segunda-feira, 31 de julho de 2023

E no frigir dos ovos...


E no frigir dos ovos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Segura! O furacão da insanidade anda solto pelo Brasil e tenta convencer a todos de que nada tem a ver com a nada na história recente do país. Acontece que não é bem assim! Basta um bocadinho de reparo para perceber como os fios da meada se cruzam afinadinhos. Nada de acaso. Ou de coincidência. A lógica está ali, presente, pulsando realisticamente diante da reflexão. Assim, o texto de hoje será eclético.  

Comecemos, então, pelo PIX milionário 1. Que deve ser motivo de apuração das autoridades competentes, não resta a menor dúvida. Que causa estranheza, nem tanto. Mas, colocando todas as teorias e conjecturas à parte, finalmente, se desvenda a razão da eufórica implantação desse sistema de transferência monetária e de pagamento eletrônico instantâneo, pelo ex-governo.

Não, não era para facilitar a vida do cidadão comum, ou do vendedor ambulante, ou de quem quer que seja. A sanha dos banqueiros e das políticas econômicas nunca trabalharam ajustadas aos interesses da grande massa; mas, deles próprios e das elites. Foi a luz de suas perspectivas e expectativas que as ideias foram, portanto, gestadas e colocadas em prática.

Bem, no fim das contas, o PIX não só fez a vez de um bom estratagema para burlar os limites e os protocolos das doações de campanha, ainda que fora de campanha e por um político recentemente tornado inelegível; mas, escancarou de vez, como a Direita e seus matizes mais radicais apostam no poder econômico para não sair da cena política nacional 2.

Dito isso, vamos para a próxima pauta, ou seja, a violência policial. São Paulo 3. Bahia 4. Não importa o ente da federação. Resquício histórico do Brasil colonial, quando o capitão do mato fazia a vigilância e a captura dos escravos fugidos dos grandes latifúndios, a violência policial contemporânea se dá praticamente nos mesmos moldes, na medida em que prioritariamente as ações acontecem contra indivíduos pertencentes às camadas mais desassistidas e vulnerabilizadas da sociedade.

A polícia contemporânea exorciza suas próprias fragilidades e desamparos institucionais, reproduzindo a fúria contida no seu inconsciente coletivo. Como se o policial que, quase sempre é natural das periferias, dos bairros mais humildes, se despisse de qualquer vestígio de alteridade e assumisse o papel de algoz de si mesmo, na figura do outro. Mata em nome do medo de morrer, que lhe queima como uma febre intermitente.

Entretanto, a escalada recente da violência policial se cruza com a notícia do novo mutirão carcerário proposto pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 5. É de conhecimento público a falência do modelo carcerário nacional e como isso se traduz em um mecanismo de invisibilização e de exclusão aporofóbica, dada a representatividade majoritária de um perfil de cidadãos que dá entrada diariamente nas prisões e presídios nacionais. Muitos deles, inclusive, vítimas inocentes do próprio sistema policial e judiciário.

De modo que a ideia do mutirão é mitigar o abandono a que milhões de presos estão submetidos, no que diz respeito ao curso dos trâmites legais. Porém, não entra nesse contexto a discussão ética e social em relação às desigualdades que são, de fato, as grandes responsáveis pela construção da violência e da criminalidade nas suas mais diversas formas e conteúdos. É nesse viés que, de repente, você se dá conta da distorção ética e social presente nesse assunto.

Sim, porque se o sistema carcerário brasileiro é, de certa forma, um depósito de seres humanos abandonados e rejeitados, tanto por uma parcela significativa da população quanto pelo próprio Estado, que sentem por eles uma repulsa genuína e independente do delito ou infração que tenham cometido, dentro desse espaço geográfico ainda há uma esperança de sobrevivência para esses indivíduos. Porque nas ruas, eles podem não ter a mesma oportunidade em razão do modus operandi que ressalta a violência policial.   

E para não me alongar muito mais, o último ponto trata da obscura aliança ultradireitista entre o ex-governo brasileiro e os representantes argentinos 6, e o relatório das Forças Armadas sobre os atentados na capital federal em 08 de janeiro 7.  Dá para juntar os assuntos, porque o resumo da ópera é um só, golpe de estado. É curioso como a Direita e todos os seus matizes, especialmente os mais radicais e extremistas, são dados a contar vantagem, a fazer e a acontecer, a exibições explícitas de valentia; mas, na hora de honrar as convicções, as crenças, os princípios, eles simplesmente se desresponsabilizam. É um tal de “não foi bem assim”, que chega a ser vexatório!   

Mas, dá para entender. Faz parte do método deles. Sobretudo, quando se trata dos membros da ultradireita que tenta se reafirmar novamente no cenário geopolítico global. Enquanto, eles entretêm as autoridades e os veículos de informação e de comunicação com suas desculpas esfarrapadas, seus silêncios desconcertantes, eles arrecadam recursos milionários, entre seus seguidores e simpatizantes, para disseminar o medo e o terror, com ideias do tipo “a volta do comunismo”.   

Portanto, de ponta a ponta, essa breve reflexão não traz nenhuma novidade. Tudo aqui é uma miscelânea de discussões históricas, cujo protagonismo está enraizado na Direita e seus matizes. Desigualdade social. Tradição e conservadorismo. Individualismo. Racismo. Aporofobia. Necropolítica. ... O pulo do gato está, então, no fato de que é um erro crasso pensar que o fim das eleições, em outubro de 2022, tenha arrefecido o ímpeto desse espectro político-partidário; bem como, reduzido a sua repercussão midiática. Não, eles estão aí. Todos os dias. Nas linhas e nas entrelinhas. O que significa que esse deve ser o ponto de partida para toda e qualquer análise de agora em diante.

 



domingo, 30 de julho de 2023

O péssimo hábito da desresponsabilização contemporânea


O péssimo hábito da desresponsabilização contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Observando o franco movimento social de abstenção das responsabilidades, decidi escrever a respeito sob um viés ainda mais desconfortável. Nem sempre a concretude dos acontecimentos é a causa em si das dores, no contexto das relações humanas. Se desresponsabilizar pela dor alheia através da negação do que disse, fez e/ou expressou pode ser muito mais perverso e cruel. Sobretudo, dentro das especificidades conjunturais de cada situação.

