Estupefatos...
Por
Alessandra Leles Rocha
Apesar do espanto ter sido
inevitável, na verdade, nenhum brasileiro deveria se surpreender com o que foi
falado, hoje, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19. Informações
sobre uma eventual prática de pesquisa médica, durante a Pandemia, promovida
por uma empresa privada de Planos de Saúde, sem a anuência da Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa (CONEP) e, tampouco, dos próprios pacientes e familiares,
deixou o país perplexo. Afinal, a que ponto chegamos!
A questão é que o fio dessa meada
se estende pelo tempo. Quando a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no seu
artigo 6º que eram Direitos Sociais “ a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados”, o país assumiu a sua parcela de responsabilidade na
garantia desses instrumentos de dignidade cidadã.
Entretanto, talvez, tenha faltado
combinar com os representantes da direita nacional essa questão, pelo fato de
serem eles ardorosos defensores de políticas de liberalização econômica pautadas
em privatizações, em austeridade fiscal, em desregulamentação, em livre
comércio e, sobretudo, em cortes de
despesas governamentais com o objetivo de reforçar o papel do setor privado na
economia. O que significa um pensamento diametralmente oposto a muitos
aspectos previstos na Constituição.
No entanto, embora o Brasil seja um
país demasiadamente complexo, tais desajustes ideológicos acabaram por
encontrar um caminho para conviver. Acontece que esse “equilíbrio” precisa resistir a muitas tensões que o tornam, então,
“imperfeito”. Isso se traduz no fato
de que a influência da direita nas decisões político-sociais brasileiras é
inevitável, porque ela concentra a maioria da elite que detém o poder em
diferentes instâncias. De modo que ela consegue expandir as suas fronteiras sem
encontrar tantos desafios e obstáculos a serem superados.
O que explica as razões que vêm
conduzindo os tais Direitos Sociais a uma precarização cada vez mais acentuada,
por parte do poder público; em especial, a Educação, o Transporte e a Saúde. Os
inúmeros entraves políticos e econômicos dispostos cuidadosamente para limitar
a evolução e o progresso desses direitos, abre um caminho livre para a inserção
da iniciativa privada em vários setores da vida cotidiana brasileira.
Cansados de ver os abismos se
formarem entre a efetivação das políticas públicas e o seu acesso pela
população, os cidadãos acabam se rendendo as “miragens” que começam a se propagandear em todos os lugares. É certo
que esse movimento deixa de fora centenas de milhares de cidadãos impossibilitados
por diversas formas de inacessibilidade social. Mas, para aqueles que podem se
valer dos “pacotes de serviços”
oferecidos a preços quase módicos, se configura em uma esperança com ares de
ascensão social, na medida em que a demanda pelo serviço público parece poder
ser abandonada.
No entanto, essa “euforia momentânea” impede que essas
pessoas entendam o elementar, ou seja, que a eficiência, a suficiência e a
qualidade dos serviços prestados está diretamente atrelada ao valor pago; pois,
é assim que funciona no livre comércio. Tendo em vista que o brasileiro é um
eterno assinante de contratos sem leitura prévia, o imbróglio acaba se tornando
mais perverso e complexo, dadas aquelas letrinhas miúdas nos rodapés e um
amontoado de informações da boca para fora não formalizadas pelo documento.
O resumo dessa ópera acabou acontecendo,
então, meio que à revelia de todos, quando explodiu a Pandemia do Sars-Cov-2.
Não fosse o Sistema Único de Saúde não ter sido desmantelado e desconfigurado
totalmente, como era a pretensão de muitos no atual governo federal, o colapso
da rede de saúde teria encontrado um desfecho ainda mais aterrorizante.
Com a ideia de que estavam a
salvo pelos planos de saúde, as pessoas não contavam com a possibilidade de uma
saturação dos atendimentos na rede privada, como aconteceu. Foi o suporte da
rede pública que ajudou a socorrer e preservar vidas durante os picos mortais
da Pandemia, em todo o país.
