terça-feira, 21 de setembro de 2021

A métrica da vergonha


A métrica da vergonha

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pelo menos, por ora, já se sabe quanto mede a vergonha nacional. Não só do ponto de vista imaterial, por discursos e narrativas; mas, do material, por sucessivos comportamentos equivocados, inapropriados e deselegantes, manifestos pelo Presidente da República e sua comitiva, durante a viagem para a abertura da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque.

Protocolos e liturgias pertinentes aos cargos ocupados foram abruptamente desconstruídos para dar lugar a uma informalidade vulgar, refletindo uma imagem de país incivilizado e disposto a se manter à margem do mundo. Algo jamais visto na história da tradicional diplomacia brasileira, que deve estar se perguntando o que aconteceu para uma ruptura tão grave com seus princípios e valores mais importantes.

Mas, o ponto alto do constrangimento só foi revelado essa manhã, no discurso de abertura 1 da Assembleia proferido pelo Presidente brasileiro. Sem quaisquer dissimulações, o Presidente foi a exibição da sua essência e personalidade, o que significa que discursou para si e seus asseclas, sob o seu ponto de vista, na defesa das suas convicções, desconsiderando a verdade dos fatos; mas, também, o caráter internacional do evento.

Ao dizer que “venho aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais e visto em televisões”, ele declara oficialmente que vive em um universo paralelo, idealizado segundo suas vontades e quereres. Um país que só ele e cerca de 22% de seus eleitores mais fiéis conseguem enxergar. Um verdadeiro “país das maravilhas”, afinal, “estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção”. O que significa que todos os casos de peculato investigados dentro e fora dos limites da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Pandemia, instaurada pelo Senado, desapareceram repentinamente da realidade brasileira.

Sem mais nem porquê, foi trazida ao discurso uma menção a pauta de costumes e a rejeição ao socialismo, comprometendo a coesão e a coerência da construção textual. No entanto, mais do que isso, ela revelou um lapso diplomático imperdoável, na medida em que a China, um país oficialmente comunista há 70 anos, é o maior parceiro comercial do Brasil. Mas, continuemos...

Depois foram feitas referências a respeito de agendas implementadas, que visam reduzir o chamado “custo Brasil”, ou seja, “um conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas que atrapalham o crescimento do país, influenciam negativamente o ambiente de negócios, encarecem os preços dos produtos dos produtos nacionais e custos de logística, comprometem investimentos e contribuem para uma excessiva carga tributária” 2.

Entretanto, na prática, o que apontam os economistas é que as expectativas para o desempenho em 2021 e 2022 são muito ruins, em decorrência de uma inflação maior e juros em alta, menor crescimento da renda o que representa redução do Produto Interno Bruto (PIB), esgotamento do efeito da retomada dos serviços, desaceleração global com acomodação dos preços das commodities, piora da crise hídrica e possível racionamento de energia, e eventuais turbulências no processo eleitoral brasileiro.

Aliás, ao abordar as questões ambientais, sintetizada com a frase de efeito “Que país do mundo tem uma política de preservação ambiental como a nossa? ”, dados como os que foram apresentados ontem, 20 de setembro, pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) 3, foram totalmente invisibilizados. Aliás, tudo o que diz respeito ao Meio Ambiente no Brasil foi desconfigurado nesse discurso.

Uma pena, pois “O Brasil registra hoje mais da metade dos focos de incêndios florestais de toda a América do Sul. Em agosto, o aumento das queimadas no país chegou a quase 20% em comparação com o mesmo mês do ano passado” 4. De modo que além das perdas significativas de fauna e flora, há também impactos devastadores sobre os índices pluviométricos e o abastecimento dos reservatórios hídricos superficiais e profundos, por consequência da destruição dos principais biomas nacionais.

Portanto, houve uma relativização imprudente ao afirmar que “O futuro do emprego verde está no Brasil: energia renovável, agricultura sustentável, indústria de baixa emissão, saneamento básico, tratamento de resíduos e turismo”, quando se desconsidera a inter e intraconexão de todos os elementos envolvidos nas discussões socioambientais. Especialmente, no tocante ao desmantelamento e desestruturação logística dos órgãos responsáveis e demais componentes institucionais de gestão, fiscalização e desenvolvimento ambiental no Brasil.

Esgotado, então, o surrealismo dessa “pauta verde”, partiu-se para duas afirmações, um tanto quanto conflitantes, ou seja, “Ratificamos a Convenção Interamericana contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância”, e “Temos a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e expressão”.

Ora, foi como se os recentes imbróglios envolvendo a Fundação Palmares e o Ministério da Cultura, amplamente noticiados, jamais tivessem existido. Assim como, todas as estatísticas de morticínio envolvendo mulheres, crianças, negros, indígenas e LGBTQIA+ não apontassem para uma intolerância brutal e crescente.

Aliás, quando abordada especificamente a questão dos índios brasileiros, a tentativa foi criar um sentimento de que a questão do “Marco Temporal”, para o governo, encontra-se pacificada e plenamente satisfeita, o que se sabe não ser a realidade.

Com uma rasa abordagem sobre o papel brasileiro em relação aos refugiados e ao terrorismo, a tentativa foi encontrar um atalho para dizer que “apoiamos a uma Reforma do Conselho de Segurança ONU, onde buscamos um assento permanente”. Mas, sem maiores fundamentações para investir no assunto, o jeito foi encaminhar para uma finalização, abordando a questão da Pandemia, que foi o pior de todos os mundos para o Brasil. Afinal, a própria figura do Presidente brasileiro desfez antecipadamente a credibilidade das palavras proferidas.

Mas, se é possível piorar, por que não? Pode-se dizer que o auge do horror vexatório se deu, particularmente, quando manifesto que “Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina”; porque, imediatamente ele se lançou de peito aberto na defesa do “tratamento precoce”, que significou a administração inadvertida e irresponsável de medicações ineficazes para prevenção e tratamento da COVID-19.

E assim, em pouco mais de 12 minutos, a vergonha nacional foi medida em forma e conteúdo. Num piscar de olhos, a ideia de que “O Brasil é um país com dimensões continentais [...]”, evaporou. Território, Política, Economia, Diplomacia, ... tudo se apequenou diante dos olhos estupefatos do mundo. Foi como se uma criança se sentasse à mesa de reuniões de uma grande empresa e manifestasse um amontoado de ideias pertencentes ao universo da sua capacidade intelectual etária. No entanto, apesar de todos os pesares, colocando os constrangimentos de lado, por um breve momento, tenho que concordar com um ponto, “A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”. Disso eu não tenho a menor dúvida.


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