segunda-feira, 27 de setembro de 2021

1000 dias. 24000 horas. ... E daí?!


1000 dias. 24000 horas. ... E daí?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

1000 dias de governo sem razões para comemorar. E nem é pela má gestão da COVID-19, pelos mais de 500 mil mortos pela ação do Sars-Cov-2, pelo desemprego em alta, pela miséria e a pobreza proliferando, pela inflação, pelos juros exorbitantes, pelo custo dos alimentos e combustíveis, pela crise hídrica, pelo tarifaço de energia elétrica, pelos escândalos envoltos em nuvens de mistério, ... O pior que reside nessa cifra temporal é ter a comprovação cabal do fracasso brasileiro. O Brasil não sabe votar. Não sabe escolher. O analfabetismo cidadão ficou flagrante.  

Gostaria que o peso dessa constatação recaísse sobre o fato do voto ser obrigatório e por isso, as pessoas se indispusessem a encará-lo de uma maneira mais consciente. Mas, não é isso. O que se impõe nessa história é uma práxis secular de dissociação entre o voto e o cotidiano, como se a escolha representativa não fosse a grande determinante do que acontece de bom e de ruim na dinâmica da vida do cidadão.

Não é à toa que as disputas eleitorais no Brasil sempre se fizeram marcadas por uma euforia de torcidas, algo semelhante ao futebol. Uma passionalidade tão arraigada que subtrai a capacidade crítica e reflexiva de ponderar prós e contras dos pretensos representantes do povo. Transformam as campanhas em concurso de simpatia, gerando uma superficialidade em todo o processo, como se apertos de mãos, sorrisos fartos, crianças no colo, gritos esfuziantes e retóricas de efeito pudessem suprir o eleitor de informações suficientes para ativar seu discernimento. E como diz o provérbio, “De boas intenções o inferno anda cheio”!

E diante de tamanha displicência, o Brasil transformou política em profissão e consolidou verdadeiras dinastias no cenário nacional. Exímios conhecedores desse jogo de intenções veladas, cada mandato reafirmava a sabedoria do caminho das pedras para se perpetuar no “oficio de representante popular”, apesar de muitos serem médicos, advogados, funcionários públicos etc.etc.etc. Acontece que, por mais constrangedor possa ser admitir, a política tem sido sim, uma das carreiras mais bem pagas do país. Mas é bom que se diga, também, que os representantes do povo são oriundos desse povo. Portanto, se bons ou ruins eles refletem exatamente a sociedade a qual pertencem.

Assim, encontrar algum candidato imbuído de consciência, responsabilidade e apreço ao dever cívico de servir ao povo tornou-se tão desafiador quanto procurar uma agulha no palheiro. Porque não bastasse o pendor das más índoles a influenciá-los, por trás de cada candidatura, escondidos nas sombras, estão legiões de apoiadores e patrocinadores fiando o seu toma-lá-dá-cá e definindo as pautas de seus interesses próprios, que deverão ser a linha mestra a ser seguida pelo seu candidato. De modo que eles já entram em cena carregados de obrigações e deveres muito distantes das expectativas dos eleitores.

Uma pena que tudo isso passe à margem dos interesses e das preocupações do cidadão; mas, que demonstra como o brasileiro não foi preparado para assumir seu papel no mundo republicano e democrático. Sim, porque nos tempos da Coroa Portuguesa ele não tinha sequer o trabalho de escolher quem iria representá-lo, estava posto, definido. O lado bom e ruim da vida já vinha preestabelecido.

Mas, quando tudo mudou, não mudou de uma vez. Durante longos anos, as decisões partiam daqueles que detinham o poder e que, também, eram os eleitores. Demorou bastante tempo para que todos os brasileiros, enfim, pudessem exercer o direito de voto. Aí, já era tarde para desconstruir o hábito legitimado de se deixar conduzir pelos outros. E as eleições se transformaram nesse verdadeiro espetáculo.

No entanto, se a decepção se torna cada vez mais pujante, como têm revelado os índices de abstenção e votos nulos e brancos, sinal de que um lampejo de lucidez começa a aflorar. Já se foi o tempo em que as eleições eram vencidas com base em uma presença maciça de eleitores. Hoje, os percentuais vitoriosos não representam, na verdade, a totalidade dos cidadãos; mas, uma parcela que esteve presente às sessões eleitorais. Daí a importância dessa manifestação de incômodo, de desconforto, de indignação, que são marcas fundamentais da cidadania, porque demonstram que os indivíduos estão atentos aos rumos que o país toma, em decorrência de suas escolhas. Eles sabem mensurar, então, o peso da sua responsabilidade enquanto eleitor.

Sabemos que o caminho a ser trilhado entre o abandono do analfabetismo cidadão e a consolidação do letramento cidadão é longo. Mas, nem por isso, se pode desistir ou esmorecer. Para que haja razões a se comemorar, não basta a celebração no resultado do pleito e, nem tampouco, 1000 dias. É preciso mais, bem mais. Afinal, não se pode permitir nivelar o exercício do voto a nada que venha constituir uma alienação servil e uma perda completa ao direito a uma vida digna, porque isso seria boicotar o desejo de celebrar a cidadania no seu sentido mais pleno e inteiro.