das manifestações mais claras desse efeito manada imposto pelas
ideologias alienantes. Basta que alguém exerça o papel de multiplicador de uma
ideia, para que esta seja acolhida e propagada sem contestação em face do
próprio ajustamento ideológico preexistente, que deu origem aquele grupo. O que o efeito manada propõe é a legitimação
de uma verdade a partir do silenciamento crítico. Não há discordância. Não há
contestação.
Então, quando um (a) aluno (a)
invade uma instituição de ensino, por exemplo, e atenta contra à vida de
colegas, professores e funcionários, por mais pretextos plausíveis sejam por
ele (a) apresentados, isso é só espuma. O que leva alguém a uma violência nesse
nível é algum indício de legitimação social, que geralmente provém do universo
virtual, com seus grupos, suas redes de bate-papo. É nesse espaço que o (a)
autor (a), através de intensa interação, delineia o passo a passo para
transformar uma intenção em ação. No
fundo, é como se o lobo solitário precisasse da aprovação e do suporte da
alcateia para se mostrar capaz de fazer.
Em alguns casos, esses
comportamentos são utilizados como uma senha de ingresso para pertencer àquele
núcleo social. Um tipo de batismo criminoso, para demonstrar a extensão de até
onde se pode chegar para ser considerado apto a estar naquele contexto social.
O que prova a importância de se conhecer mais profundamente essa complexa teia
tecnológica, em termos do que é produzido no seu universo dialógico.
Não é de hoje que a história da
humanidade é repleta de registros a respeito da influência da comunicação
tendenciosamente desvirtuada de valores éticos e morais; mas, a realidade
contemporânea é muito mais avassaladora porque não precisa de espaços
concretos, apenas o tempo infinito. Isso sem contar o fato de que dispensa
muitas vezes de recursos humanos para efetuar suas ações pela tecnologia em si.
Segundo Yuval Noah Harari, “Quando derrubamos os muros da nossa prisão
e corremos para a liberdade, estamos na verdade correndo para o pátio de uma
prisão maior”. O mundo contemporâneo mercantiliza, a todo instante, a ideia
de que somos livres para decidir, para escolher, para fazer e acontecer. Em
tese, porque na prática viver implica em limites; portanto, livres só até a
página dois, ok?
No entanto, o mundo virtual ainda
permanece um espaço social que permite essa crença de liberdade infinita,
porque seus limites parecem sim, demasiadamente flexíveis e mutantes. O que nos
leva a esquecer de que “Segurança sem
liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos,
incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então
você precisa dos dois” (Zygmunt Bauman).
Daí a necessidade urgente de se conhecer em profundidade o que circula nos ambientes tecnológicos contemporâneos. Só assim, é que se pode traçar estratégias eficazes e contundentes no campo da segurança virtual, da educação cidadã e da saúde, especialmente, a saúde mental. Sem ir ao cerne do problema, que é o cenário tecnológico, as autoridades não resolverão nada. Afinal, o problema não é só a arma na mão do indivíduo; mas, também, esse tipo de arma subjetiva e imaterial que vem deflagrando a violência no consciente e inconsciente social sob o pretexto da liberdade.
1 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/27/professores-e-alunos-sao-esfaqueados-dentro-de-escola-estadual-na-zona-sul-de-sp-diz-pm.ghtml
4 Art. 286 –
Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis
meses, ou multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita,
publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes
constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.
5 Art. 287 – Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.