A
métrica da vergonha
Por
Alessandra Leles Rocha
Pelo menos, por ora, já se
sabe quanto mede a vergonha nacional. Não só do ponto de vista imaterial, por
discursos e narrativas; mas, do material, por sucessivos comportamentos
equivocados, inapropriados e deselegantes, manifestos pelo Presidente da
República e sua comitiva, durante a viagem para a abertura da Assembleia-Geral
da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque.
Protocolos e liturgias
pertinentes aos cargos ocupados foram abruptamente desconstruídos para dar
lugar a uma informalidade vulgar, refletindo uma imagem de país incivilizado e
disposto a se manter à margem do mundo. Algo jamais visto na história da tradicional
diplomacia brasileira, que deve estar se perguntando o que aconteceu para uma
ruptura tão grave com seus princípios e valores mais importantes.
Mas, o ponto alto do
constrangimento só foi revelado essa manhã, no discurso de abertura 1 da
Assembleia proferido pelo Presidente brasileiro. Sem quaisquer dissimulações, o
Presidente foi a exibição da sua essência e personalidade, o que significa que
discursou para si e seus asseclas, sob o seu ponto de vista, na defesa das suas
convicções, desconsiderando a verdade dos fatos; mas, também, o caráter internacional
do evento.
Ao dizer que “venho
aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais e visto em
televisões”, ele declara oficialmente que vive em um universo paralelo,
idealizado segundo suas vontades e quereres. Um país que só ele e cerca de 22%
de seus eleitores mais fiéis conseguem enxergar. Um verdadeiro “país das maravilhas”,
afinal, “estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção”.
O que significa que todos os casos de peculato investigados dentro e fora dos
limites da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Pandemia, instaurada
pelo Senado, desapareceram repentinamente da realidade brasileira.
Sem mais nem porquê, foi
trazida ao discurso uma menção a pauta de costumes e a rejeição ao socialismo,
comprometendo a coesão e a coerência da construção textual. No entanto, mais do
que isso, ela revelou um lapso diplomático imperdoável, na medida em que a China,
um país oficialmente comunista há 70 anos, é o maior parceiro comercial do
Brasil. Mas, continuemos...
Depois foram feitas referências
a respeito de agendas implementadas, que visam reduzir o chamado “custo Brasil”,
ou seja, “um conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas,
trabalhistas e econômicas que atrapalham o crescimento do país, influenciam
negativamente o ambiente de negócios, encarecem os preços dos produtos dos
produtos nacionais e custos de logística, comprometem investimentos e
contribuem para uma excessiva carga tributária” 2.
Entretanto, na prática, o
que apontam os economistas é que as expectativas para o desempenho em 2021 e
2022 são muito ruins, em decorrência de uma inflação maior e juros em alta,
menor crescimento da renda o que representa redução do Produto Interno Bruto
(PIB), esgotamento do efeito da retomada dos serviços, desaceleração global com
acomodação dos preços das commodities, piora da crise hídrica e possível racionamento
de energia, e eventuais turbulências no processo eleitoral brasileiro.
Aliás, ao abordar as questões
ambientais, sintetizada com a frase de efeito “Que país do mundo tem uma
política de preservação ambiental como a nossa? ”, dados como os que
foram apresentados ontem, 20 de setembro, pelo Sistema de Alerta de
Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) 3, foram totalmente invisibilizados. Aliás,
tudo o que diz respeito ao Meio Ambiente no Brasil foi desconfigurado nesse
discurso.
Uma pena, pois “O Brasil
registra hoje mais da metade dos focos de incêndios florestais de toda a
América do Sul. Em agosto, o aumento das queimadas no país chegou a quase 20%
em comparação com o mesmo mês do ano passado” 4.
De modo que além das perdas significativas de fauna e flora, há também impactos
devastadores sobre os índices pluviométricos e o abastecimento dos
reservatórios hídricos superficiais e profundos, por consequência da destruição
dos principais biomas nacionais.
Portanto, houve uma
relativização imprudente ao afirmar que “O futuro do emprego verde está no
Brasil: energia renovável, agricultura sustentável, indústria de baixa emissão,
saneamento básico, tratamento de resíduos e turismo”, quando se desconsidera a inter e intraconexão
de todos os elementos envolvidos nas discussões socioambientais. Especialmente,
no tocante ao desmantelamento e desestruturação logística dos órgãos responsáveis
e demais componentes institucionais de gestão, fiscalização e desenvolvimento
ambiental no Brasil.
Esgotado, então, o
surrealismo dessa “pauta verde”, partiu-se para duas afirmações, um tanto
quanto conflitantes, ou seja, “Ratificamos a Convenção Interamericana
contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância”, e “Temos
a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser
humano só se completa com a liberdade de culto e expressão”.
Ora, foi como se os
recentes imbróglios envolvendo a Fundação Palmares e o Ministério da Cultura,
amplamente noticiados, jamais tivessem existido. Assim como, todas as estatísticas
de morticínio envolvendo mulheres, crianças, negros, indígenas e LGBTQIA+ não
apontassem para uma intolerância brutal e crescente.
Aliás, quando abordada especificamente
a questão dos índios brasileiros, a tentativa foi criar um sentimento de que a
questão do “Marco Temporal”, para o governo, encontra-se pacificada e plenamente
satisfeita, o que se sabe não ser a realidade.
Com uma rasa abordagem
sobre o papel brasileiro em relação aos refugiados e ao terrorismo, a tentativa
foi encontrar um atalho para dizer que “apoiamos a uma Reforma do Conselho de
Segurança ONU, onde buscamos um assento permanente”. Mas, sem maiores fundamentações para
investir no assunto, o jeito foi encaminhar para uma finalização, abordando a
questão da Pandemia, que foi o pior de todos os mundos para o Brasil. Afinal, a
própria figura do Presidente brasileiro desfez antecipadamente a credibilidade
das palavras proferidas.
Mas, se é possível piorar,
por que não? Pode-se dizer que o auge do horror vexatório se deu,
particularmente, quando manifesto que “Apoiamos a vacinação, contudo o nosso
governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer
obrigação relacionada a vacina”; porque, imediatamente ele se lançou de
peito aberto na defesa do “tratamento precoce”, que significou a administração
inadvertida e irresponsável de medicações ineficazes para prevenção e
tratamento da COVID-19.
E assim, em pouco mais de
12 minutos, a vergonha nacional foi medida em forma e conteúdo. Num piscar de
olhos, a ideia de que “O Brasil é um país com dimensões
continentais [...]”, evaporou. Território, Política, Economia,
Diplomacia, ... tudo se apequenou diante dos olhos estupefatos do mundo. Foi
como se uma criança se sentasse à mesa de reuniões de uma grande empresa e
manifestasse um amontoado de ideias pertencentes ao universo da sua capacidade
intelectual etária. No entanto, apesar de todos os pesares, colocando os constrangimentos
de lado, por um breve momento, tenho que concordar com um ponto, “A
história e a ciência saberão responsabilizar a todos”. Disso eu não
tenho a menor dúvida.