Crianças
e adolescentes na grande vitrine contemporânea
Por
Alessandra Leles Rocha
Em tempos da midiatização
cibernética de crianças e adolescentes, cada vez mais extrema, é preciso parar
e refletir. A força das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) tem
sim, amplificado a demanda para uma análise mais crítica sobre a dinâmica do
poder parental na sociedade. O modo como muitas famílias se apropriam da imagem
e dos talentos de seus filhos não é tão irrelevante como tentam fazer parecer;
afinal, toda ação é revestida de uma intenção.
Na verdade, essa é uma discussão
que deveria ter começado ainda nos tempos analógicos. Uma rápida consulta pelos
arquivos de imprensa para se deparar com histórias e mais histórias de crianças
e adolescentes que foram vítimas do abuso monetizante por parte de seus pais e/ou
responsáveis. Hollywood, por exemplo, está repleto de casos assim. Mas, não
podemos nos esquecer do mercado publicitário, dos concursos de beleza infantis,
de programas de televisão, esportes, mundo da moda, enfim...
Aliás, recentemente, um jovem
ingressou com uma ação contra uma banda de rock por conta do uso de sua imagem
em uma capa de disco, quando ele era só um bebê e não tinha o poder para
decidir a respeito. Apesar de não ter obtido êxito na justiça, o fato em si
coloca sobre a mesa os limites éticos implicados no poder familiar. Sim, porque
a criança cresce e, dessa forma, não permanecerá sob a tutela e as decisões de
seus pais e/ou responsáveis, podendo futuramente questionar sobre certos
aspectos da sua história que lhe causam desconforto.
E dentro desse viés, um aspecto
chama muita atenção. Independentemente se em tempos analógicos ou digitais, a
exposição de crianças e de adolescentes pode resultar em geração de receita.
Tomando por base a legislação brasileira, a qual determina limites para o
trabalho infantil, parece haver, cada vez com mais frequência, um conflito de
interesses nesse sentido. As linhas que separam o poder familiar, ou seja, o
conjunto de direitos e obrigações dos pais e/ou responsáveis em relação aos
filhos menores de idade, e a legislação trabalhista 1
parecem demasiadamente fragilizadas pela própria conjuntura social, sem que as
autoridades competentes exerçam uma arbitragem mais incisiva a respeito.
Valendo-se da sutileza derivada
das TICs para justificar a exposição, sob o pretexto de compartilhar com amigos
e familiares os feitos e o crescimento dos filhos, pais e/ou responsáveis
parecem se esquecer da dimensão e do alcance do ambiente virtual. O que
aparentemente tinha um caráter privado passa a se tornar público, ainda que à
revelia da sua ação direta. E se dessa publicização emerge a monetização,
também, emergem riscos inimagináveis para crianças e adolescentes como, por
exemplo, o cyber bullying e a pedofilia. Ainda que, na maioria das vezes, as
mídias sociais em que elas aparecem estejam sob controle de pessoas adultas,
isso não é o bastante para impedir dissabores e consequências eventualmente
desastrosas.
Ora, estamos falando de
indivíduos em processo de formação psicoemocional, portanto, bastante frágeis e
vulneráveis aos impactos do mundo contemporâneo. O fato de muitas delas terem
nascido sob o signo da tecnologia, isso não significa que elas são menos
humanas ou blindadas aos efeitos tóxicos e deletérios desse novo contexto
social. E não é difícil imaginar, na medida em que a monetização vai adquirindo
cifras cada vez mais expressivas, como o peso dos compromissos e responsabilidades
sobre essas crianças e adolescentes também se intensifica. O que parecia ser
uma brincadeira, uma atividade lúdica, se transforma em obrigação, em
compromisso, por força, inclusive, de contratos.
Ora, se algo assim já mexe
profundamente com o equilíbrio psicoemocional de um adulto, imagina de uma
criança ou adolescente? Ela não tem como responder se quer ou não ser
transformada em produto, ser capitalizada ao sabor de likes e curtidas, se está preparada para a volatilidade do
interesse midiático, e tantas outras questões. Inclusive, ela nem pode decidir
sobre o que, como e quando aplicar os recursos obtidos a partir da sua imagem.
Fato que já fez levar muitas celebridades mirins aos tribunais, depois que se
tornaram adultos, contra os próprios familiares e/ou responsáveis.
Talvez, por conta do futebol, por
exemplo, muitos acreditam que esse é um fenômeno restrito às camadas menos
privilegiadas da população, que por força das conjunturas socioeconômicas
acabam levadas a tal. Só que não. Tem sido sim, mais e mais comum, encontrar
nas diferentes camadas da sociedade, incluindo as mais abastadas, crianças e
adolescentes submetidas às mesmas práxis de exibição e monetização. Algumas,
inclusive, ostentando com tão pouca idade, pequenas fortunas se comparado à imensa
realidade nacional.
Acontece que essa teia em que são
envolvidas, desde a mais tenra idade, tira delas não apenas o próprio processo
de construção identitário, no que diz respeito às suas crenças, valores e princípios;
mas, estabelece um fastio em relação às suas projeções de futuro, de sonhos, de
realizações, como se tudo estivesse pronto, definido. Há, de certo modo, uma desconsideração
quanto ao imponderável, ao insólito da vida, porque essas crianças e
adolescentes estão sendo lançadas a um contexto de idealização que as impede de
aprender a lidar com as adversidades, em todas as suas formas e conteúdos.
Queiramos ou não aceitar, esses
são tempos de um grave adoecimento mental na sociedade. E isso nos obriga, cada
vez mais, a nos atentar sobre os mínimos gestos nas relações humanas. Na
frenética corrida em busca do ter, para nos satisfazer a avalanche de desejos e
delírios consumistas, estamos nos esquecendo do ser. Segundo Gonzalez Pecotche,
“O que, na verdade, oprime o espírito, o
que provoca inquietudes e desassossegos, é a pobreza mental. Poderemos ser
ricos economicamente, mas se não somos capazes de oferecer, a nós mesmos, as
enormes vantagens que a riqueza do conhecimento pode proporcionar, haverá muita
miséria dentro de nossos palácios ou de nossas vestes”.
Não é à toa, então, que se faz fundamental a reflexão sobre esse movimento de apropriação indébita do ser pelo poder familiar. Tamanha exposição, exibição, monetização, está deteriorando a qualidade da essência humana, no que diz respeito as atuais e às futuras gerações. Está produzindo seres que aprendem, desde muito cedo, que o material é o bastante. A sociedade contemporânea desalinhou a régua das aptidões, dos talentos, das conquistas, em nome do julgamento de qualquer desconhecido que dê o crivo de aprovação através de um like ou de uma curtida. Pois é, só que é desse movimento que emergem as ondas de ódio, de violência, de intolerância, de egoísmo, de individualismo, que vêm consumindo a coletividade humana e comprometendo os afetos, os valores, os princípios, incluindo o próprio esgarçamento do ambiente familiar.
1 Lei n. º 8.069, de 13/07/1990 – Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm