Negar.
Negação. Negacionismo. ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não se trata de simples
impressão, cada dia mais o Brasil se mostra como de fato está, fragmentado,
dividido. Uma linha torta que separa a defesa e a contestação de um projeto de
poder ancorado na premissa da negação. Negar é a palavra de ordem, porque dessa
forma é possível mascarar, ocultar, desviar a atenção de todos aqueles que não se
permitem enveredar por esse tipo de “cegueira
coletiva”. Então, ainda que não seja uma cisão homogênea, nem por isso, ela
é menos importante.
O que se tem presenciado nesses
longos meses pandêmicos é só uma fração do que esse movimento em curso pretende
em relação aos 94% da população brasileira, que representam a classe média
tradicional e a classe baixa respectivamente. O negacionismo imposto à gestão
da Pandemia no país conseguiu, até agora, ceifar quase 600 mil vidas, as quais
em torno de dois terços delas poderiam ter sido poupadas, se as medidas sanitárias
preventivas tivessem sido cumpridas adequadamente e a imunização ocorrido de
maneira satisfatória e precocemente.
Com a luz lançada pela Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada pelo Senado, agora se conhece a rede
de interesses e poderes escondida nas entrelinhas dessa história. Um enredo sórdido,
macabro, abjeto, que surpreenderia os mais renomados roteiristas do cinema
mundial. Mas, quando se amplia o olhar e a reflexão para o todo cotidiano,
milhares de fios que pareciam soltos em outras searas da vida nacional começam
a se conectar e trazer à tona as infinitas possibilidades de atentar contra a sobrevivência
e a dignidade de milhões de brasileiros.
As manchas de óleo que invadiram
o litoral brasileiro, sobretudo na região Nordeste, em 2019, por exemplo, jamais
foram devidamente esclarecidas, os culpados responsabilizados e os danos para a
população contabilizados e ressarcidos. Mas, um prejuízo enorme ao turismo da
região, ao trabalho dos pescadores e tantas outras atividades econômicas, se
propagou em ondas durante todo esse tempo, sem que ninguém desse a devida
visibilidade a respeito.
Afinal, também, desde 2019, o Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) que poderia prover algum auxílio para quem foi
afetado pelo ocorrido, encontrava-se literalmente de “cabeça para baixo”, dada
a reestruturação do serviço previdenciário e a precarização do trabalho
prestado pelos servidores, proposta pelo atual governo federal. A carência de
funcionários para atendimento e realização das etapas dos processos de análise
e liberação de benefícios paralisou os serviços, deixando milhares de
brasileiros na mais completa desassistência.
Aliás, as pilhas de solicitações
permanecem se acumulando nos postos do INSS em todo o país, o que significa que
milhões de pessoas estão lançadas à total indignidade, esperando uma solução
para suas demandas. Em outros casos, muitas respostas tendem a não encontrar o
beneficiário vivo, em virtude da demasiada demora de atendimento.
Uma questão que acende o alerta
sobre as estatísticas do desemprego nacional; pois, dentro de um conjunto de
regras estabelecidas pelo governo federal há a possibilidade, para
trabalhadores registrados, de requisição do Seguro Desemprego. Um auxílio em
dinheiro pago de três a cinco parcelas de forma contínua ou alternada, de
acordo com o tempo trabalhado. Quanto mais difícil se torna requerer esse benefício,
mais se sobrecarrega a realidade da pobreza e da miséria, em franca expansão no
país.
Afinal, segundo dados do Cadastro
Único (CadÚnico) do governo federal, “Pelo
menos 2 milhões de famílias brasileiras tiveram a renda reduzida e caíram para
a extrema pobreza entre janeiro de 2019 e junho deste ano” 1. E diante do retorno voraz da inflação,
com o preço dos combustíveis e do gás de cozinha, pela hora da morte, somado as
constantes elevações no custo da cesta básica e da energia elétrica, a possibilidade
de pessoas não conseguirem sobreviver por muito tempo é cada vez mais real.
Como disse o próprio Presidente
da República, há dois dias, “nada está
tão ruim que não possa piorar”2. Assim,
no que diz respeito à queima e ao desmatamento avassalador dos principais
biomas, eles não são só uma política ambiental errática e ultrapassada. Os
impactos negativos gerados pelo efeito sistemático dessas práxis afetam
diretamente a qualidade de vida e sobrevivência da população brasileira. O ar
se torna irrespirável pela quantidade de fuligem e compostos tóxicos. Nascentes,
córregos, lagos, rios e reservatórios de água se evaporam diante da ausência de
chuvas e a elevação das temperaturas. A insegurança alimentar começa a despontar
pela escassez de alimentos; o que, em alguns casos, fomenta a “lei da oferta e da procura”, tornando-os mais caros.
De modo que uma série de
problemas de saúde começam a afetar as pessoas e a sobrecarregar os serviços de
saúde; sobretudo, a rede pública, tendo em vista que milhares de brasileiros
perderam o acesso aos planos privados, dado o alto custo de manutenção dos
mesmos. Uma rede, já sabidamente repleta de gargalos oriundos de demandas diversas
e que, agora, ainda não dispõe de uma diretriz para saber como vai atender os números
crescentes de demandas Pós-COVID, ou seja, sobreviventes da Pandemia que
apresentaram sequelas de baixa a alta complexidade durante a sua recuperação.
Além disso, a insustentabilidade
ambiental também fez emergir um grande impacto econômico sobre a energia
elétrica, tornando-a um alvo de “tarifaços”
contínuos, porque não há água suficiente para impulsionar as turbinas das
grandes usinas, o que torna necessário apelar para as termoelétricas que têm
custo de produção altíssimo. Paira sobre
a cabeça dos milhões de brasileiros, então, um risco iminente de rupturas no
fornecimento de energia, caso o equilíbrio pluviométrico e hídrico não se
restabeleça em um prazo de tempo relativamente suportável.
Até aqui, os relatos de pessoas
que tiveram as casas queimadas por conta de velas acesas para a economia, já
começam a surgir. Outras que vieram a óbito depois de se queimar utilizando
álcool como combustível para acender fogareiros a fim de cozinhar, por causa do
preço exorbitante do botijão de gás, também. Enfim, casos e mais casos de seres
humanos na fila do perigo, do “baile da
morte”, tendem a se proliferar descontroladamente. Pessoas que pelo
movimento de negação serão incluídas, sem maiores constrangimentos e esforços,
nas estatísticas do desalento e da morte.
É preciso que se entenda que
aquele que nega participação, direta ou indireta, nos negacionismos instituídos
no país, antes de qualquer coisa, nega prioritariamente o direito de muitos de
seus pares viverem com dignidade e paz. A negação não é seletiva, ela não elege
“esse ou aquele” aspecto. Ela simplesmente
nega, nega tudo. Porque o negar, na atual conjuntura, significa fortalecer seus
interesses, suas regalias, seus privilégios e, particularmente, um projeto de
poder que o beneficie.
O que importa é que a história do mundo sabe muito bem onde se chega com esse negacionismo, com essa invisibilização de seres humanos. Por isso, atenção, “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar” (Bertolt Brecht – Nada é impossível de mudar).