domingo, 30 de julho de 2023

Crianças e adolescentes na grande vitrine contemporânea


Crianças e adolescentes na grande vitrine contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em tempos da midiatização cibernética de crianças e adolescentes, cada vez mais extrema, é preciso parar e refletir. A força das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) tem sim, amplificado a demanda para uma análise mais crítica sobre a dinâmica do poder parental na sociedade. O modo como muitas famílias se apropriam da imagem e dos talentos de seus filhos não é tão irrelevante como tentam fazer parecer; afinal, toda ação é revestida de uma intenção.

Na verdade, essa é uma discussão que deveria ter começado ainda nos tempos analógicos. Uma rápida consulta pelos arquivos de imprensa para se deparar com histórias e mais histórias de crianças e adolescentes que foram vítimas do abuso monetizante por parte de seus pais e/ou responsáveis. Hollywood, por exemplo, está repleto de casos assim. Mas, não podemos nos esquecer do mercado publicitário, dos concursos de beleza infantis, de programas de televisão, esportes, mundo da moda, enfim...

Aliás, recentemente, um jovem ingressou com uma ação contra uma banda de rock por conta do uso de sua imagem em uma capa de disco, quando ele era só um bebê e não tinha o poder para decidir a respeito. Apesar de não ter obtido êxito na justiça, o fato em si coloca sobre a mesa os limites éticos implicados no poder familiar. Sim, porque a criança cresce e, dessa forma, não permanecerá sob a tutela e as decisões de seus pais e/ou responsáveis, podendo futuramente questionar sobre certos aspectos da sua história que lhe causam desconforto.

E dentro desse viés, um aspecto chama muita atenção. Independentemente se em tempos analógicos ou digitais, a exposição de crianças e de adolescentes pode resultar em geração de receita. Tomando por base a legislação brasileira, a qual determina limites para o trabalho infantil, parece haver, cada vez com mais frequência, um conflito de interesses nesse sentido. As linhas que separam o poder familiar, ou seja, o conjunto de direitos e obrigações dos pais e/ou responsáveis em relação aos filhos menores de idade, e a legislação trabalhista 1 parecem demasiadamente fragilizadas pela própria conjuntura social, sem que as autoridades competentes exerçam uma arbitragem mais incisiva a respeito.

Valendo-se da sutileza derivada das TICs para justificar a exposição, sob o pretexto de compartilhar com amigos e familiares os feitos e o crescimento dos filhos, pais e/ou responsáveis parecem se esquecer da dimensão e do alcance do ambiente virtual. O que aparentemente tinha um caráter privado passa a se tornar público, ainda que à revelia da sua ação direta. E se dessa publicização emerge a monetização, também, emergem riscos inimagináveis para crianças e adolescentes como, por exemplo, o cyber bullying e a pedofilia. Ainda que, na maioria das vezes, as mídias sociais em que elas aparecem estejam sob controle de pessoas adultas, isso não é o bastante para impedir dissabores e consequências eventualmente desastrosas.

Ora, estamos falando de indivíduos em processo de formação psicoemocional, portanto, bastante frágeis e vulneráveis aos impactos do mundo contemporâneo. O fato de muitas delas terem nascido sob o signo da tecnologia, isso não significa que elas são menos humanas ou blindadas aos efeitos tóxicos e deletérios desse novo contexto social. E não é difícil imaginar, na medida em que a monetização vai adquirindo cifras cada vez mais expressivas, como o peso dos compromissos e responsabilidades sobre essas crianças e adolescentes também se intensifica. O que parecia ser uma brincadeira, uma atividade lúdica, se transforma em obrigação, em compromisso, por força, inclusive, de contratos.

Ora, se algo assim já mexe profundamente com o equilíbrio psicoemocional de um adulto, imagina de uma criança ou adolescente? Ela não tem como responder se quer ou não ser transformada em produto, ser capitalizada ao sabor de likes e curtidas, se está preparada para a volatilidade do interesse midiático, e tantas outras questões. Inclusive, ela nem pode decidir sobre o que, como e quando aplicar os recursos obtidos a partir da sua imagem. Fato que já fez levar muitas celebridades mirins aos tribunais, depois que se tornaram adultos, contra os próprios familiares e/ou responsáveis. 

Talvez, por conta do futebol, por exemplo, muitos acreditam que esse é um fenômeno restrito às camadas menos privilegiadas da população, que por força das conjunturas socioeconômicas acabam levadas a tal. Só que não. Tem sido sim, mais e mais comum, encontrar nas diferentes camadas da sociedade, incluindo as mais abastadas, crianças e adolescentes submetidas às mesmas práxis de exibição e monetização. Algumas, inclusive, ostentando com tão pouca idade, pequenas fortunas se comparado à imensa realidade nacional.

Acontece que essa teia em que são envolvidas, desde a mais tenra idade, tira delas não apenas o próprio processo de construção identitário, no que diz respeito às suas crenças, valores e princípios; mas, estabelece um fastio em relação às suas projeções de futuro, de sonhos, de realizações, como se tudo estivesse pronto, definido. Há, de certo modo, uma desconsideração quanto ao imponderável, ao insólito da vida, porque essas crianças e adolescentes estão sendo lançadas a um contexto de idealização que as impede de aprender a lidar com as adversidades, em todas as suas formas e conteúdos.

Queiramos ou não aceitar, esses são tempos de um grave adoecimento mental na sociedade. E isso nos obriga, cada vez mais, a nos atentar sobre os mínimos gestos nas relações humanas. Na frenética corrida em busca do ter, para nos satisfazer a avalanche de desejos e delírios consumistas, estamos nos esquecendo do ser. Segundo Gonzalez Pecotche, “O que, na verdade, oprime o espírito, o que provoca inquietudes e desassossegos, é a pobreza mental. Poderemos ser ricos economicamente, mas se não somos capazes de oferecer, a nós mesmos, as enormes vantagens que a riqueza do conhecimento pode proporcionar, haverá muita miséria dentro de nossos palácios ou de nossas vestes”.

Não é à toa, então, que se faz fundamental a reflexão sobre esse movimento de apropriação indébita do ser pelo poder familiar. Tamanha exposição, exibição, monetização, está deteriorando a qualidade da essência humana, no que diz respeito as atuais e às futuras gerações. Está produzindo seres que aprendem, desde muito cedo, que o material é o bastante. A sociedade contemporânea desalinhou a régua das aptidões, dos talentos, das conquistas, em nome do julgamento de qualquer desconhecido que dê o crivo de aprovação através de um like ou de uma curtida. Pois é, só que é desse movimento que emergem as ondas de ódio, de violência, de intolerância, de egoísmo, de individualismo, que vêm consumindo a coletividade humana e comprometendo os afetos, os valores, os princípios, incluindo o próprio esgarçamento do ambiente familiar.  



1 Lei n. º 8.069, de 13/07/1990 – Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.  Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm