quinta-feira, 30 de março de 2023

Enquanto o mundo derrete...


Enquanto o mundo derrete...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Será que o mundo pode mesmo flertar com a ideia de uma nova Guerra Fria? Divergindo da música, “não somos os mesmos” 1! Ainda que paire no ar um certo saudosismo blasé, não se pode negar que o planeta, as conjunturas socioeconômicas, os valores, as crenças, as convicções e os comportamentos contemporâneos são, por si só, o contraponto necessário para desconstruir qualquer ideia de jerico em relação ao recorte temporal estabelecido entre 1947 e 1991.

Mas, particularmente, penso que tantas diferenças se aprofundam ainda mais, quando paramos para refletir sobre o recente assombro pandêmico que se abateu pelo mundo, e tirou de esquadro a velha ideia da existência de uma zona de conforto. De 1947 para cá, muita água rolou por debaixo da ponte do mundo contemporâneo e certas discussões que podiam aguardar por uma decisão no prazo de décadas, agora, batem à porta raivosamente esperando por uma solução. Um doce para quem pensou nas mudanças extremas do clima!

Então, quando vejo analistas debatendo nos espaços dos veículos de comunicação e de informação a respeito dessa hipótese, fico pensando se nenhum deles se deu conta de que por baixo dessa espuma de rusgas diplomáticas está um mundo à beira do caos, que chega à revelia dos humores governamentais. Pois é, o cenário das prioridades, urgências e emergências extrapola os limites da beligerância geopolítica, ou da polarização entre democratas e autocratas. Basta um piscar de olhos para que seja necessário voltá-los para assuntos realmente relevantes para a sobrevivência humana na Terra.

Enquanto a governabilidade global se equilibra protegendo seus imensos telhados de vidro, registros bem detalhados de tudo aquilo que fizeram nos seus verões passados, 8 bilhões de seres humanos nem imaginam, por exemplo, “porque o vírus H5N1 preocupa cientistas e pode causar próxima pandemia” 2, ou “131 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe não têm acesso a uma dieta saudável” 3, ou o desemprego global atingirá 208 milhões de pessoas em 2023 4, ou “Brasil é o 4º país do mundo em assassinatos de defensores dos direitos humanos e do meio ambiente” 5, ...

Simplesmente, porque as questões que realmente afetam e atravessam o cotidiano populacional, perdem espaço nas frentes de comunicação e informação para publicizar e reafirmar notícias que apontam exatamente para a desimportância que a sobrevivência de milhões de seres humanos tem para seus governantes. É quase um culto egóico do narcisismo das grandes lideranças globais em detrimento das demandas, dos anseios, das expectativas de uma gigantesca população. O que acaba se tornando uma densa nuvem de fumaça a colaborar com a inação e a negligência em torno daquilo que realmente importa no e para o mundo.

E quanto mais visibilidade é dada pelos veículos de comunicação e de informação para essa ínfima minoria, mais ela utiliza de retóricas frágeis, embora variadas, para entreter as mídias. São ameaças veladas (ou não). São Fake News para elevar as tensões.  São encontros bilaterais de ocasião. São exercícios militares fora de hora. Enfim... Enquanto, o planeta prende a respiração a cada sobressalto, como quem assiste ao salto mortal do trapezista no circo.

Portanto, por mais que digam e falem, na busca de resgatar uma guerra fria que há muito já esfriou, a verdade é que temos nos tornado plateia que bate palmas para maluco dançar. Deixando de cobrar, a quem de direito, questões importantes como a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça enquanto valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos que, pelo menos em tese, está fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional 6. Pois são elas que representam o tênue limiar entre a vida e a morte que pulsa dentro de cada um de nós.