Apesar dos benefícios,
a longevidade trouxe o “etarismo”
Por Alessandra Leles
Rocha
Imagino que muitos desconheçam o termo “etarismo”; embora, ele esteja frequentemente circulando no
cotidiano social na sua forma prática. Trata-se do preconceito aos idosos,
decorrente das fragilidades que o processo de envelhecimento impõe natural e
gradativamente ao ser humano. De repente, aqui e ali se ouvem frases como “Você está velho (a) demais para isso! ”,
“Lugar de velho (a) é no asilo”, “Você está ficando gagá”, “Você dá muito trabalho”. Mas, como dizem por aí, “quem não quiser envelhecer que morra
jovem”.
Por isso, se torna cada vez mais importante debater e
refletir sobre essa questão. De acordo com o Fundo de População das Nações
Unidas (UNFPA) 1, “O envelhecimento populacional é uma das mais significativas tendências
do século XXI. Apresenta implicações importantes e de longo alcance para todos
os domínios da sociedade. No mundo todo, a cada segundo 2 pessoas celebram seu
sexagésimo aniversário – em um total anual de quase 58 milhões de aniversários
de 60 anos. Uma em cada 9 pessoas no mundo tem 60 anos de idade ou mais, e
estima-se um crescimento para 1 em cada 5 por volta de 2050: o envelhecimento
da população é um fenômeno que já não pode ser mais ignorado”.
De modo que diante dessa evolução demográfica é fundamental
criar condições e oportunidades para que a população possa envelhecer com
segurança, saudável, incluída socialmente e economicamente ativa. Afinal, ninguém
será eternamente jovem e “é a forma como optamos
por tratar dos desafios e maximizar as oportunidades de uma crescente população
idosa que determinará se a sociedade colherá os benefícios do ‘dividendo da
longevidade’” (UNFPA).
Assim, ela afeta a dinâmica social, na medida em que há uma
correlação direta entre desenvolvimento e longevidade humana. Países, cujo
desenvolvimento é intenso e consistente, vêm favorecendo a uma expectativa de
vida muito maior para sua população. Não só pelo fato da diversidade de
políticas públicas que melhor atendam as demandas dos cidadãos; mas, também, pelo
fato da renda per capita circulante
possibilitar aos indivíduos a manutenção da sua sobrevivência e qualidade de
vida. De modo que essa realidade vem desconstruindo o estereótipo do idoso à
margem da sociedade, inerte e solitário.
Afinal, dentro desse contexto mais privilegiado, estão outros
aspectos que dão suporte a essa ampliação da expectativa de vida, tais como acesso
ao saneamento básico e água tratada; a segurança alimentar; ao desenvolvimento
das ciências médicas e suas tecnologias, ampliando a base de diagnóstico e
tratamento precoce; e, a imunização, que tem evitado milhões de mortes
desnecessárias ao ano e reduzido a circulação de agentes infectocontagiosos ao
redor do planeta.
Apesar de nos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos o
idoso conseguir manter-se ativo, nem sempre isso ocorre por escolha e condições
favoráveis. Na maioria das vezes, esse movimento decorre da total necessidade básica
de sobrevivência. A própria estrutura econômica desses lugares transforma, muitas
vezes, os idosos em arrimo de família. Assim, a baixa remuneração advinda de sua
aposentadoria passa a ser o principal componente do sustento e manutenção de
todos, incluindo filhos, netos e até bisnetos, em alguns casos, os quais por
razões de desemprego e/ou baixa escolaridade não teriam como sobreviver
sozinhos. Muitas vezes, a insuficiência dessa remuneração acaba impulsionando o
retorno desse idoso ao mercado de trabalho, geralmente informal, a fim de
complementação dos recursos.