Ainda que seja possível compreender que essa abstenção das responsabilidades seja um subterfúgio para resguardar algum tipo de imagem socialmente aceita, quem padece o sofrimento causado não esquece. Afinal, o poço das fragilidades humanas não é passível de medição. Assim, dependendo do que se ouve, do que se recebe, do que se experencia, o impacto pode ser efetivamente devastador, especialmente, quando ele reproduz algo semelhante já acontecido. Nessas horas, um mínimo arranhão que seja pode abrir a ferida e fazê-la sangrar novamente.

Por isso, o ser humano precisa ser mais cuidadoso, mais empático. Apesar de vivermos tempos de um individualismo narcísico e egoísta, nenhum ser humano é uma ilha. A existência humana está sob um regime de relações sociais, menos e mais complexas, com uma pluralidade infinita de pessoas. De modo que não temos como precisar, com exatidão, como os nossos atos, decisões, escolhas, podem afetar diretamente a estabilidade e o equilíbrio do outro. Principalmente, quando a realidade do outro parece segura por pilares arduamente construídos.

Isso explica porque, então, é fundamental entender que a nossa autonomia existencial tem limites. Não dá para agir segundo a vontade dos ventos da própria cabeça. Instintos e impulsos nunca foram bons conselheiros e se eles emergem, de uma hora para outra, dentro de uma personalidade repleta de crenças, valores e princípios, é sinal de que a coisa está transitando por caminhos perigosos. A não ser que estejamos falando de alguém com transtorno bipolar!

Ninguém muda tanto e repentinamente se não fosse esse o desejo inconsciente que aguardava oportunidade para romper. Sinal claro de que aquela imagem não era, de fato, o que se mostrava a princípio. E como não poderia deixar de ser, isso choca, desconforta; pois, implica na necessidade de reconhecimento dessa nova persona que se apresenta. Ora, e o indivíduo nem se deu ao trabalho de questionar se o outro estava pronto para esse reaprendizado, para essa avalanche de surpresas!

Pois é, de repente, o sério vira debochado, o conservador vira moderninho, o confiável vira mentiroso, ... e aquela pessoa, que um dia você acreditou conhecer, desaparece como em um passe de mágica. Tudo porque ela decidiu navegar por outros mares munida de seus direitos, cabendo ao resto do mundo se ajustar, se modelar, se render às suas novas decisões. E se para isso ela vai precisar ofender, magoar, desrespeitar etc.etc.etc., quem quer que seja, esteja certo de que ela vai. Porque depois ela vai se desresponsabilizar através da negação do que disse, fez e/ou expressou.

Assim, lamento informar que quaisquer tentativas de diálogo com alguém assim, é inútil. O sujeito vira daqui, mexe dali, e cria na sua mente um discurso totalmente contrário a lógica e à realidade dos acontecimentos. De bandido para mocinho, ele se transforma num piscar de olhos. Ele passa a ser a vítima, o ofendido, o agredido, pela perspectiva de que ele estava no seu direito de decidir, de escolher. Era a sua vida. ... Como se vivesse sozinho na sua bolha!

E aí, nessa jornada de acontecimentos, o outro começa a perceber o tamanho do engano que reside em depositar confiança, afeto, a pessoas com esse perfil. O ideário que se tinha é sumariamente desconstruído, como se tivesse prazo de validade e terminasse quando o indivíduo encontrasse alguma possibilidade de subverter a lógica.  Portanto, não é qualquer mudança, é uma mudança identitária, que nunca chega com aviso prévio, com cartas na mesa, com verdades ditas com clareza.

Desse modo, por mais que o outro queira tentar, e manter a tecitura desses laços, chega um momento que não dá. A sua tentativa de se fazer caber nessa história é demasiadamente indigna, porque enquanto se preocupa em cultivar respeitosamente a relação, na sua integridade e integralidade, o outro se contenta com migalhas porque precisa defender a escolha que fez. E assim, as importâncias e as desimportâncias são estabelecidas sem que, no entanto, tenha havido qualquer manifestação verdadeiramente consistente e respeitosa em assumir as responsabilidades quanto ao que foi dito, feito ou expresso.

De certa forma, isso explica porque as mágoas acabam se tornando tão difíceis de serem superadas. Elas acabam caindo numa vala rasa de esquecimento; mas, sem quaisquer trabalhos de superação, de resolução definitiva. Ficam ali, fermentando, aguardando, como se esperassem uma autodepuração. E como isso não acontece e a vida é cheia de gatilhos para acionar as nossas dores mais profundas, vez por outra, elas voltam a pulsar, a incomodar. Lembra da canção “Revelação” (1978), de Raimundo Fagner 1?

A ideia dessa breve reflexão é pensar a respeito desse movimento que nos conduz a repetir velhos padrões, a andar por círculos de dor e sofrimento que já deveriam ter sido superados. Ainda que pareça contraditório, o mundo contemporâneo tende a nos fazer almejar, cada vez mais, o pertencimento, a aceitação, a participação. Porém, isso não pode ser à custa de sofrimento, de dor, de ruptura com o nosso amor-próprio. Talvez, por conta disso, Caio Fernando Abreu fez questão de deixar o seguinte aviso: “Tô me afastando de tudo que me atrasa, me engana, me segura e me retém. Tô me aproximando de tudo que me faz completo, me faz feliz e me quer bem”.

Crianças e adolescentes na grande vitrine contemporânea


Crianças e adolescentes na grande vitrine contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em tempos da midiatização cibernética de crianças e adolescentes, cada vez mais extrema, é preciso parar e refletir. A força das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) tem sim, amplificado a demanda para uma análise mais crítica sobre a dinâmica do poder parental na sociedade. O modo como muitas famílias se apropriam da imagem e dos talentos de seus filhos não é tão irrelevante como tentam fazer parecer; afinal, toda ação é revestida de uma intenção.

Na verdade, essa é uma discussão que deveria ter começado ainda nos tempos analógicos. Uma rápida consulta pelos arquivos de imprensa para se deparar com histórias e mais histórias de crianças e adolescentes que foram vítimas do abuso monetizante por parte de seus pais e/ou responsáveis. Hollywood, por exemplo, está repleto de casos assim. Mas, não podemos nos esquecer do mercado publicitário, dos concursos de beleza infantis, de programas de televisão, esportes, mundo da moda, enfim...

