Ódio.
Fúria. Cólera. Raiva. Gana. Ira. ... E como diria Mahatma Gandhi, “Olho por
olho, e o mundo acabará cego”.
Por Alessandra
Leles Rocha
Só para relembrar, a Lei n.º
7.716/1989, diz “Serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes
de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”
(art. 1º).
Depois veio a Lei n.º
14.532/2023 para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prevendo
pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade
esportiva ou artística e prevê pena para o racismo religioso e recreativo e
para o praticado por funcionário público.
E por fim, “‘Em 2019, o STF
decidiu que a homofobia é um crime imprescritível e inafiançável. Na decisão o
STF entendeu que se aplicava aos casos de homofobia e transfobia a lei do Racismo
(Lei n.º 7.716/1989). O artigo 20 da lei em questão prevê pena de um a três
anos de reclusão e multa para quem incorrer nessa conduta. Há, ainda, a
possibilidade de enquadrar uma ofensa homofóbica como injúria, segundo o artigo
140, §3º do CP’” 1.
Portanto, não podemos aceitar os
episódios criminosos de violência física e/ou verbal contra quaisquer seres
humanos, como o recente caso do jogador de vôlei de praia que denunciou ataques
homofóbicos em partida do Circuito Brasileiro 2.
Não há nada de banal, ou de trivial, nesse tipo de conduta. Muito pelo
contrário. O que temos bem diante do nariz é a famigerada tecitura do ódio, nas
suas mais sórdidas expressões.
Bem, dizem os psicólogos e psicanalistas
que tal sentimento emerge de uma aversão profunda, desencadeada por medo ou por
raiva, indicando a devida dimensão da vulnerabilidade humana diante de algo ou
alguém. Nesse sentido, crenças, valores, princípios e/ou convicções, podem sim,
deflagrar o ódio; sobretudo, diante de conjunturas econômicas adversas, ou
incompatibilidades sociais demarcadas, ou promessas frustradas.
Infelizmente, conforme explica
Zygmunt Bauman, “a ansiedade e a audácia, o medo e a coragem, o desespero e
a esperança nascem juntos, mas é a proporção na qual elas se misturam é que
depende dos recursos de posse de cada um. E a contemporaneidade é especialista
em transformar uma coisa em outra e essa capacidade presente nos seres humanos
os fez compreender que poderiam ‘realizar sem limites’, de acordo com a própria
vontade” 3.
Assim, ao ser guiado pela razão
de sua própria vontade ou ser forçado a ser livre, essa nova era de realidades flexíveis
e de liberdade de escolha acaba conduzindo à improvável dualidade da “tentação
totalitária” (conceito da filósofa Hannah Arendt) em relação aos direitos
humanos, ou seja, ao desejo de uma “dominação permanente de todos os
indivíduos em toda e qualquer esfera da vida” (ARENDT, 1989, p.375) 4.
Porém, esse nível de dominação é
impossível. Haverá sempre exceções. Indivíduos que não se submetem a total
autoritarismo, ainda que isso lhes custe a própria vida. Daí o ódio. O ódio de
quem quer dominar e daquele a quem se pretende dominar. Quem leu o livro ou
assistiu ao filme O ódio que você semeia (The hate U give), 2017,
de Angie Thomas, tem uma ótima compreensão de como o ódio é gestado na
sociedade, pela perspectiva da discussão do racismo nos EUA.
Como escreveu Nelson Mandela, “Ninguém
nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele, por sua origem ou ainda por
sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a
odiar, elas podem ser ensinadas a amar” (Long Walk to Freedom, 1995).
Daí a necessidade de não se tratar a questão do ódio apenas com base na punição
jurídica, das leis. É preciso construir uma cultura contra o ódio.
E isso implica numa desconstrução
profunda de valores, de crenças, de princípios, os quais no Brasil, por
exemplo, estão diretamente associados à herança colonial. Afinal, ela deixou
marcas importantes no que diz respeito a hierarquização social entre
importantes e desimportantes, como se a vida humana não tivesse um único peso e
valor. Nesse sentido, o inconsciente coletivo acabou sendo moldado por esse enviesamento
que propicia um afloramento do ódio a partir das tensões, dos discursos e das violências.
Daí a importância de toda e
qualquer reflexão a respeito. Porque ao se descortinar as inúmeras camadas que
revestem esse assunto, é possível trazer à luz uma consciência sobre o quão
vazio é o ódio. Ele agride, ele ofende, ele mata; mas, em momento algum da
história humana, o ódio conseguiu promover sinais de transformação, ou de
evolução, ou de desenvolvimento. É como uma chama que arde e apaga em si mesmo.
Consome muita energia para uma luta que é inglória.
Hoje, você odeia fulano. Amanhã, beltrano.
Depois, cicrano. E por aí, vai. Acontece que sempre haverá algo ou alguém para
desafiar a sua vulnerabilidade narcísica. Para apontar o seu devido tamanho
existencial entre os demais. Portanto, lembre-se de que “Através da violência
você pode matar o assassino, mas não pode matar o assassinato. Através da violência
você pode matar um mentiroso, mas não pode matar a mentira. Através da violência
você pode matar uma pessoa odienta, mas não pode matar o ódio. A escuridão
não pode extinguir a escuridão. Só a luz pode” (Martin Luther King Jr.).
1 https://direitorio.fgv.br/noticia/homofobia-e-um-crime-imprescritivel-e-inafiancavel-no-brasil-desde-2019-ressalta-ligia#:~:text=28%2F06%2F2022-,%E2%80%9CA%20homofobia%20%C3%A9%20um%20crime%20imprescrit%C3%ADvel%20e%20inafian%C3%A7%C3%A1vel%20no%20Brasil,Diversidade%20da%20FGV%20Direito%20Rio
2 https://ge.globo.com/volei-de-praia/noticia/2024/03/16/jogador-de-volei-de-praia-denuncia-ataques-homofobicos-durante-partida-do-circuito-brasileiro.ghtml
3 BAUMAN,
Z. Identity in the Globalizing World, 2007. (https://www.researchgate.net/publication/227983940_Identity_in_the_Globalising_World)
4 ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.