quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Primavera...


Primavera...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pelo andar da carruagem, pode ser que em muito pouco tempo a humanidade não venha mais a desfrutar das estações do ano dentro dos moldes conhecidos.

A velha ideia de que as variações de temperatura naturais traziam a possibilidade de uma exibição da natureza, diferenciada de tempos em tempos, foi, gradativamente, sendo alterada pelas ações humanas sobre o planeta.

De modo que o esgotamento dos recursos naturais levou à consumição desse equilíbrio restaurador do ambiente ao ponto de se tornar incapaz de conter a velocidade das perdas e destruições.

Ainda assim, no hemisfério sul, é dia de celebrar a Primavera. O que significa, segundo a Geografia, a existência de uma inclinação do eixo da Terra capaz de possibilitar que os raios do Sol possam incidir mais nessa região.

Desse modo, as temperaturas mais amenas e o aumento da umidade do ar seriam as condições principais para a floração e o desabrochamento das espécies vegetais. Algo que resulta, também, na presença amplificada e disseminada das espécies animais; sobretudo, os polinizadores, ou seja, abelhas, beija-flores, besouros, moscas, vespas.  

Mas, ano a ano, a estação das cores e da alegria tem se transformado bastante, em razão do uso e ocupação indiscriminada do solo. Desde que a raça humana se colocou na posição majoritária da cadeia biológica, todos os recursos naturais passaram a existir em função de suas demandas e interesses, rompendo os princípios fundamentais dos ecossistemas.

O padrão evolutivo das espécies foi abruptamente corrompido pelas ações humanas, de modo que inúmeras espécies foram extintas e os reajustes nas cadeias biológicas promoveram desdobramentos sobre todo o Meio Ambiente.

Isso significa que a beleza e o encantamento da Primavera contemporânea, por exemplo, poderia ser muito maior. A diversidade natural existente no mundo, hoje, é muito menor do que no início da civilização humana.

Guardadas as devidas proporções, quando se olha para as Florestas Tropicais pode se ter uma perspectiva do que foi esse esplendor da pluralidade natural em formas, cores, tamanhos, odores, sementes e frutos, em sintonia com as dinâmicas das teias ecológicas.

Entretanto, o que existe é um esforço de resistência. As palavras da poetisa Cecília Meireles, “[...] aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira”, já não fazem mais tanto sentido. A inteireza da Primavera foi muito relativizada pelo tempo, pelo mundo, pelas mãos humanas.

Cada Primavera se tornou um jogo de insistência, de bravura indômita da Natureza, um jeito particular de não deixar o mundo se render a uma aridez cinza, a uma vida com ares de morte.

Então, a gente olha, acha bonito, sorri; mas, no fundo sabe que aquela beleza está um bocadinho mais rala, mais inconsistente. As praças, os parques, os jardins, os cenários urbanos e rurais não estão mais repletos de delicadeza salpicada de colorido.

Porque o Sol castiga profundo. Falta água suficiente para nutrir a vida. O ar parece pesado pelo mormaço asfixiante do meio da tarde. Como se a Natureza quisesse se esconder dos desafios, esperando o retorno de condições mais suaves, mais amenas.

Não se ouvem os pássaros, nem os insetos, nem as pessoas. A Primavera da algazarra coletiva, da manifestação desavergonhada da vida, está contida pela melancolia do silêncio. Como uma estratégia de sobrevivência para resistir às investidas das adversidades.

Talvez, por isso, contemplá-la não faça mais parte do cotidiano. Tenha caído no esquecimento, nas engrenagens de uma vida que mói as pessoas e faz delas bagaço de cana que perdeu o doce. Só que isso é muito ruim.

Afinal, a Natureza é terapêutica e a Primavera um bálsamo para a saúde mental dos viventes.  No mundo da pressa, do desatino, das responsabilidades em profusão, o vento no rosto, a sombra da árvore, o perfume das flores, o zunido das abelhas, e tantos outros pequenos gestos dessa simbiose com o ambiente natural podem nos recapturar da sombra da morte para o sopro da vida.

Basta querer. Aliás, aproveita porque pode não ter amanhã para você. Pode não ter outra vez como essa. Pode ser que a Primavera volte menos disposta no ano que vem.

Nesse sentido é importante que compreendas, de todos os presentes que a Natureza em todas as suas estações, particularmente a Primavera, nos oferecem de mais especial é justamente a imaterialidade da reflexão.

No frigir dos ovos, é o nosso modo de ver, de pensar, de ser e de estar no mundo o que garante o movimento de renovação de toda a beleza, a pureza e o sagrado expressos através de cada elemento natural.

O que significa que, aceitando ou não, é como escreveu Pablo Neruda, “podes cortar todas as flores, mas não podes impedir a Primavera de aparecer”. O máximo que podes conseguir é transformar o esplendor, a grandeza, a pujança da Primavera; mas, ela permanecerá na consciência do sentido de sua própria essência, ou seja, renascer.

Afinal, “Há uma primavera em cada vida: é preciso cantá-la assim florida, pois se Deus nos deu voz, foi para cantar! E se um dia hei de ser pó, cinza e nada que seja a minha noite uma alvorada, que me saiba perder... para me encontrar” (Florbela Espanca – poetisa portuguesa). 


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