Aliás, recentemente, um jovem ingressou com uma ação contra uma banda de rock por conta do uso de sua imagem em uma capa de disco, quando ele era só um bebê e não tinha o poder para decidir a respeito. Apesar de não ter obtido êxito na justiça, o fato em si coloca sobre a mesa os limites éticos implicados no poder familiar. Sim, porque a criança cresce e, dessa forma, não permanecerá sob a tutela e as decisões de seus pais e/ou responsáveis, podendo futuramente questionar sobre certos aspectos da sua história que lhe causam desconforto.

E dentro desse viés, um aspecto chama muita atenção. Independentemente se em tempos analógicos ou digitais, a exposição de crianças e de adolescentes pode resultar em geração de receita. Tomando por base a legislação brasileira, a qual determina limites para o trabalho infantil, parece haver, cada vez com mais frequência, um conflito de interesses nesse sentido. As linhas que separam o poder familiar, ou seja, o conjunto de direitos e obrigações dos pais e/ou responsáveis em relação aos filhos menores de idade, e a legislação trabalhista 1 parecem demasiadamente fragilizadas pela própria conjuntura social, sem que as autoridades competentes exerçam uma arbitragem mais incisiva a respeito.

Valendo-se da sutileza derivada das TICs para justificar a exposição, sob o pretexto de compartilhar com amigos e familiares os feitos e o crescimento dos filhos, pais e/ou responsáveis parecem se esquecer da dimensão e do alcance do ambiente virtual. O que aparentemente tinha um caráter privado passa a se tornar público, ainda que à revelia da sua ação direta. E se dessa publicização emerge a monetização, também, emergem riscos inimagináveis para crianças e adolescentes como, por exemplo, o cyber bullying e a pedofilia. Ainda que, na maioria das vezes, as mídias sociais em que elas aparecem estejam sob controle de pessoas adultas, isso não é o bastante para impedir dissabores e consequências eventualmente desastrosas.

Ora, estamos falando de indivíduos em processo de formação psicoemocional, portanto, bastante frágeis e vulneráveis aos impactos do mundo contemporâneo. O fato de muitas delas terem nascido sob o signo da tecnologia, isso não significa que elas são menos humanas ou blindadas aos efeitos tóxicos e deletérios desse novo contexto social. E não é difícil imaginar, na medida em que a monetização vai adquirindo cifras cada vez mais expressivas, como o peso dos compromissos e responsabilidades sobre essas crianças e adolescentes também se intensifica. O que parecia ser uma brincadeira, uma atividade lúdica, se transforma em obrigação, em compromisso, por força, inclusive, de contratos.

Ora, se algo assim já mexe profundamente com o equilíbrio psicoemocional de um adulto, imagina de uma criança ou adolescente? Ela não tem como responder se quer ou não ser transformada em produto, ser capitalizada ao sabor de likes e curtidas, se está preparada para a volatilidade do interesse midiático, e tantas outras questões. Inclusive, ela nem pode decidir sobre o que, como e quando aplicar os recursos obtidos a partir da sua imagem. Fato que já fez levar muitas celebridades mirins aos tribunais, depois que se tornaram adultos, contra os próprios familiares e/ou responsáveis. 

Talvez, por conta do futebol, por exemplo, muitos acreditam que esse é um fenômeno restrito às camadas menos privilegiadas da população, que por força das conjunturas socioeconômicas acabam levadas a tal. Só que não. Tem sido sim, mais e mais comum, encontrar nas diferentes camadas da sociedade, incluindo as mais abastadas, crianças e adolescentes submetidas às mesmas práxis de exibição e monetização. Algumas, inclusive, ostentando com tão pouca idade, pequenas fortunas se comparado à imensa realidade nacional.

Acontece que essa teia em que são envolvidas, desde a mais tenra idade, tira delas não apenas o próprio processo de construção identitário, no que diz respeito às suas crenças, valores e princípios; mas, estabelece um fastio em relação às suas projeções de futuro, de sonhos, de realizações, como se tudo estivesse pronto, definido. Há, de certo modo, uma desconsideração quanto ao imponderável, ao insólito da vida, porque essas crianças e adolescentes estão sendo lançadas a um contexto de idealização que as impede de aprender a lidar com as adversidades, em todas as suas formas e conteúdos.

Queiramos ou não aceitar, esses são tempos de um grave adoecimento mental na sociedade. E isso nos obriga, cada vez mais, a nos atentar sobre os mínimos gestos nas relações humanas. Na frenética corrida em busca do ter, para nos satisfazer a avalanche de desejos e delírios consumistas, estamos nos esquecendo do ser. Segundo Gonzalez Pecotche, “O que, na verdade, oprime o espírito, o que provoca inquietudes e desassossegos, é a pobreza mental. Poderemos ser ricos economicamente, mas se não somos capazes de oferecer, a nós mesmos, as enormes vantagens que a riqueza do conhecimento pode proporcionar, haverá muita miséria dentro de nossos palácios ou de nossas vestes”.

Não é à toa, então, que se faz fundamental a reflexão sobre esse movimento de apropriação indébita do ser pelo poder familiar. Tamanha exposição, exibição, monetização, está deteriorando a qualidade da essência humana, no que diz respeito as atuais e às futuras gerações. Está produzindo seres que aprendem, desde muito cedo, que o material é o bastante. A sociedade contemporânea desalinhou a régua das aptidões, dos talentos, das conquistas, em nome do julgamento de qualquer desconhecido que dê o crivo de aprovação através de um like ou de uma curtida. Pois é, só que é desse movimento que emergem as ondas de ódio, de violência, de intolerância, de egoísmo, de individualismo, que vêm consumindo a coletividade humana e comprometendo os afetos, os valores, os princípios, incluindo o próprio esgarçamento do ambiente familiar.  



1 Lei n. º 8.069, de 13/07/1990 – Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.  Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm 

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Sob sigilo


Sob sigilo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A grande notícia do dia foi, sem dúvida alguma, que “Planalto sob Bolsonaro escondeu projeções de casos e mortes na pandemia. Mais de mil relatórios da Abin e do GSI ficaram sob sigilo e alertavam sobre alta da Covid-19, crise política e vacinas” 1. Aos que ainda duvidavam está aí a prova irrefutável da necessidade de se nomear corretamente as coisas e os acontecimentos.

Ora, vamos e convenhamos que uma grande parte da mídia, tradicional e alternativa, se omitiu em informar, usando as palavras certas, sobre o andar da carruagem do ex-governo, ao longo dos seus quatro anos. Havia sempre uma busca por atenuar ou descaracterizar o que de fato acontecia, como se não existissem propósitos ou intenções convictas a respeito daquele modo de fazer.

