Insegurança
Alimentar. Insegurança Cidadã.
Por
Alessandra Leles Rocha
O retorno triunfante do Brasil ao
mapa da fome global não é problema apenas de quem sofre com a barriga vazia;
pois, não há vida que sobreviva sem alimentos. De modo que não dá para lançar
sob o tapete da história nacional esse fenômeno deplorável!
Ainda que a insegurança alimentar
não seja privilégio exclusivo do país, já é tempo de ela ampliar as fronteiras
da discussão e da reflexão dentro da sociedade brasileira, tendo em vista ela
significar a inacessibilidade a uma alimentação em quantidade e qualidade
suficientes para garantir a sobrevivência humana.
Mas, por quê? Bem, geralmente, as
pessoas tendem a pensar primeiramente sobre o aspecto quantitativo, quase que
movidas pela imagem do prato vazio. A insuficiência é, de certa forma, um
componente imediatista da fome; sobretudo, quando se depara com famílias
inteiras que precisam fracionar os alimentos a quantidades tão ínfimas, que são
incapazes de garantir o mínimo de refeições diárias por indivíduo.
O que se materializa a partir de
contingentes populacionais esquálidos, doentes, profundamente fracos, em razão
da quantidade de alimentos insuficiente para suprir suas demandas fisiológicas
básicas, tornando-se uma porta aberta para o oportunismo de inúmeras doenças.
Seus corpos não conseguem se manter e, nem tampouco, se defender das
intercorrências patológicas.
E aí, diante desse cenário, emerge
a situação de se tentar suprir a insuficiência quantitativa desconsiderando a
qualitativa. Primeiro, porque os alimentos in
natura são mais caros do que os industrializados 1;
afinal de contas, sua produção requer investimentos elevados de produção, tais
como tratores, equipamentos, fertilizantes, sementes, controle de pragas e
novas tecnologias.
Sem contar, também, que esses
produtos têm um prazo de validade menor, que os torna mais susceptíveis a
perda. Toneladas acabam perdidas, diariamente, no trânsito entre a produção e a
comercialização em face de fatores ambientais como calor, chuva, granizo, e de
problemas na embalagem e conservação.
Assim, o resultado dessa
realidade tem ajudado a tecer a narrativa da indústria alimentícia sobre as
vantagens dos produtos processados e ultraprocessados. Eliminando boa parte dos
inconvenientes da produção in natura,
eles conseguem uma redução de custos expressiva que se reflete no preço final
ao consumidor.
No entanto, as práxis que são
empregadas trabalham na contramão da salubridade humana, porque se baseiam em
técnicas que lançam mão de uma série de conservantes, corantes, acidulantes,
aromatizantes, emulsificantes, estabilizantes, espessantes, adoçantes, que tem
um imenso potencial em causar desde alergias até doenças cardiovasculares,
gástricas e câncer.
Portanto, seja no Brasil ou em
qualquer outra parte do mundo, a grande questão que se impõe sobre os alimentos
é o enfrentamento do desafio entre a segurança alimentar e os custos de
acessibilidade aos alimentos. Sim, porque de um jeito ou de outro, o que parece
senso comum é o descaso em relação à saúde, o bem-estar e o desenvolvimento
humano.
Infelizmente, a produção de
alimentos no mundo ainda resiste a se constituir com base na Economia Verde, ou
seja, ela se desenvolve exacerbando as desigualdades, incentivando o
desperdício, desencadeado a escassez de recursos e gerando ameaças ao meio
ambiente e à saúde humana, através do uso excessivo de agentes químicos.
Não é à toa que depois da
avalanche de liberações de diferentes tipos de agrotóxicos no país 2, fomos surpreendidos recentemente com a
dispensa da obrigatoriedade dos produtores de informar o prazo de validade em
vegetais frescos embalados, publicada pelo Ministério da Agricultura 3. É importante entender que isso não é
pouca coisa não! No caso de alimentos, por exemplo, a ingestão fora do prazo de
validade pode sim, resultar em intoxicações e infecções causadas por bactérias
e fungos, os quais podem inclusive levar à morte.
Definitivamente, então, o que
está em jogo não é a segurança alimentar do brasileiro! Todas as decisões que
vêm sendo tomadas, especialmente nos últimos quatro anos, dizem respeito aos
interesses econômicos, favorecendo a um exponencial adoecimento da população;
sobretudo aquela pertencente as camadas sociais mais vulneráveis e
desassistidas.
Isso porque as causas da
insegurança alimentar no país são traçadas pelo arranjo da realidade composta
pela escassez de alimentos, mudanças climáticas, problemas de abastecimento,
produção insuficiente, incapacidade econômica de aquisição, pobreza e preços
elevados. De modo que na escala de prioridades estabelecida pela atual gestão
pública, a garantia de lucros para o setor produtivo e de comercialização está anos
luz à frente da segurança alimentar dos cidadãos.
Assim, antes de se limitar a pensar apenas sobre um viés em relação à questão da fome, abra sua mente e amplie seus horizontes inspirando-se em “Comida” (1987)4, dos Titãs. Afinal, ela traça com total propriedade a dimensão da nossa miséria, cujo prato e a panela vazios são apenas a ponta do iceberg de uma condição social que se requenta há séculos no país. De modo que nosso quadro de insegurança alimentar é só um lado do prisma da nossa insegurança cidadã.
1 https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/01/29/alimentacao-saudavel-sera-mais-cara-do-que-a-nao-saudavel-a-partir-de-2026.htm
2 https://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/2022/03/governo-bolsonaro-liberou-mais-de-um-agrotoxico-por-dia/