A
desigualdade que o mundo não quer ver
Por
Alessandra Leles Rocha
Lentamente, 2021 vai sendo
marcado por imagens bastante reflexivas. Enquanto na capital paulista,
manifestantes do Movimento de Trabalhadores Sem-Teto (MTST) ocuparam de maneira
pacífica a sede da Bolsa de Valores de São Paulo (B3), em protesto contra a
fome, a desigualdade e a inflação, no Vaticano, o Papa Francisco se
encontrou com famílias cristãs que fugiram do Afeganistão, e em Genebra, na
sede da Organização Mundial da Saúde (OMS), o diretor-geral Tedros
Adhanom fez um alerta de que o sistema de saúde afegão está à beira do
colapso, de modo que aproximadamente 50% das crianças correm risco de
desnutrição.
Imerso nessas e em tantas
outras notícias do cotidiano nacional e mundial está um ponto em comum, que
teima em passar despercebido, em razão da dissociação que a sociedade teima em
fazer. Como se as mazelas pudessem ser colocadas cada uma dentro de sua própria
caixinha e analisadas a partir de parâmetros meramente superficiais. Esse é o
motivo pelo qual a desigualdade vem se arrastando há milênios pela história da
humanidade e se tornando mais e mais acirrada pelos gatilhos impostos a partir
das Revoluções Industriais.
Os seres humanos se
acostumaram a falar da fome, da miséria, do desemprego, da insalubridade, da
ausência de moradia, das epidemias, das guerras, ... como se essas fossem
questões emergidas de si mesmas. Quando, na verdade, deveriam se dar a oportunidade
do questionamento sobre como esses processos sociais acontecem, se desenvolvem
e se perpetuam através dos tempos. Porque em maior ou menor escala, por mais
difícil e delicado seja admitir, foi a legitimação humana das desigualdades que
permitiu ao mundo se configurar dessa maneira. Então, de repente, se começa a
perceber que ao contrário dos discursos e narrativas dispersas aqui e ali, a
igualdade nunca foi um direito; mas, sempre esteve no rol das grandes
aspirações humanas.
Afinal, a resistência em
relação à igualdade é uma marca presente no mundo, desde os primórdios. A
partir do momento em que o Homo sapiens
teve a consciência da sua força, do seu poder, da sua influência sobre o grupo,
a raça humana perdeu o pudor de dominar, escravizar e controlar seus pares. Era
o embrião do que se transformaria na divisão social do trabalho, um conceito
desenvolvido pelo sociólogo Émile Durkheim, no século XIX. Mas, não se
restringe a isso, pois não se trata somente do estabelecimento dos papéis
sociais e produtivos; mas, também, do consumo.
Na medida em que a ideia da
aquisição de bens, produtos e serviços passa a ocupar um espaço cada vez mais
importante no cotidiano dos seres humanos, a sobrevivência e a dignidade se
tornam relativizadas, porque as pessoas são estimuladas a querer muito além de
suas próprias demandas. Estabeleceu-se, então, uma competição, até certo ponto
velada, entre os indivíduos, a fim de que o nível de consumo delineasse os
grupos sociais e o grau de pertencimento dentro dos mesmos.
Sem perceber, a humanidade
estava sendo lançada a um ritmo frenético e compulsivo em torno do “ter”. Quem tem mais pode mais, quem tem
menos pode menos. Quem tem mais é importante, quem tem menos é desimportante. Deixaram
de “ser”
para “ter”.
Assim, a desigualdade foi se espalhando pelos mais diferentes contextos das
relações sociais, sem jamais encontrar obstáculos efetivos ao seu movimento. A
consolidação de um padrão para a pirâmide social, já havia se consagrado
através dos tempos, então, os limites para questionamentos eram praticamente
inexistentes.
O que, segundo Noam Chomsky, se
traduz no fato de que “O controle fora do
trabalho significa transformar as pessoas em autômatos em todos os aspectos de
suas vidas, induzindo uma ‘filosofia de futilidade’ que as orienta para ‘as
coisas superficiais da vida como o consumo de moda’. As pessoas que dirigem o
sistema devem fazê-lo sem qualquer interferência da massa da população, que
nada tem a fazer na arena pública. Dessa ideia surgiram enormes indústrias, desde
a publicidade até as universidades, todas conscientemente dedicadas à convicção
de que é preciso controlar as atitudes e opiniões, porque de outra forma o povo
será muito perigoso”1.
Por isso a fome, a miséria, o
desemprego, a insalubridade, a ausência de moradia, as epidemias, as guerras,
... não saem das pautas da mídia e dos governos, como, também, não são
resolvidas. Afinal, o topo da pirâmide, a elite, não cogita flexibilizar suas
regalias e privilégios, nem tampouco seus poderes sociais. De modo que essas
questões têm sido tratadas a placebos. E dependendo dos cenários configurados,
podem se agravar e se desdobrar em complexidades inimagináveis, como tem ocorrido
nessa Pandemia.
Mas, talvez, pela força das
inúmeras e graves ameaças à raça humana é que um incipiente modelo de
desenvolvimento social venha adquirindo cada vez mais impulso na sociedade
contemporânea. Por meio de discursos e narrativas de gente anônima e famosa que
se predispôs a defender um conjunto de práticas indivisíveis e interdependentes
no âmbito das dimensões econômicas, sociais e ambientais, se tem presenciado a
busca de uma eficiência global capaz de garantir que todos sobrevivam no
contraponto a uma iminente derrocada coletiva.
Foi assim, com a chamada Primavera
Árabe, quando o Oriente Médio e o norte da África explodiram uma serie
de revoltas populares, cujos desdobramentos são sentidos ainda hoje. Movidos pelas
altas taxas de desemprego, precárias condições de vida, corrupção e governos
autoritários, milhares foram as ruas manifestar sua indignação. Com o Occupy
Wall Street, em 2011, quando aproximadamente 150 pessoas se instalaram
no Zuccotti Park, em pleno distrito financeiro de Manhattan, Nova Iorque. Com
cartazes e palavras de ordem, eles protestavam contra a desigualdade econômica e
social nos Estados Unidos. De modo que a visibilidade dada por esses movimentos
transcendeu as próprias fronteiras e mudanças significativas começaram a ser
sentidas pela sociedade.
Uma delas veio através do
conceito de Moda Afetiva ou Consumo Afetivo, que diz respeito a
entender que há infinitas soluções criativas e sustentáveis para ressignificar
o consumo da moda. Como escreveu Peter Stallybrass, em “O Casaco de Marx”, de 1998, “Ao
pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma
meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses 10 corpos
sobrevivem. Elas circulam através de lojas de roupas usadas, de brechós e de bazares
de caridade”.
Esse movimento, então, pode se
expandir por qualquer outro bem material - móveis, utensílios, brinquedos, ...
-; de modo que consiga ressignificar o sentido desses objetos, ao mesmo tempo
em que resgate o ser humano das teias do consumismo e, por consequência, da
desigualdade, criando uma ponte para a verdadeira consciência cidadã.
Ainda que esse movimento de
transposição entre a desigualdade e a igualdade pareça longo e árduo, é preciso
insistir e resistir. E para isso, é fundamental que a sociedade esteja imbuída
de uma consciência que a faça entender que
“a desigualdade dos direitos é a primeira condição para que haja direitos”
(Friedrich Wilhelm Nietzsche – filósofo alemão). Só assim, haverá substrato
suficiente para florescer uma empatia, forte o bastante, para impedir os seres
humanos de verem seus pares padecendo à mingua da desassistência, do desamor,
da negligência e da crueldade, oriundos da sua omissão expressa por uma única
palavra, a desigualdade.