E do que trata, então, a notícia acima senão de dois conceitos básicos que nortearam todos os caminhos do ex-governo: a necropolítica 2 e a aporofobia 3. Sim, porque essas eram as bases primordiais para sustentar o restante do ideário direitista, com todos os seus vieses mais ou menos radicais e extremistas, que estava no poder.

Portanto, nada mais nada menos, do que a expressão clássica das elites burguesas emergidas das heranças coloniais e consolidadas pela Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, e de seus fundamentos socioeconômicos. No mundo milimetricamente idealizado por essas pessoas, as camadas menos favorecidas e demasiadamente desprivilegiadas, não passam de peças de reposição para mover as engrenagens dos seus poderes e da acumulação de riquezas.

A vida desses pobres diabos, então, não vale absolutamente nada aos olhos de quem está no topo da pirâmide social. De modo que a pandemia caiu como uma luva para o projeto necropolítico e aporofóbico nacional, na medida em que não precisariam exercitar extremos esforços para atuar na invisibilização plena desses cidadãos; mas, também, lançar mão de menos recursos e investimentos para políticas públicas no setor social.

Assim, valendo-se da capilaridade das mídias sociais contemporâneas, membros e simpatizantes da Direita e de seus matizes se colocaram em missão de manipular e persuadir, o maior número de pessoas, em uma verdadeira cruzada negacionista. Em um primeiro momento foram contra o uso de máscaras, de medidas contínuas de higienização das mãos, de isolamento social. Depois se colocaram como árduos defensores de medicamentos comprovadamente ineficazes e contra as vacinas.

O que não se viu pronunciar foi o fato de que o negacionismo tinha como alvo, não necessariamente a pandemia, mas a destruição completa do Sistema Único de Saúde (SUS). Na verdade, ainda sem saber que um novo e letal vírus cruzaria o horizonte planetário, em 2020, o ex-governo brasileiro tinha em seus planos a privatização dos serviços de saúde, a fim de beneficiar os lobbies do setor e eximir o governo das suas responsabilidades institucionais e orçamentárias nesse campo. No entanto, a Covid-19 chegou e, se não fosse o SUS, os números da letalidade teriam sido ainda mais cruéis e perversos.

Aliás, gostaria de chamar a atenção sobre o uso do termo “ex-governo”, porque todo esse processo acabou sendo referendado por todas as instâncias governamentais, não ficando restrito à figura desse ou daquele indivíduo, bem como ao espaço exclusivo do Ministério da Saúde. Veja que a própria notícia, publicada hoje, dá conta do conhecimento dos setores de inteligência, ligados à área militar. Mas, participaram dessa construção necropolítica e aporofóbica o Ministério da Economia, o Ministério do Trabalho e todos os demais, fosse de maneira diretíssima ou indireta.

Isso mostra como a necropolítica e aporofobia são presentes na construção ideológica das elites dominantes e arrebanham seguidores nos mais diferentes espectros sociais.  Do mesmo modo que o Titanic, em 1912, foi construído com número reduzido de botes salva-vidas, ou seja, foi programado para trazer segurança apenas à primeira classe, cidades como São Paulo, em pleno século XXI, não dispõem de abrigos suficientes, em termos qualitativos e quantitativos, para atender uma legião de sem-teto que cresceu em razão das políticas ultra neoliberais disseminadas, particularmente, pelos ultradireitistas.

Resta, então, saber se agora, diante da existência de “mais de mil relatórios da Abin e do GSI” durante o período pandêmico, quais medidas práticas e judiciais serão tomadas a respeito. Se os silêncios, sob os quais algumas autoridades da época vêm se refugiando, permanecerão ou não desalinhando o peso igualitário das leis, o qual, pelo menos em tese, não permite distinção de quaisquer naturezas entre os cidadãos brasileiros.  

Afinal, nomeando corretamente os acontecimentos, a notícia de hoje, em síntese fala da ocorrência de um crime cometido contra a população brasileira, o qual pode ser desdobrado, em outros tantos, segundo o entendimento jurídico nacional. Como escreveu Rui Barbosa, “A justiça pode irritar porque é precária. A verdade não se impacienta porque é eterna”. Assim, aguardemos.

 



2 Uso do poder político e social, especialmente por parte do estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões (gerando condições de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão e violência, em condições de vida precárias, por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve morrer. [Termo cunhado pelo filósofo, teórico político e historiador camaronês Achille Mbembe, em 2003, em ensaio homônimo e, posteriormente, livro] – Fonte:  https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/necropolitica#:~:text=%E2%80%9C'Necropol%C3%ADtica%20%C3%A9%20a%20capacidade%20de,morrer%2C%20%C3%A9%20fazer%20morrer%20tamb%C3%A9m.

3 Repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos; hostilidade para com pessoas em situação de pobreza ou miséria. [Do grego á-poros, ‘pobre, desamparado, sem recursos’ + -fobia] – Fonte: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/aporofobia#:~:text=Defini%C3%A7%C3%A3o%3A,recursos'%20%2B%20%2Dfobia.%5D 

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Inteligência ...


Inteligência ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Tem sido na constante observância dos acontecimentos globais 1 mais impactantes que procuro refletir em torno do frisson que se estabeleceu em torno da Inteligência Artificial (I.A.). Sim, porque para dimensionar os impactos que tamanha novidade tecnológica pode imprimir aos seres humanos é fundamental entender sobre que bases conjunturais ela se alicerça.

Desde que mundo é mundo, a saga da humanidade se deu a partir de sucessivas transformações sociais, lapidadas pela engenhosidade criativa e intelectual. No entanto, é uma pena que elas nunca tenham chegado munidas de um planejamento que preparasse a sociedade para as suas consequências e desdobramentos.

Basicamente, o que sempre se viu foi uma perplexidade entusiástica diante das novidades, a qual trazia consigo o peso de uma obrigação de ajustamento por parte da sociedade. A velha história de trocar o pneu do carro com ele em movimento. Desafios que não permitem, por exemplo, estimar o grau de fragilização e vulnerabilização social para uma gigantesca parcela de pessoas.

Basta consultar as páginas da história mundial para ver como os processos de inovação científica e tecnológica são fadados a constituir legiões marginais, no sentido de que a mecanização e a tecnologização implicaram necessariamente na redução da necessidade de mão-de-obra convencional, lançando à margem do mercado de trabalho um número significativo de cidadãos.

