sexta-feira, 28 de julho de 2023

Sob sigilo


Sob sigilo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A grande notícia do dia foi, sem dúvida alguma, que “Planalto sob Bolsonaro escondeu projeções de casos e mortes na pandemia. Mais de mil relatórios da Abin e do GSI ficaram sob sigilo e alertavam sobre alta da Covid-19, crise política e vacinas” 1. Aos que ainda duvidavam está aí a prova irrefutável da necessidade de se nomear corretamente as coisas e os acontecimentos.

Ora, vamos e convenhamos que uma grande parte da mídia, tradicional e alternativa, se omitiu em informar, usando as palavras certas, sobre o andar da carruagem do ex-governo, ao longo dos seus quatro anos. Havia sempre uma busca por atenuar ou descaracterizar o que de fato acontecia, como se não existissem propósitos ou intenções convictas a respeito daquele modo de fazer.

E do que trata, então, a notícia acima senão de dois conceitos básicos que nortearam todos os caminhos do ex-governo: a necropolítica 2 e a aporofobia 3. Sim, porque essas eram as bases primordiais para sustentar o restante do ideário direitista, com todos os seus vieses mais ou menos radicais e extremistas, que estava no poder.

Portanto, nada mais nada menos, do que a expressão clássica das elites burguesas emergidas das heranças coloniais e consolidadas pela Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, e de seus fundamentos socioeconômicos. No mundo milimetricamente idealizado por essas pessoas, as camadas menos favorecidas e demasiadamente desprivilegiadas, não passam de peças de reposição para mover as engrenagens dos seus poderes e da acumulação de riquezas.

A vida desses pobres diabos, então, não vale absolutamente nada aos olhos de quem está no topo da pirâmide social. De modo que a pandemia caiu como uma luva para o projeto necropolítico e aporofóbico nacional, na medida em que não precisariam exercitar extremos esforços para atuar na invisibilização plena desses cidadãos; mas, também, lançar mão de menos recursos e investimentos para políticas públicas no setor social.

Assim, valendo-se da capilaridade das mídias sociais contemporâneas, membros e simpatizantes da Direita e de seus matizes se colocaram em missão de manipular e persuadir, o maior número de pessoas, em uma verdadeira cruzada negacionista. Em um primeiro momento foram contra o uso de máscaras, de medidas contínuas de higienização das mãos, de isolamento social. Depois se colocaram como árduos defensores de medicamentos comprovadamente ineficazes e contra as vacinas.

O que não se viu pronunciar foi o fato de que o negacionismo tinha como alvo, não necessariamente a pandemia, mas a destruição completa do Sistema Único de Saúde (SUS). Na verdade, ainda sem saber que um novo e letal vírus cruzaria o horizonte planetário, em 2020, o ex-governo brasileiro tinha em seus planos a privatização dos serviços de saúde, a fim de beneficiar os lobbies do setor e eximir o governo das suas responsabilidades institucionais e orçamentárias nesse campo. No entanto, a Covid-19 chegou e, se não fosse o SUS, os números da letalidade teriam sido ainda mais cruéis e perversos.

Aliás, gostaria de chamar a atenção sobre o uso do termo “ex-governo”, porque todo esse processo acabou sendo referendado por todas as instâncias governamentais, não ficando restrito à figura desse ou daquele indivíduo, bem como ao espaço exclusivo do Ministério da Saúde. Veja que a própria notícia, publicada hoje, dá conta do conhecimento dos setores de inteligência, ligados à área militar. Mas, participaram dessa construção necropolítica e aporofóbica o Ministério da Economia, o Ministério do Trabalho e todos os demais, fosse de maneira diretíssima ou indireta.

Isso mostra como a necropolítica e aporofobia são presentes na construção ideológica das elites dominantes e arrebanham seguidores nos mais diferentes espectros sociais.  Do mesmo modo que o Titanic, em 1912, foi construído com número reduzido de botes salva-vidas, ou seja, foi programado para trazer segurança apenas à primeira classe, cidades como São Paulo, em pleno século XXI, não dispõem de abrigos suficientes, em termos qualitativos e quantitativos, para atender uma legião de sem-teto que cresceu em razão das políticas ultra neoliberais disseminadas, particularmente, pelos ultradireitistas.

Resta, então, saber se agora, diante da existência de “mais de mil relatórios da Abin e do GSI” durante o período pandêmico, quais medidas práticas e judiciais serão tomadas a respeito. Se os silêncios, sob os quais algumas autoridades da época vêm se refugiando, permanecerão ou não desalinhando o peso igualitário das leis, o qual, pelo menos em tese, não permite distinção de quaisquer naturezas entre os cidadãos brasileiros.  

Afinal, nomeando corretamente os acontecimentos, a notícia de hoje, em síntese fala da ocorrência de um crime cometido contra a população brasileira, o qual pode ser desdobrado, em outros tantos, segundo o entendimento jurídico nacional. Como escreveu Rui Barbosa, “A justiça pode irritar porque é precária. A verdade não se impacienta porque é eterna”. Assim, aguardemos.

 



2 Uso do poder político e social, especialmente por parte do estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões (gerando condições de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão e violência, em condições de vida precárias, por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve morrer. [Termo cunhado pelo filósofo, teórico político e historiador camaronês Achille Mbembe, em 2003, em ensaio homônimo e, posteriormente, livro] – Fonte:  https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/necropolitica#:~:text=%E2%80%9C'Necropol%C3%ADtica%20%C3%A9%20a%20capacidade%20de,morrer%2C%20%C3%A9%20fazer%20morrer%20tamb%C3%A9m.

3 Repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos; hostilidade para com pessoas em situação de pobreza ou miséria. [Do grego á-poros, ‘pobre, desamparado, sem recursos’ + -fobia] – Fonte: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/aporofobia#:~:text=Defini%C3%A7%C3%A3o%3A,recursos'%20%2B%20%2Dfobia.%5D 

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