Além disso, há de se considerar que a análise do
envelhecimento populacional não se dá de maneira homogênea. Como qualquer grupo
social é necessário destacar características como idade, gênero, etnia,
educação, renda e saúde; na medida em que “precisam
ser tratados especificamente, por meio de programas e modelos de intervenção
adequados a cada segmento” (UNFPA). Haja vista, por exemplo, que “o envelhecimento é um processo que atinge
homens e mulheres de forma diferente. As relações de gênero estruturam todo o
curso da vida, influenciando o acesso a recursos e oportunidades com um impacto
que é tanto contínuo quanto acumulativo” (UNFPA).
Dentro desse contexto, verifica-se que o etarismo predomina
em relação às mulheres, porque elas são mais vulneráveis à discriminação e abusos,
em razão de um conjunto de inacessibilidades que comprometem sua inserção no
mercado de trabalho, seu atendimento nos serviços de saúde, seu direito à
propriedade e heranças, sua menor remuneração e renda básica, e suas garantias
quanto à previdência social. Por isso, “essas
diferenças têm importantes implicações para políticas e planejamento de
programas públicos” (UNFPA).
Mas, e a realidade específica do Brasil? Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), “o número de brasileiros idosos de 60 anos e
mais era de 2,6 milhões em 1950 (4,9% do total), passou para 29,9 milhões em
2020 (14% do total) e deve alcançar 72,4 milhões em 2100 (40% do total
populacional). O número de brasileiros idosos de 80 anos e mais era de 153 mil
em 1950 (0,3%), passou para 4,2 milhões em 2020 (2% do total) e deve alcançar
28,2 milhões em 2100 (15,6% do total populacional) ”2.
Tendo em vista que esse panorama estava contextualizado
dentro de uma realidade econômica, todos os impactos sociais sentidos por essa
população idosa são decorrentes, principalmente, do mau aproveitamento do
chamado bônus demográfico, ou seja, dos períodos em que conta com mais força de
trabalho e menos pessoas inativas no país.
Então, quando a Pandemia se instalou, “a economia brasileira já estava enfraquecida, com ‘esclerose múltipla’
e com várias ‘doenças’ de risco, como baixa produtividade, baixa
competitividade internacional, baixo dinamismo na produção de bens e serviços,
baixa geração de emprego decente, baixa geração de renda, baixo investimento e
com ‘pressão alta’ no déficit fiscal, na dívida pública e nos indicadores de
pobreza e desigualdade social” (FIOCRUZ).
Acontece que “a
experiência internacional mostra que nenhum país consegue enriquecer depois de
envelhecer. Países de renda média que não aproveitam o bônus demográfico
costumam ficar presos eternamente na ‘Armadilha da renda média’” (FIOCRUZ). Portanto,
as dificuldades que se desenham no horizonte brasileiro são imensas. Sobretudo,
se consideramos indivíduos abaixo da linha da miséria, indígenas, analfabetos,
residentes na zona rural, residentes nas periferias urbanas, dentro do perfil
de envelhecimento nacional.
Trata-se de uma questão cujo desenvolvimento de suas
complexidades é diário. Daí a necessidade de contenção e mitigação, o mais
rápido possível. Porque quanto mais o tempo passa, mais o idoso está submetido a
diversas expressões de vulnerabilidade social. De modo que suas demandas passam
a ser entendidas como onerosas demais, difíceis demais, cansativas demais,
enfim ... Trazendo à tona a impressão que a conquista da longevidade, de uma
maior expectativa de vida, foi algo ruim e indesejável para alguns indivíduos e
segmentos da sociedade.
Porém, isso não é justificativa e nem dá o direito a ninguém
de manifestar o “etarismo”. Aliás, como a sociedade pode se dar ao luxo de
manifestar qualquer preconceito nesse sentido? Envelhecer é parte do ciclo da
vida. Antes de ousar hastear por aí bandeiras absurdas e ofensivas, é preciso
lembrar de que “A pior cegueira é a
mental, que faz com que não reconheçamos o que temos a frente” (José Saramago –
Ensaio sobre a Cegueira), ou o que temos dentro de nós. Porque ela é uma
porta aberta para que o preconceito seja esse “fardo que confunde o passado, ameaça o futuro e torna o presente
inacessível” (Maya Angelou – escritora norte-americana) a todos, sem
distinção.