Mas, isso é a ponta do iceberg. Até então, denúncias esporádicas,
antes mesmo da COVID-19, alertavam sobre maus atendimentos na rede privada, sem
maior profundidade ao assunto. E isso acontece, porque o exercício do pagamento
mensal de um plano de saúde, ou de um atendimento particular, estabelece no
imaginário coletivo a impressão de um passaporte de segurança de atendimento
ilimitado, quando, na verdade, não é assim que funciona.
A verdade é que o desconhecimento
sobre os próprios direitos cidadãos leva milhares de pessoas, em pleno século
XXI, a tecer uma realidade paralela, segundo os próprios desejos e
necessidades. No caso de uma doença; sobretudo, desconhecida e repentina, a
fragilidade psicológica e comportamental, muitas vezes, suplanta o próprio sofrimento
físico causado pela enfermidade. Nessas horas, são poucos os que conseguem
manter a lucidez e discernimento para administrar a situação sob todos os seus
vieses. De modo que a precarização que já se arrastava, encontrou uma
oportunidade de expansão em meio ao caos sem precedentes.
Afinal, a Pandemia em si era a
prioridade das atenções. Tudo o que aconteceu nos bastidores passou
despercebido por uma gigantesca parcela da população. O risco iminente de
contaminação afastou das famílias a possibilidade de um acompanhamento próximo e
intensivo aos doentes, que foram entregues aos cuidados dos corpos clínicos de
saúde. Fossem eles privados ou públicos.
De modo que as visitas presenciais
foram suspensas e o diálogo com os serviços de saúde se tornaram bastante
limitados, acontecendo geralmente por ferramentas tecnológicas e em horários predeterminados.
Raríssimas foram as exceções nesse processo; sobretudo, considerando os casos
em que os eventuais acompanhantes eram pessoas idosas ou portadoras de comorbidades,
o que implicava em um risco ainda maior de contaminação pela COVID-19.
Mas não bastasse essa conjuntura
excepcional, no Brasil é muito interessante que os sistemas de vigilância e
monitoramento dos serviços públicos aconteçam com muito mais empenho e frequência,
do que em relação aos privados. Há uma distinção clara nesse processo que,
infelizmente, favorece a recorrência de más práticas e serviços prestados no
setor privado. Não vamos nos esquecer de que eles, não apenas, são responsáveis
pelo pagamento de inúmeros impostos, que engordam a arrecadação do governo ao
contrário de demandarem investimentos, como acontece no serviço público; mas, pela
geração de empregos que promovem e pelo fato de que estão preparados para
quaisquer litígios, em razão de seus amplos e competentes núcleos jurídicos.
Então, um caso de “cobaias”
humanas, embora inadmissível e repugnante, reflete esse emaranhado de poderes e
interesses que ultrapassa os limites do cotidiano popular, no qual as pessoas
querem apenas a oportunidade de um atendimento, de uma solução imediata para os
seus problemas de saúde, sem precisar se submeter aos gargalos crônicos existentes
no sistema público.
De repente, a sensação que veio à
tona foi de ser tripudiado de várias maneiras. Primeiro, por não ver a imensa
carga tributária sendo convertida na satisfação das demandas cidadãs mais
fundamentais, na materialidade dos serviços públicos. Segundo, por não obter do
plano privado de saúde, pago a duras penas, o mais elementar dos direitos que é
o respeito. Terceiro, por se ver em uma encruzilhada de desespero sem ter com
quem contar de verdade, depois de pagar várias vezes e de diferentes formas por
um mesmo serviço e não obter êxito.
Assim, diante de tudo que se viu e ouviu neste dia, não se pode fugir da seguinte reflexão “[...]se antes de cada ato nosso nós puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. [...]” (José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira). E isso cabe também as palavras, porque “Com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas” (José Saramago – As Intermitências da Morte), bem antes do que se possa cogitar. Não é à toa, que nesse país todos os dias são dias para ficarmos, de certo modo, estupefatos.