Portanto, cada passo adiante no desenvolvimento científico e tecnológico representou sim, a consolidação do desemprego. Ora, se novos vieses emergiram dentro do universo trabalhista jamais eles foram diretamente proporcionais para atender as demandas sociais desempregadas. Sem contar que, muitos desses trabalhadores, passaram a se encontrar em uma condição de incapacidade para atender aos novos requisitos exigidos; pois, não foram preparados para essa realidade que lhes caiu sobre a cabeça.

Aliás, esse é um dos pontos fundamentais de análise. O desalinhamento entre as teorias e as práticas delimita muito bem as dimensões dos problemas que a raça humana enfrenta em seus milhares de anos de existência. O fato de avançarmos sem que os problemas estejam devidamente solucionados é o que estabelece uma cronificação de mazelas, as quais se acentuam com o passar do tempo e criam obstáculos intransponíveis na medida em que a população não para de crescer.

Razão pela qual a conta nunca fecha e os déficits vão se acumulando. Até que, em pleno século XXI, o salto de avanço científico e tecnológico atinge um patamar absurdamente superior ao que se poderia supor. Dessa vez, não se trata de uma redução nas demandas de trabalhadores convencionais. O mundo está diante de uma sumária substituição de força de trabalho, ou seja, as atividades, das mais simples às mais complexas, tenderão a ser realizadas por uma mecanização munida de Inteligência Artificial (I.A.).

Ainda que se precise de trabalhadores qualificados para manter essas engrenagens em franco funcionamento, o curso natural do processo irá fazer com que as próprias máquinas realizem esse trabalho. Enquanto uma gigantesca massa da população acreditava que a precarização das atividades laborais e a perda de seus direitos trabalhistas acontecia em nome da mera ganância das elites e dos proprietários dos meios de produção, ela própria impulsionava o desenvolvimento de uma força de trabalho que fosse ainda mais barata do que a sua.

Quem assistiu ao filme TOP GUN: Maverick (2022), logo no início da trama se depara com a personagem Rear Admiral Chester “Hammer” Cain afirmando à personagem Pete “Maverick” Mitchell que o tempo dos pilotos de caça acabou, que o governo dos EUA não precisaria mais desse custo tão alto e que os aviões, logo, passariam a ser comandados por tecnologia de última geração 2. Como toda obra de ficção, nela o protagonista consegue reverter os prognósticos, mas na vida real não é tão simples.

Em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos os efeitos colaterais da Inteligência Artificial (I.A.) vão levar milhões de pessoas a extinção, a partir da impossibilidade real de alocação delas ao mercado trabalho. O que significa negar-lhes o direito à dignidade humana, à sua sobrevivência.

Observe, por exemplo, as seguintes manchetes: “Número de agências bancárias já é o menor desde 2010. Fechamento acompanha migração para canais digitais” 3, “Demissões no setor de tecnologia na primeira semana de 2023 superam dezembro de 2022” 4, “Supermercados investem em tecnologia para reduzir tempo na fila” 5, e “C&A investe no digital e acirra disputa por compra de roupas na internet” 6.

Pois é, enquanto você inadvertidamente é convencido sobre as maravilhas da facilidade tecnológica, da economia de tempo, na contramão disso está uma legião de pessoas desempregadas, expostas à fragilização e à vulnerabilização da sua dignidade humana. Embora tenha se tentado construir narrativas para lançar sobre os ombros da Pandemia a culpa sobre esse processo que culmina no empobrecimento global, no acirramento das desigualdades socioeconômicas, esse processo já está em curso há bastante tempo. Haja vista a matéria publicada pela BBC Brasil em Londres, em 2012 7.

Assim, de repente, você descobre que as novas regalias e privilégios, trazidas pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), enquanto parecem reafirmar o esplendor do espaço ocupado por uma minoria de afortunados, na verdade, tendem cada vez mais a intensificar a discrepância das desigualdades, mundo afora, e acentuar de maneira incisiva inúmeros problemas e desafios sociais que se arrastam historicamente.

Ora, se o desenvolvimento e o progresso não acabaram com a fome, não responderam à cura de diversas doenças, não mitigaram as desigualdades, não eliminaram as guerras e os conflitos, não constituíram base de consenso global sobre diferentes assuntos, não uniram a humanidade, por que acreditar que é possível controlar as consequências e os desdobramentos da Inteligência Artificial (I.A.)?

Foi pensando sobre tudo isso que não pude me deixar de lembrar das palavras do professor de História, o israelense Yuval Noah Harari, quando ele propõe a seguinte reflexão: “Se e quando programas de computador atingirem uma inteligência sobre-humana e um poder jamais visto, deveremos valorizar esses programas mais do que valorizamos os humanos? Seria aceitável, por exemplo, que uma inteligência artificial explorasse os humanos até os matasse para contemplar as necessidades de seus próprios desejos? Se a resposta é negativa, a   despeito da inteligência e do poder superiores, por que é ético que humanos explorem e matem porcos? ”.

De imediato elas fazem entender que não se pode atribuir todo esse processo a uma generalização da vontade humana. Ao contrário, ela acaba condicionada às vontades de uma ínfima parcela que domina e controla o planeta. Acontece que eles são egoístas demais, narcísicos demais, individualistas demais. E enquanto o restante da população enxerga nisso tudo um assombro de engenhosidade, de inteligência, os indivíduos acabam referendando a sua própria eliminação. Portanto, faça bom uso da sua inteligência natural, enquanto é possível.



2 TOP GUN MAVERICK II NOT TODAY -  https://www.youtube.com/watch?v=kZ_mrryk0h8

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Será que o mundo pode ser mesmo cor-de-rosa?


Será que o mundo pode ser mesmo cor-de-rosa?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Será que o mundo pode ser mesmo cor-de-rosa? Não, não é sobre o recente lançamento cinematográfico 1 a pergunta; mas, não posso negar que ele deu estímulo para as minhas reflexões. No entanto, o meu viés de análise mergulha em questões que geralmente passam despercebidas pela maior parte das pessoas, especialmente, em razão da dinâmica contemporânea.

Gostaria que o universo dos brinquedos estivesse literalmente restrito ao lúdico, a fantasia, a imaginação; mas, não está. Basta fechar os olhos e fazer uma viagem no tempo, até a infância, para perceber que a crueldade das desigualdades começa a se estampar no começo da história do indivíduo. Pois é, brinquedos e brincadeiras apresentam realidades distintas, dentro de um panorama de inacessibilidades diversas.

