sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A desigualdade que o mundo não quer ver


A desigualdade que o mundo não quer ver

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lentamente, 2021 vai sendo marcado por imagens bastante reflexivas. Enquanto na capital paulista, manifestantes do Movimento de Trabalhadores Sem-Teto (MTST) ocuparam de maneira pacífica a sede da Bolsa de Valores de São Paulo (B3), em protesto contra a fome, a desigualdade e a inflação, no Vaticano, o Papa Francisco se encontrou com famílias cristãs que fugiram do Afeganistão, e em Genebra, na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS), o diretor-geral Tedros Adhanom fez um alerta de que o sistema de saúde afegão está à beira do colapso, de modo que aproximadamente 50% das crianças correm risco de desnutrição.

Imerso nessas e em tantas outras notícias do cotidiano nacional e mundial está um ponto em comum, que teima em passar despercebido, em razão da dissociação que a sociedade teima em fazer. Como se as mazelas pudessem ser colocadas cada uma dentro de sua própria caixinha e analisadas a partir de parâmetros meramente superficiais. Esse é o motivo pelo qual a desigualdade vem se arrastando há milênios pela história da humanidade e se tornando mais e mais acirrada pelos gatilhos impostos a partir das Revoluções Industriais.

Os seres humanos se acostumaram a falar da fome, da miséria, do desemprego, da insalubridade, da ausência de moradia, das epidemias, das guerras, ... como se essas fossem questões emergidas de si mesmas. Quando, na verdade, deveriam se dar a oportunidade do questionamento sobre como esses processos sociais acontecem, se desenvolvem e se perpetuam através dos tempos. Porque em maior ou menor escala, por mais difícil e delicado seja admitir, foi a legitimação humana das desigualdades que permitiu ao mundo se configurar dessa maneira. Então, de repente, se começa a perceber que ao contrário dos discursos e narrativas dispersas aqui e ali, a igualdade nunca foi um direito; mas, sempre esteve no rol das grandes aspirações humanas.

Afinal, a resistência em relação à igualdade é uma marca presente no mundo, desde os primórdios. A partir do momento em que o Homo sapiens teve a consciência da sua força, do seu poder, da sua influência sobre o grupo, a raça humana perdeu o pudor de dominar, escravizar e controlar seus pares. Era o embrião do que se transformaria na divisão social do trabalho, um conceito desenvolvido pelo sociólogo Émile Durkheim, no século XIX. Mas, não se restringe a isso, pois não se trata somente do estabelecimento dos papéis sociais e produtivos; mas, também, do consumo.

Na medida em que a ideia da aquisição de bens, produtos e serviços passa a ocupar um espaço cada vez mais importante no cotidiano dos seres humanos, a sobrevivência e a dignidade se tornam relativizadas, porque as pessoas são estimuladas a querer muito além de suas próprias demandas. Estabeleceu-se, então, uma competição, até certo ponto velada, entre os indivíduos, a fim de que o nível de consumo delineasse os grupos sociais e o grau de pertencimento dentro dos mesmos.

Sem perceber, a humanidade estava sendo lançada a um ritmo frenético e compulsivo em torno do “ter”. Quem tem mais pode mais, quem tem menos pode menos. Quem tem mais é importante, quem tem menos é desimportante. Deixaram de “ser” para “ter”. Assim, a desigualdade foi se espalhando pelos mais diferentes contextos das relações sociais, sem jamais encontrar obstáculos efetivos ao seu movimento. A consolidação de um padrão para a pirâmide social, já havia se consagrado através dos tempos, então, os limites para questionamentos eram praticamente inexistentes.

O que, segundo Noam Chomsky, se traduz no fato de que “O controle fora do trabalho significa transformar as pessoas em autômatos em todos os aspectos de suas vidas, induzindo uma ‘filosofia de futilidade’ que as orienta para ‘as coisas superficiais da vida como o consumo de moda’. As pessoas que dirigem o sistema devem fazê-lo sem qualquer interferência da massa da população, que nada tem a fazer na arena pública. Dessa ideia surgiram enormes indústrias, desde a publicidade até as universidades, todas conscientemente dedicadas à convicção de que é preciso controlar as atitudes e opiniões, porque de outra forma o povo será muito perigoso”1.

Por isso a fome, a miséria, o desemprego, a insalubridade, a ausência de moradia, as epidemias, as guerras, ... não saem das pautas da mídia e dos governos, como, também, não são resolvidas. Afinal, o topo da pirâmide, a elite, não cogita flexibilizar suas regalias e privilégios, nem tampouco seus poderes sociais. De modo que essas questões têm sido tratadas a placebos. E dependendo dos cenários configurados, podem se agravar e se desdobrar em complexidades inimagináveis, como tem ocorrido nessa Pandemia.

Mas, talvez, pela força das inúmeras e graves ameaças à raça humana é que um incipiente modelo de desenvolvimento social venha adquirindo cada vez mais impulso na sociedade contemporânea. Por meio de discursos e narrativas de gente anônima e famosa que se predispôs a defender um conjunto de práticas indivisíveis e interdependentes no âmbito das dimensões econômicas, sociais e ambientais, se tem presenciado a busca de uma eficiência global capaz de garantir que todos sobrevivam no contraponto a uma iminente derrocada coletiva.

Foi assim, com a chamada Primavera Árabe, quando o Oriente Médio e o norte da África explodiram uma serie de revoltas populares, cujos desdobramentos são sentidos ainda hoje. Movidos pelas altas taxas de desemprego, precárias condições de vida, corrupção e governos autoritários, milhares foram as ruas manifestar sua indignação. Com o Occupy Wall Street, em 2011, quando aproximadamente 150 pessoas se instalaram no Zuccotti Park, em pleno distrito financeiro de Manhattan, Nova Iorque. Com cartazes e palavras de ordem, eles protestavam contra a desigualdade econômica e social nos Estados Unidos. De modo que a visibilidade dada por esses movimentos transcendeu as próprias fronteiras e mudanças significativas começaram a ser sentidas pela sociedade.

Uma delas veio através do conceito de Moda Afetiva ou Consumo Afetivo, que diz respeito a entender que há infinitas soluções criativas e sustentáveis para ressignificar o consumo da moda. Como escreveu Peter Stallybrass, em “O Casaco de Marx”, de 1998, “Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses 10 corpos sobrevivem. Elas circulam através de lojas de roupas usadas, de brechós e de bazares de caridade”.

Esse movimento, então, pode se expandir por qualquer outro bem material - móveis, utensílios, brinquedos, ... -; de modo que consiga ressignificar o sentido desses objetos, ao mesmo tempo em que resgate o ser humano das teias do consumismo e, por consequência, da desigualdade, criando uma ponte para a verdadeira consciência cidadã.  

Ainda que esse movimento de transposição entre a desigualdade e a igualdade pareça longo e árduo, é preciso insistir e resistir. E para isso, é fundamental que a sociedade esteja imbuída de uma consciência que a faça entender que “a desigualdade dos direitos é a primeira condição para que haja direitos” (Friedrich Wilhelm Nietzsche – filósofo alemão). Só assim, haverá substrato suficiente para florescer uma empatia, forte o bastante, para impedir os seres humanos de verem seus pares padecendo à mingua da desassistência, do desamor, da negligência e da crueldade, oriundos da sua omissão expressa por uma única palavra, a desigualdade.  



1 Ambições imperiais: o mundo pós-11/9 / Noam Chomsky; em entrevista a David Barsamian. 


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