1000
dias. 24000 horas. ... E daí?!
Por
Alessandra Leles Rocha
1000 dias de governo sem razões
para comemorar. E nem é pela má gestão da COVID-19, pelos mais de 500 mil
mortos pela ação do Sars-Cov-2, pelo desemprego em alta, pela miséria e a pobreza
proliferando, pela inflação, pelos juros exorbitantes, pelo custo dos alimentos
e combustíveis, pela crise hídrica, pelo tarifaço de energia elétrica, pelos escândalos
envoltos em nuvens de mistério, ... O pior que reside nessa cifra temporal é
ter a comprovação cabal do fracasso brasileiro. O Brasil não sabe votar. Não sabe
escolher. O analfabetismo cidadão ficou flagrante.
Gostaria que o peso dessa
constatação recaísse sobre o fato do voto ser obrigatório e por isso, as
pessoas se indispusessem a encará-lo de uma maneira mais consciente. Mas, não é
isso. O que se impõe nessa história é uma práxis secular de dissociação entre o
voto e o cotidiano, como se a escolha representativa não fosse a grande
determinante do que acontece de bom e de ruim na dinâmica da vida do cidadão.
Não é à toa que as disputas
eleitorais no Brasil sempre se fizeram marcadas por uma euforia de torcidas,
algo semelhante ao futebol. Uma passionalidade tão arraigada que subtrai a
capacidade crítica e reflexiva de ponderar prós e contras dos pretensos
representantes do povo. Transformam as campanhas em concurso de simpatia,
gerando uma superficialidade em todo o processo, como se apertos de mãos,
sorrisos fartos, crianças no colo, gritos esfuziantes e retóricas de efeito
pudessem suprir o eleitor de informações suficientes para ativar seu
discernimento. E como diz o provérbio, “De boas intenções o inferno anda cheio”!
E diante de tamanha displicência,
o Brasil transformou política em profissão e consolidou verdadeiras dinastias
no cenário nacional. Exímios conhecedores desse jogo de intenções veladas, cada
mandato reafirmava a sabedoria do caminho das pedras para se perpetuar no “oficio
de representante popular”, apesar de muitos serem médicos, advogados, funcionários
públicos etc.etc.etc. Acontece que, por mais constrangedor possa ser admitir, a
política tem sido sim, uma das carreiras mais bem pagas do país. Mas é bom que
se diga, também, que os representantes do povo são oriundos desse povo. Portanto,
se bons ou ruins eles refletem exatamente a sociedade a qual pertencem.
Assim, encontrar algum candidato imbuído
de consciência, responsabilidade e apreço ao dever cívico de servir ao povo
tornou-se tão desafiador quanto procurar uma agulha no palheiro. Porque não
bastasse o pendor das más índoles a influenciá-los, por trás de cada
candidatura, escondidos nas sombras, estão legiões de apoiadores e
patrocinadores fiando o seu toma-lá-dá-cá e definindo as pautas de seus
interesses próprios, que deverão ser a linha mestra a ser seguida pelo seu candidato.
De modo que eles já entram em cena carregados de obrigações e deveres muito
distantes das expectativas dos eleitores.
Uma pena que tudo isso passe à
margem dos interesses e das preocupações do cidadão; mas, que demonstra como o
brasileiro não foi preparado para assumir seu papel no mundo republicano e
democrático. Sim, porque nos tempos da Coroa Portuguesa ele não tinha sequer o
trabalho de escolher quem iria representá-lo, estava posto, definido. O lado
bom e ruim da vida já vinha preestabelecido.
Mas, quando tudo mudou, não mudou
de uma vez. Durante longos anos, as decisões partiam daqueles que detinham o
poder e que, também, eram os eleitores. Demorou bastante tempo para que todos
os brasileiros, enfim, pudessem exercer o direito de voto. Aí, já era tarde
para desconstruir o hábito legitimado de se deixar conduzir pelos outros. E as
eleições se transformaram nesse verdadeiro espetáculo.
No entanto, se a decepção se torna
cada vez mais pujante, como têm revelado os índices de abstenção e votos nulos
e brancos, sinal de que um lampejo de lucidez começa a aflorar. Já se foi o
tempo em que as eleições eram vencidas com base em uma presença maciça de
eleitores. Hoje, os percentuais vitoriosos não representam, na verdade, a
totalidade dos cidadãos; mas, uma parcela que esteve presente às sessões
eleitorais. Daí a importância dessa manifestação de incômodo, de desconforto,
de indignação, que são marcas fundamentais da cidadania, porque demonstram que
os indivíduos estão atentos aos rumos que o país toma, em decorrência de suas escolhas.
Eles sabem mensurar, então, o peso da sua responsabilidade enquanto eleitor.
Sabemos que o caminho a ser
trilhado entre o abandono do analfabetismo cidadão e a consolidação do
letramento cidadão é longo. Mas, nem por isso, se pode desistir ou esmorecer. Para
que haja razões a se comemorar, não basta a celebração no resultado do pleito
e, nem tampouco, 1000 dias. É preciso mais, bem mais. Afinal, não se pode permitir
nivelar o exercício do voto a nada que venha constituir uma alienação servil e
uma perda completa ao direito a uma vida digna, porque isso seria boicotar o
desejo de celebrar a cidadania no seu sentido mais pleno e inteiro.