Então, quando a gente se permite pensar pela perspectiva da sociedade de consumo, entende que a indústria se dedicou a criar brinquedos para atender às expectativas de um seleto grupo de consumidores, cujos pais poderiam bancar os desejos de seus filhos. Acontece que toda aquela legião colocada à margem do consumismo não fica de olhinhos fechados para não ver o que acontece no mundo. E lá estão os brinquedos nos outdoors, nas revistas, nos comerciais, na televisão, as fazendo sonhar com um universo tão distante do seu.

Mas se engana quem pensa que esse é o único problema da história. Antes de chegar às prateleiras, às vitrines, ao sucesso com o público alvo, como todo produto mercadológico, os brinquedos surgem de concepções que busquem, entre vários aspectos, atender às ideologias dos seus consumidores. Não é à toa, por exemplo, que durante tanto tempo a sociedade reafirmou uma linha divisória entre brinquedos para meninos e brinquedos para meninas. Algo tão surreal, que não apenas separava os brinquedos; mas, também, obstaculizava e não incentivava a participação coletiva das crianças, de modo que meninos e meninas acabavam não interagindo entre si. 

A ideia era reafirmar continuamente crenças, valores e princípios em torno de um pseudopadrão de sociedade. Sim, porque aqueles produtos diziam respeito a uma dada realidade nacional, da qual se extraía uma respectiva classe social que, de repente, se tornava o modelo a ser seguido, ainda que, inacessível para uma imensa maioria da população global. De modo que a diversão infantil estava fadada a acompanhar um recorte específico do fluxo da evolução social e suas eventuais transformações comportamentais e de interesses.

E para que essa compreensão fique mais clara decidi escolher um exemplo. Bem, de todos os brinquedos, os quais tiveram como público alvo as meninas, as bonecas merecem uma reflexão especial, pois elas têm muito a nos dizer. Primeiramente, por se tratar da representação da mulher, ou seja, nas brincadeiras elas eram mães, filhas, tias, amigas e o enredo se desenvolvia em torno desse estereótipo feminino cuidador, doméstico. Aliás, brincar com bonecas era brincar de casinha. Faziam-se aniversários. Chás com as amigas. Compras de supermercado e feira. Buscavam os filhos na escola. Iam ao salão de beleza. ... As meninas, então, executavam uma representação do cotidiano de suas próprias mães.

Quanto à estética das bonecas, um número significativo delas potencializava no imaginário coletivo um padrão de beleza feminina, de biótipo físico beirando a perfeição, e um detalhe importante, que durante muitas décadas persistiu, a inexistência da diversidade racial das bonecas presentes no mercado. Basicamente a indústria trabalhou em torno de uma ideia caucasiana, ou seja, bonecas loiras, cabelos lisos ou levemente ondulados, altas, magras e de olhos azuis, dentro de uma proporcionalidade corporal de medidas exatas. Praticamente, seguindo o protocolo dos concursos de beleza internacionais, como o Miss Universo e o Miss Mundo.

Acontece que isso afastava a possibilidade de construção de representatividade. E a falta de questionamento a respeito derivava, basicamente, do fato de que o mercado consumidor era majoritariamente caucasiano. De modo que as bonecas produzidas tinham que garantir a representatividade dessas pessoas, cujo poder capital mantinha as engrenagens industriais a pleno vapor de produção. Foram necessárias, portanto, longas décadas e inúmeras discussões acaloradas, para que as bonecas viessem, ao menos, se aproximar da verdadeira representatividade social na amplidão da sua diversidade.  

No entanto, lamento que isso tenha ocorrido quase que em paralelo com a redução da faixa etária das meninas que se encantam pelo mundo das bonecas. A realidade do mundo contemporâneo fez com que as tecnologias conseguissem romper a velha bolha dos brinquedos de meninos e de meninas, trazendo uma democratização para o contexto da diversão e da interação entre as crianças. Cada vez mais cedo, lá estão elas com seus dedinhos e olhinhos frenéticos diante das telas, desconstruindo o ideário da diversão dos tempos analógicos para ampliar espaço para as brincadeiras virtuais e tecnológicas.  

E aí esbarramos em um outro ponto importante. Porque, embora as bonecas, ou quaisquer outros brinquedos dos tempos analógicos, tenham ganho uma recontextualização, o nicho de mercado consumidor já está em outra. Isso significa que esses brinquedos, ainda que continuem sendo produzidos, eles passaram a adquirir um outro papel social. Alguns tornaram-se elementos de decoração. Outros passaram a ser objetos de colecionador. ... O interessante é que uma imensa maioria, finalmente, chegou às mãos de crianças pertencentes as camadas sociais menos favorecidas.

Pois é, como a sociedade de consumo se nutre das novidades, o momento agora pertence à diversão tecnológica. Então, ela acaba se desfazendo dos seus brinquedos analógicos e propiciando que outras crianças desfrutem daquilo que ela já desfrutou. Há, dentro da própria indústria de brinquedos, uma redução drástica no preço quando o produto perde o seu rótulo de novidade, propiciando a aquisição por outros perfis consumidores. Mais uma vez, isso significa que pelo fato de serem lançadas à margem da inacessibilidade, resta a infância sem regalias e privilégios exercer o seu direito de diversão sempre dentro de um contexto de atraso social.

Dito isso, peço perdão ao (à) leitor (a) se essa breve reflexão afeta o seu ideário de um mundo cor-de-rosa! Eduardo Galeano escreveu que “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” (As veias abertas da América Latina, 2006) e quando eu paro para pensar sobre essa eterna necessidade que o ser humano tem em relação a uma vida cor-de-rosa, eu penso que é porque ele tem consciência de que isso ainda não existe. Ninguém corre atrás de algo, com tanta voracidade, que já se encontra, por aí, em cada esquina. A própria sociedade de consumo nos deixa isso muito claro, quando aponta o frenesi em torno da novidade. 

Ora, se queremos, de fato, nos aproximar de uma realidade bonita, feliz, tranquila, literalmente cor-de-rosa, precisamos purgar os horrores de tantos fantasmas trazidos pelas desigualdades. Parar de querer fugir das entrelinhas que escrevem o cotidiano e não banalizar o que não é raso e nem desimportante. Não há só uma perspectiva. Não há só um ponto de vista. Não há só um padrão. Apesar de toda a diversidade, de toda pluralidade, é sempre possível chegar a um consenso que seja positivo para todos.

