quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Negar. Negação. Negacionismo. ...


Negar. Negação. Negacionismo. ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não se trata de simples impressão, cada dia mais o Brasil se mostra como de fato está, fragmentado, dividido. Uma linha torta que separa a defesa e a contestação de um projeto de poder ancorado na premissa da negação. Negar é a palavra de ordem, porque dessa forma é possível mascarar, ocultar, desviar a atenção de todos aqueles que não se permitem enveredar por esse tipo de “cegueira coletiva”. Então, ainda que não seja uma cisão homogênea, nem por isso, ela é menos importante.

O que se tem presenciado nesses longos meses pandêmicos é só uma fração do que esse movimento em curso pretende em relação aos 94% da população brasileira, que representam a classe média tradicional e a classe baixa respectivamente. O negacionismo imposto à gestão da Pandemia no país conseguiu, até agora, ceifar quase 600 mil vidas, as quais em torno de dois terços delas poderiam ter sido poupadas, se as medidas sanitárias preventivas tivessem sido cumpridas adequadamente e a imunização ocorrido de maneira satisfatória e precocemente.

Com a luz lançada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada pelo Senado, agora se conhece a rede de interesses e poderes escondida nas entrelinhas dessa história. Um enredo sórdido, macabro, abjeto, que surpreenderia os mais renomados roteiristas do cinema mundial. Mas, quando se amplia o olhar e a reflexão para o todo cotidiano, milhares de fios que pareciam soltos em outras searas da vida nacional começam a se conectar e trazer à tona as infinitas possibilidades de atentar contra a sobrevivência e a dignidade de milhões de brasileiros.

As manchas de óleo que invadiram o litoral brasileiro, sobretudo na região Nordeste, em 2019, por exemplo, jamais foram devidamente esclarecidas, os culpados responsabilizados e os danos para a população contabilizados e ressarcidos. Mas, um prejuízo enorme ao turismo da região, ao trabalho dos pescadores e tantas outras atividades econômicas, se propagou em ondas durante todo esse tempo, sem que ninguém desse a devida visibilidade a respeito.

Afinal, também, desde 2019, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que poderia prover algum auxílio para quem foi afetado pelo ocorrido, encontrava-se literalmente de “cabeça para baixo”, dada a reestruturação do serviço previdenciário e a precarização do trabalho prestado pelos servidores, proposta pelo atual governo federal. A carência de funcionários para atendimento e realização das etapas dos processos de análise e liberação de benefícios paralisou os serviços, deixando milhares de brasileiros na mais completa desassistência.

Aliás, as pilhas de solicitações permanecem se acumulando nos postos do INSS em todo o país, o que significa que milhões de pessoas estão lançadas à total indignidade, esperando uma solução para suas demandas. Em outros casos, muitas respostas tendem a não encontrar o beneficiário vivo, em virtude da demasiada demora de atendimento.

Uma questão que acende o alerta sobre as estatísticas do desemprego nacional; pois, dentro de um conjunto de regras estabelecidas pelo governo federal há a possibilidade, para trabalhadores registrados, de requisição do Seguro Desemprego. Um auxílio em dinheiro pago de três a cinco parcelas de forma contínua ou alternada, de acordo com o tempo trabalhado. Quanto mais difícil se torna requerer esse benefício, mais se sobrecarrega a realidade da pobreza e da miséria, em franca expansão no país.

Afinal, segundo dados do Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal, “Pelo menos 2 milhões de famílias brasileiras tiveram a renda reduzida e caíram para a extrema pobreza entre janeiro de 2019 e junho deste ano” 1. E diante do retorno voraz da inflação, com o preço dos combustíveis e do gás de cozinha, pela hora da morte, somado as constantes elevações no custo da cesta básica e da energia elétrica, a possibilidade de pessoas não conseguirem sobreviver por muito tempo é cada vez mais real.

Como disse o próprio Presidente da República, há dois dias, “nada está tão ruim que não possa piorar”2. Assim, no que diz respeito à queima e ao desmatamento avassalador dos principais biomas, eles não são só uma política ambiental errática e ultrapassada. Os impactos negativos gerados pelo efeito sistemático dessas práxis afetam diretamente a qualidade de vida e sobrevivência da população brasileira. O ar se torna irrespirável pela quantidade de fuligem e compostos tóxicos. Nascentes, córregos, lagos, rios e reservatórios de água se evaporam diante da ausência de chuvas e a elevação das temperaturas. A insegurança alimentar começa a despontar pela escassez de alimentos; o que, em alguns casos, fomenta a “lei da oferta e da procura”, tornando-os mais caros.

De modo que uma série de problemas de saúde começam a afetar as pessoas e a sobrecarregar os serviços de saúde; sobretudo, a rede pública, tendo em vista que milhares de brasileiros perderam o acesso aos planos privados, dado o alto custo de manutenção dos mesmos. Uma rede, já sabidamente repleta de gargalos oriundos de demandas diversas e que, agora, ainda não dispõe de uma diretriz para saber como vai atender os números crescentes de demandas Pós-COVID, ou seja, sobreviventes da Pandemia que apresentaram sequelas de baixa a alta complexidade durante a sua recuperação.  

Além disso, a insustentabilidade ambiental também fez emergir um grande impacto econômico sobre a energia elétrica, tornando-a um alvo de “tarifaços” contínuos, porque não há água suficiente para impulsionar as turbinas das grandes usinas, o que torna necessário apelar para as termoelétricas que têm custo de produção altíssimo.  Paira sobre a cabeça dos milhões de brasileiros, então, um risco iminente de rupturas no fornecimento de energia, caso o equilíbrio pluviométrico e hídrico não se restabeleça em um prazo de tempo relativamente suportável.

Até aqui, os relatos de pessoas que tiveram as casas queimadas por conta de velas acesas para a economia, já começam a surgir. Outras que vieram a óbito depois de se queimar utilizando álcool como combustível para acender fogareiros a fim de cozinhar, por causa do preço exorbitante do botijão de gás, também. Enfim, casos e mais casos de seres humanos na fila do perigo, do “baile da morte”, tendem a se proliferar descontroladamente. Pessoas que pelo movimento de negação serão incluídas, sem maiores constrangimentos e esforços, nas estatísticas do desalento e da morte.  

É preciso que se entenda que aquele que nega participação, direta ou indireta, nos negacionismos instituídos no país, antes de qualquer coisa, nega prioritariamente o direito de muitos de seus pares viverem com dignidade e paz. A negação não é seletiva, ela não elege “esse ou aquele” aspecto. Ela simplesmente nega, nega tudo. Porque o negar, na atual conjuntura, significa fortalecer seus interesses, suas regalias, seus privilégios e, particularmente, um projeto de poder que o beneficie.

O que importa é que a história do mundo sabe muito bem onde se chega com esse negacionismo, com essa invisibilização de seres humanos. Por isso, atenção, “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar” (Bertolt Brecht – Nada é impossível de mudar). 

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