terça-feira, 28 de setembro de 2021

Apesar dos benefícios, a longevidade trouxe o “etarismo”


Apesar dos benefícios, a longevidade trouxe o “etarismo”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Imagino que muitos desconheçam o termo “etarismo”; embora, ele esteja frequentemente circulando no cotidiano social na sua forma prática. Trata-se do preconceito aos idosos, decorrente das fragilidades que o processo de envelhecimento impõe natural e gradativamente ao ser humano. De repente, aqui e ali se ouvem frases como “Você está velho (a) demais para isso! ”, “Lugar de velho (a) é no asilo”, “Você está ficando gagá”, “Você dá muito trabalho”. Mas, como dizem por aí, “quem não quiser envelhecer que morra jovem”.

Por isso, se torna cada vez mais importante debater e refletir sobre essa questão. De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) 1, “O envelhecimento populacional é uma das mais significativas tendências do século XXI. Apresenta implicações importantes e de longo alcance para todos os domínios da sociedade. No mundo todo, a cada segundo 2 pessoas celebram seu sexagésimo aniversário – em um total anual de quase 58 milhões de aniversários de 60 anos. Uma em cada 9 pessoas no mundo tem 60 anos de idade ou mais, e estima-se um crescimento para 1 em cada 5 por volta de 2050: o envelhecimento da população é um fenômeno que já não pode ser mais ignorado”.

De modo que diante dessa evolução demográfica é fundamental criar condições e oportunidades para que a população possa envelhecer com segurança, saudável, incluída socialmente e economicamente ativa. Afinal, ninguém será eternamente jovem e “é a forma como optamos por tratar dos desafios e maximizar as oportunidades de uma crescente população idosa que determinará se a sociedade colherá os benefícios do ‘dividendo da longevidade’” (UNFPA).

Assim, ela afeta a dinâmica social, na medida em que há uma correlação direta entre desenvolvimento e longevidade humana. Países, cujo desenvolvimento é intenso e consistente, vêm favorecendo a uma expectativa de vida muito maior para sua população. Não só pelo fato da diversidade de políticas públicas que melhor atendam as demandas dos cidadãos; mas, também, pelo fato da renda per capita circulante possibilitar aos indivíduos a manutenção da sua sobrevivência e qualidade de vida. De modo que essa realidade vem desconstruindo o estereótipo do idoso à margem da sociedade, inerte e solitário.

Afinal, dentro desse contexto mais privilegiado, estão outros aspectos que dão suporte a essa ampliação da expectativa de vida, tais como acesso ao saneamento básico e água tratada; a segurança alimentar; ao desenvolvimento das ciências médicas e suas tecnologias, ampliando a base de diagnóstico e tratamento precoce; e, a imunização, que tem evitado milhões de mortes desnecessárias ao ano e reduzido a circulação de agentes infectocontagiosos ao redor do planeta.

Apesar de nos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos o idoso conseguir manter-se ativo, nem sempre isso ocorre por escolha e condições favoráveis. Na maioria das vezes, esse movimento decorre da total necessidade básica de sobrevivência. A própria estrutura econômica desses lugares transforma, muitas vezes, os idosos em arrimo de família. Assim, a baixa remuneração advinda de sua aposentadoria passa a ser o principal componente do sustento e manutenção de todos, incluindo filhos, netos e até bisnetos, em alguns casos, os quais por razões de desemprego e/ou baixa escolaridade não teriam como sobreviver sozinhos. Muitas vezes, a insuficiência dessa remuneração acaba impulsionando o retorno desse idoso ao mercado de trabalho, geralmente informal, a fim de complementação dos recursos.

Além disso, há de se considerar que a análise do envelhecimento populacional não se dá de maneira homogênea. Como qualquer grupo social é necessário destacar características como idade, gênero, etnia, educação, renda e saúde; na medida em que “precisam ser tratados especificamente, por meio de programas e modelos de intervenção adequados a cada segmento” (UNFPA). Haja vista, por exemplo, que “o envelhecimento é um processo que atinge homens e mulheres de forma diferente. As relações de gênero estruturam todo o curso da vida, influenciando o acesso a recursos e oportunidades com um impacto que é tanto contínuo quanto acumulativo” (UNFPA).

Dentro desse contexto, verifica-se que o etarismo predomina em relação às mulheres, porque elas são mais vulneráveis à discriminação e abusos, em razão de um conjunto de inacessibilidades que comprometem sua inserção no mercado de trabalho, seu atendimento nos serviços de saúde, seu direito à propriedade e heranças, sua menor remuneração e renda básica, e suas garantias quanto à previdência social. Por isso, “essas diferenças têm importantes implicações para políticas e planejamento de programas públicos” (UNFPA).

Mas, e a realidade específica do Brasil?  Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), “o número de brasileiros idosos de 60 anos e mais era de 2,6 milhões em 1950 (4,9% do total), passou para 29,9 milhões em 2020 (14% do total) e deve alcançar 72,4 milhões em 2100 (40% do total populacional). O número de brasileiros idosos de 80 anos e mais era de 153 mil em 1950 (0,3%), passou para 4,2 milhões em 2020 (2% do total) e deve alcançar 28,2 milhões em 2100 (15,6% do total populacional) ”2.

Tendo em vista que esse panorama estava contextualizado dentro de uma realidade econômica, todos os impactos sociais sentidos por essa população idosa são decorrentes, principalmente, do mau aproveitamento do chamado bônus demográfico, ou seja, dos períodos em que conta com mais força de trabalho e menos pessoas inativas no país.

Então, quando a Pandemia se instalou, “a economia brasileira já estava enfraquecida, com ‘esclerose múltipla’ e com várias ‘doenças’ de risco, como baixa produtividade, baixa competitividade internacional, baixo dinamismo na produção de bens e serviços, baixa geração de emprego decente, baixa geração de renda, baixo investimento e com ‘pressão alta’ no déficit fiscal, na dívida pública e nos indicadores de pobreza e desigualdade social” (FIOCRUZ).

Acontece que “a experiência internacional mostra que nenhum país consegue enriquecer depois de envelhecer. Países de renda média que não aproveitam o bônus demográfico costumam ficar presos eternamente na ‘Armadilha da renda média’” (FIOCRUZ). Portanto, as dificuldades que se desenham no horizonte brasileiro são imensas. Sobretudo, se consideramos indivíduos abaixo da linha da miséria, indígenas, analfabetos, residentes na zona rural, residentes nas periferias urbanas, dentro do perfil de envelhecimento nacional.

Trata-se de uma questão cujo desenvolvimento de suas complexidades é diário. Daí a necessidade de contenção e mitigação, o mais rápido possível. Porque quanto mais o tempo passa, mais o idoso está submetido a diversas expressões de vulnerabilidade social. De modo que suas demandas passam a ser entendidas como onerosas demais, difíceis demais, cansativas demais, enfim ... Trazendo à tona a impressão que a conquista da longevidade, de uma maior expectativa de vida, foi algo ruim e indesejável para alguns indivíduos e segmentos da sociedade. 

Porém, isso não é justificativa e nem dá o direito a ninguém de manifestar o “etarismo”. Aliás, como a sociedade pode se dar ao luxo de manifestar qualquer preconceito nesse sentido? Envelhecer é parte do ciclo da vida. Antes de ousar hastear por aí bandeiras absurdas e ofensivas, é preciso lembrar de que “A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos a frente” (José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira), ou o que temos dentro de nós. Porque ela é uma porta aberta para que o preconceito seja esse “fardo que confunde o passado, ameaça o futuro e torna o presente inacessível” (Maya Angelou – escritora norte-americana) a todos, sem distinção.