Por isso, “Conseguir que as gerações futuras sejam mais felizes que a nossa será o maior prêmio que se possa aspirar. Não haverá valor comparável ao cumprimento desta grande missão que consiste em preparar para a humanidade futura um mundo melhor”; afinal, “Todo conceito que o homem não modifica com sua evolução, torna-se um preconceito” (Gonzalez Pecotche). Pensemos a respeito!

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Dia do amigo


Dia do amigo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto o ser humano ainda for humano, ou seja, estiver na sua condição plena de existência, respirando, falando, andando, ... não vejo razão para dar a amizade, ou a qualquer outro sentimento, uma outra dimensão, mais atualizada, dentro dos “protocolos” contemporâneos.  Afinal, não dá para tampar o sol com uma peneira, tentando contemporizar em torno das transformações que operaram sobre as relações humanas, como se elas não estivessem afetando o sentido e a importância de quem realmente somos.  

Encurtar a geografia, do ponto de vista da comunicação, foi sim, um grande avanço tecnológico. Mas, quando se trata da subjetividade dos afetos, aí a coisa muda de figura. Acontece que, de repente, milhares de seres humanos viram na conquista de likes e seguidores um caminho bem mais fácil, curto e indolor para sobreviver nesse mundo.

Contrapondo todo aquele imenso processo de tecitura dos laços, que exigem sacrifícios, disposição, interesse, ... para lidar com o direito e o avesso do outro e de nós mesmos. Sim, porque relações humanas, ao vivo e a cores, é no mínimo desafiador. Ora, não somos completos, inteiros, plenos. A cada minuto somos surpreendidos por uma faceta nova da nossa personalidade, da nossa identidade, da nossa essência. E o mundo lá fora, nem sempre está acessível para nos receber como somos, sem exigir nada, sem impor pré-requisitos, sem tentar nos enquadrar de algum modo.

Querendo ou não, seres humanos são dados a idealizar, a construir um estereótipo irretocável sobre o outro. Algo que dura até a página dois, quando a verdade nua e crua frustra as expectativas, como era de ser. É nesse instante fatídico que a vida nos coloca contra a parede e diz: “É assim! Vai aceitar o pacote ou não? ”. Acontece que, na maioria das vezes, a indagação da vida não diz respeito ao outro, mas do outro sobre nós. Sim, porque relações humanas acontecem numa via de mão de dupla.  

E diante do cenário contemporâneo, quando o tempo é um elemento raro na dinâmica do cotidiano, o ser humano vem sendo cada vez mais obrigado a estabelecer as suas prioridades, inclusive, no campo das subjetividades. E se para tecer laços é preciso tempo, paciência, disposição etc.etc.etc., as pessoas acabam abdicando de relações que precisem ir além da superficialidade do convívio tecnológico. De modo que a convivência humana lembra, cada vez mais, os encontros de férias, os namoros de verão, as paixões de carnaval, enfim. Como se tivessem um prazo determinado para começar e acabar, estabelecido pelo grau de profundidade que desencadeiam.

Todos querem só o lado bom da vida e, portanto, das relações humanas. Assim, a velha máxima do “amigo para todas as horas” foi ficando restrito ao imaginário de quem viveu nos tempos analógicos. De repente, parece existir uma consciência tão absoluta em torno da pressa, da indisponibilidade afetiva, do descompromisso, que se estabeleceu um certo conformismo em torno dos likes e do número de seguidores, como a solução para redesenhar o significado da amizade.

Se não é para estar, para conviver, para compartilhar, para apoiar, para desfrutar com o outro a realidade, então, não tem problema reduzir tudo aos números do mundo virtual. Só que tem problema, sim! Esse é um efeito tão fugaz, que ao passar ele amplifica demasiadamente o sentimento de solidão, porque ele não consegue suprir o outro do essencial que está no exercício da sua humanidade. Porque os números não nos conhecem. Não, na profundidade do que somos. Os números constroem uma breve percepção a nosso respeito e a ajustam dentro das suas próprias expectativas. Cada número nos enxerga de uma maneira diferente; mas, certamente, distante da verdade.

De modo que, no frigir dos ovos, a contemporaneidade e suas pseudofacilidades nos lançaram, sem direito à rede de proteção ou paraquedas, à frieza de uma solidão acompanhada. E, talvez, para não nos sentirmos dissonantes do coletivo, não questionamos, não damos meia volta, não rompemos com as práxis. Silenciamos com a alma destroçada, em nome de um pseudopertencimento, de uma pseudoaceitação. Nos contentamos com as migalhas de superficialidade, de encontros fortuitos, de relações fragmentadas.

E, sem nos darmos conta, vez por outra, desenvolvendo toda a nossa habilidade afetiva, cuidadosa, sensível, sentimental, devotada, aos animais de estimação. Claro que eles merecem! Mas, temos que concordar que, majoritariamente, os animais de estimação têm ocupado, mais e mais, um espaço dentro das relações sociais, que antes pertencia a uma outra perspectiva, acontecia dentro de uma outra lógica, ditada pelo senso genuíno de humanidade. Agora, ela surge como o porto seguro que restou de “todo aquele imenso processo de tecitura dos laços”.

Por isso, no dia em que se comemora a amizade, vale a pena refletir a respeito. Para mim, de imediato, vem a lembrança de um trecho da crônica “Obrigada por insistir1, de Martha Medeiros, que diz “Em tempos em que quase ninguém se olha nos olhos, em que a maioria das pessoas pouco se interessa pelo que não lhe diz respeito, só mesmo agradecendo àqueles que percebem nossas descrenças, indecisões, suspeitas, tudo o que nos paralisa, e gastam um pouco da sua energia conosco, insistindo”. Afinal, palavras assim, nos devolvem o sentido da amizade, a vontade de voltar a tecer relações humanas analógicas, atemporais, genuína e prazerosamente afetivas, porque são capazes de tocar no mais profundo do que ainda resta da nossa humanidade.  



1 MEDEIROS, M. Doidas e Santas. Porto Alegre: L&PM, 2008. 

Poder e cobiça ...


