quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Estupefatos...


Estupefatos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Apesar do espanto ter sido inevitável, na verdade, nenhum brasileiro deveria se surpreender com o que foi falado, hoje, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a COVID-19. Informações sobre uma eventual prática de pesquisa médica, durante a Pandemia, promovida por uma empresa privada de Planos de Saúde, sem a anuência da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e, tampouco, dos próprios pacientes e familiares, deixou o país perplexo. Afinal, a que ponto chegamos!

A questão é que o fio dessa meada se estende pelo tempo. Quando a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no seu artigo 6º que eram Direitos Sociais “ a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”, o país assumiu a sua parcela de responsabilidade na garantia desses instrumentos de dignidade cidadã.

Entretanto, talvez, tenha faltado combinar com os representantes da direita nacional essa questão, pelo fato de serem eles ardorosos defensores de políticas de liberalização econômica pautadas em privatizações, em austeridade fiscal, em desregulamentação, em livre comércio e, sobretudo, em cortes de despesas governamentais com o objetivo de reforçar o papel do setor privado na economia. O que significa um pensamento diametralmente oposto a muitos aspectos previstos na Constituição.

No entanto, embora o Brasil seja um país demasiadamente complexo, tais desajustes ideológicos acabaram por encontrar um caminho para conviver. Acontece que esse “equilíbrio” precisa resistir a muitas tensões que o tornam, então, “imperfeito”. Isso se traduz no fato de que a influência da direita nas decisões político-sociais brasileiras é inevitável, porque ela concentra a maioria da elite que detém o poder em diferentes instâncias. De modo que ela consegue expandir as suas fronteiras sem encontrar tantos desafios e obstáculos a serem superados.

O que explica as razões que vêm conduzindo os tais Direitos Sociais a uma precarização cada vez mais acentuada, por parte do poder público; em especial, a Educação, o Transporte e a Saúde. Os inúmeros entraves políticos e econômicos dispostos cuidadosamente para limitar a evolução e o progresso desses direitos, abre um caminho livre para a inserção da iniciativa privada em vários setores da vida cotidiana brasileira.

Cansados de ver os abismos se formarem entre a efetivação das políticas públicas e o seu acesso pela população, os cidadãos acabam se rendendo as “miragens” que começam a se propagandear em todos os lugares. É certo que esse movimento deixa de fora centenas de milhares de cidadãos impossibilitados por diversas formas de inacessibilidade social. Mas, para aqueles que podem se valer dos “pacotes de serviços” oferecidos a preços quase módicos, se configura em uma esperança com ares de ascensão social, na medida em que a demanda pelo serviço público parece poder ser abandonada.

No entanto, essa “euforia momentânea” impede que essas pessoas entendam o elementar, ou seja, que a eficiência, a suficiência e a qualidade dos serviços prestados está diretamente atrelada ao valor pago; pois, é assim que funciona no livre comércio. Tendo em vista que o brasileiro é um eterno assinante de contratos sem leitura prévia, o imbróglio acaba se tornando mais perverso e complexo, dadas aquelas letrinhas miúdas nos rodapés e um amontoado de informações da boca para fora não formalizadas pelo documento.

O resumo dessa ópera acabou acontecendo, então, meio que à revelia de todos, quando explodiu a Pandemia do Sars-Cov-2. Não fosse o Sistema Único de Saúde não ter sido desmantelado e desconfigurado totalmente, como era a pretensão de muitos no atual governo federal, o colapso da rede de saúde teria encontrado um desfecho ainda mais aterrorizante.

Com a ideia de que estavam a salvo pelos planos de saúde, as pessoas não contavam com a possibilidade de uma saturação dos atendimentos na rede privada, como aconteceu. Foi o suporte da rede pública que ajudou a socorrer e preservar vidas durante os picos mortais da Pandemia, em todo o país.

Mas, isso é a ponta do iceberg. Até então, denúncias esporádicas, antes mesmo da COVID-19, alertavam sobre maus atendimentos na rede privada, sem maior profundidade ao assunto. E isso acontece, porque o exercício do pagamento mensal de um plano de saúde, ou de um atendimento particular, estabelece no imaginário coletivo a impressão de um passaporte de segurança de atendimento ilimitado, quando, na verdade, não é assim que funciona.

A verdade é que o desconhecimento sobre os próprios direitos cidadãos leva milhares de pessoas, em pleno século XXI, a tecer uma realidade paralela, segundo os próprios desejos e necessidades. No caso de uma doença; sobretudo, desconhecida e repentina, a fragilidade psicológica e comportamental, muitas vezes, suplanta o próprio sofrimento físico causado pela enfermidade. Nessas horas, são poucos os que conseguem manter a lucidez e discernimento para administrar a situação sob todos os seus vieses. De modo que a precarização que já se arrastava, encontrou uma oportunidade de expansão em meio ao caos sem precedentes.

Afinal, a Pandemia em si era a prioridade das atenções. Tudo o que aconteceu nos bastidores passou despercebido por uma gigantesca parcela da população. O risco iminente de contaminação afastou das famílias a possibilidade de um acompanhamento próximo e intensivo aos doentes, que foram entregues aos cuidados dos corpos clínicos de saúde. Fossem eles privados ou públicos.

De modo que as visitas presenciais foram suspensas e o diálogo com os serviços de saúde se tornaram bastante limitados, acontecendo geralmente por ferramentas tecnológicas e em horários predeterminados. Raríssimas foram as exceções nesse processo; sobretudo, considerando os casos em que os eventuais acompanhantes eram pessoas idosas ou portadoras de comorbidades, o que implicava em um risco ainda maior de contaminação pela COVID-19.

Mas não bastasse essa conjuntura excepcional, no Brasil é muito interessante que os sistemas de vigilância e monitoramento dos serviços públicos aconteçam com muito mais empenho e frequência, do que em relação aos privados. Há uma distinção clara nesse processo que, infelizmente, favorece a recorrência de más práticas e serviços prestados no setor privado. Não vamos nos esquecer de que eles, não apenas, são responsáveis pelo pagamento de inúmeros impostos, que engordam a arrecadação do governo ao contrário de demandarem investimentos, como acontece no serviço público; mas, pela geração de empregos que promovem e pelo fato de que estão preparados para quaisquer litígios, em razão de seus amplos e competentes núcleos jurídicos.  

Então, um caso de “cobaias” humanas, embora inadmissível e repugnante, reflete esse emaranhado de poderes e interesses que ultrapassa os limites do cotidiano popular, no qual as pessoas querem apenas a oportunidade de um atendimento, de uma solução imediata para os seus problemas de saúde, sem precisar se submeter aos gargalos crônicos existentes no sistema público.

De repente, a sensação que veio à tona foi de ser tripudiado de várias maneiras. Primeiro, por não ver a imensa carga tributária sendo convertida na satisfação das demandas cidadãs mais fundamentais, na materialidade dos serviços públicos. Segundo, por não obter do plano privado de saúde, pago a duras penas, o mais elementar dos direitos que é o respeito. Terceiro, por se ver em uma encruzilhada de desespero sem ter com quem contar de verdade, depois de pagar várias vezes e de diferentes formas por um mesmo serviço e não obter êxito.

Assim, diante de tudo que se viu e ouviu neste dia, não se pode fugir da seguinte reflexão “[...]se antes de cada ato nosso nós puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. [...]” (José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira). E isso cabe também as palavras, porque “Com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas” (José Saramago – As Intermitências da Morte), bem antes do que se possa cogitar.  Não é à toa, que nesse país todos os dias são dias para ficarmos, de certo modo, estupefatos.