Poder e cobiça ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando penso que nada mais vai me surpreender nesse mundo, eis que o novo Ministro do Turismo manifesta à imprensa que “O Centrão está virando uma coisa positiva” 1. Vamos e convenhamos que, infelizmente, o famigerado Orçamento Secreto foi derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF); mas, não impedido de expressar sua sanha de outras maneiras como se viu nesses primeiros seis meses de governo. Portanto, não há nada de positivo nesse coletivo político-partidário. Continuam imersos nas suas bolhas de regalias e privilégios nutridos pelo fisiologismo de sempre.

Mas, foi pensando a respeito dessa fala um tanto quanto esdrúxula que resolvi tecer uma reflexão sobre esse tipo de alienação que toma de assalto a classe política nacional e a impede de estabelecer um contato mais imediato com a realidade. Enquanto suas vidas orbitam em torno das cifras milionárias do dinheiro público, como seria se no andar da carruagem das conjunturas a fonte secasse de repente, hein? Por mais que isso pareça uma possibilidade remotíssima, aos olhos de muita gente por aí, creio que os sinais começam a mostrar que o cenário caminha para mudanças.

As elevadíssimas temperaturas no hemisfério norte são só um viés do que pode acontecer ao setor agropecuário global, por exemplo, que depende de um ambiente equilibrado para fazer valer o seu potencial em bater recordes para os Produtos Internos Brutos (PIBs). Eles dependem diretamente do clima, do solo, da água, dos ventos, e se não há como controlar essas variáveis, tendo em vista os constantes eventos extremos, não há ciência ou tecnologia que vai lhes possibilitar evitar os reveses de ordem econômica. Sem contar que não há país, no mundo, que seja capaz de suprir sozinho as demandas alimentícias do planeta.

Mas, vejam só que coisa interessante! Justamente o agronegócio que carrega consigo a simbologia histórica de força motriz da economia nacional, que interfere diretamente no campo das decisões nacionais, que exige mundos e fundos do governo para manter seus privilégios produtivos, colocou-se, pelo menos uma parcela importante de seus membros, contra as políticas sustentáveis e economicamente verdes, que vigoram no cenário mundial. Sobretudo, nos últimos quatro anos, esse foi o setor que mais afrontou as políticas socioambientais brasileiras, contando com o esforço hercúleo de seus representantes no Congresso Nacional para votações que desmantelassem a rede de proteção ambiental existente.

Aliás, aproveitando o ensejo, a imprensa trouxe a público a notícia de que “Mais de 100 milhões de abelhas são mortas em MT devido aplicação errada de agrotóxico” 2. Abelhas que estão em risco de extinção. Abelhas produtoras de mel e seus derivados que impactam diretamente a indústria farmacêutica e cosmética. Abelhas polinizadoras de frutas e flores que impulsionam cadeias produtivas importantes. Enfim... Frutos amargos da utilização de agrotóxicos que foram liberados em profusão, no último governo, à revelia dos alertas científicos, das análises de demanda, dos riscos de contaminação e para a saúde pública. Um dos exemplos clássicos, se assim podemos dizer, do que significou a política de arraso sobre o meio ambiente que contou com o apoio irrestrito de uma gigantesca parcela de cidadãos do agronegócio.

Foi a partir desse cenário é que fiquei relembrando as inúmeras vezes em que o setor precisou recorrer ao auxílio do governo para ampará-lo em situações de crise, as quais a produção não repercutiu o esperado. Às vezes por frio. Às vezes por chuva. Às vezes por seca. Às vezes por ação de pragas. Mas, eles nunca estiveram nem aí para a discussão socioambiental. Muito pelo contrário. Depositaram todas as suas certezas no capital para mover as suas grandes plantations, como se fosse o bastante como garantia para o sucesso. Mesmo porque, se algo desse errado, a ajudinha do governo sempre fora fava contada.

Só que, agora, meus caros, o jogo virou! Não há agronegócio 5G, sementes de última geração, equipamentos de milhões de reais, que façam frente aos eventos extremos do clima. E se o governo começar a querer bancar os prejuízos do setor não vai conseguir! Primeiro, porque a sucessão de imprevistos é incomensurável. Não dá para saber a extensão do calor, ou das enchentes, ou dos ciclones, ou das geadas, ... e nem em que locais elas vão passar a assolar, em razão dos próprios efeitos antrópicos. Segundo, porque os impactos nas cadeias produtivas do agro, a nível global, vão impor desafios de ordem socioeconômica que tendem a intensificar a fome e o empobrecimento, o que irá demandar políticas públicas cada vez mais robustas para atender as camadas mais frágeis e vulneráveis.

Assim, é por essas e por outras, que estou convencida de que o atual Ministro do Turismo deveria ter prescindido da declaração em defesa do Centrão. Enquanto eles se mantêm absortos na sua bolha, alheios a realidade, num piscar de olhos o seu mundinho de regalias e privilégios pode ser engolido por uma fúria apocalíptica. Os eventos extremos do clima associados às mais diversas formas de impactos antrópicos podem produzir perdas tanto quantitativas quanto qualitativas sobre a mesa de mais de 203 milhões de brasileiros.  Algo que dinheiro nenhum pode ser capaz de evitar, ou de transmitir alguma segurança, alguma garantia. E a classe política não vive em outro país, ou em outro mundo.

Portanto, ela não está isenta do seu quinhão de responsabilidades nesse processo, o qual não oferece a possibilidade de aguardar pelo momento ideal, ou pelo tempo mais oportuno.  “Temporada de incêndios florestais no Canadá é a pior já registrada na história” 3  ou “Onda de calor extremo na Europa, EUA e Japão pode chegar a quase 50° C” 4, por exemplo, significa que o tempo dos alertas, dos comunicados, dos fóruns ambientais, já ficou para trás. Aliás, nem precisamos sair do território nacional para termos a dimensão do que acontece. Recentemente, “Ciclone destrói plantações, danifica máquinas e machuca animais no Sul do Brasil” 5.

A ciência fez tudo o que estava ao seu alcance para evitar o colapso, na medida do convencimento respaldado pelas pesquisas; mas, o ser humano optou pelas orientações do capital, da ostentação do poder. E o preço foi dado! Acontece que ele não será cobrado de uma única vez. Será aos poucos, cada vez abocanhando mais, dilapidando mais. Até que não reste mais nada para ninguém. Até que tudo seja resumido a um conjunto de pseudopoderes, sem sentido algum. Até que todas as certezas se transformem em um retrato desolado da desilusão. Talvez, antevendo a tudo isso, foi que Mahatma Gandhi disse, “Há o suficiente no mundo para todas as necessidades humanas, não há o suficiente para a cobiça humana”.