Sob
sigilo
Por
Alessandra Leles Rocha
A grande notícia do dia foi, sem
dúvida alguma, que “Planalto sob
Bolsonaro escondeu projeções de casos e mortes na pandemia. Mais de mil
relatórios da Abin e do GSI ficaram sob sigilo e alertavam sobre alta da
Covid-19, crise política e vacinas” 1.
Aos que ainda duvidavam está aí a prova irrefutável da necessidade de se nomear
corretamente as coisas e os acontecimentos.
Ora, vamos e convenhamos que uma
grande parte da mídia, tradicional e alternativa, se omitiu em informar, usando
as palavras certas, sobre o andar da carruagem do ex-governo, ao longo dos seus
quatro anos. Havia sempre uma busca por atenuar ou descaracterizar o que de
fato acontecia, como se não existissem propósitos ou intenções convictas a
respeito daquele modo de fazer.
E do que trata, então, a notícia
acima senão de dois conceitos básicos que nortearam todos os caminhos do
ex-governo: a necropolítica 2 e a
aporofobia 3. Sim, porque essas eram as
bases primordiais para sustentar o restante do ideário direitista, com todos os
seus vieses mais ou menos radicais e extremistas, que estava no poder.
Portanto, nada mais nada menos,
do que a expressão clássica das elites burguesas emergidas das heranças coloniais
e consolidadas pela Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século
XVIII, e de seus fundamentos socioeconômicos. No mundo milimetricamente
idealizado por essas pessoas, as camadas menos favorecidas e demasiadamente
desprivilegiadas, não passam de peças de reposição para mover as engrenagens dos
seus poderes e da acumulação de riquezas.
A vida desses pobres diabos,
então, não vale absolutamente nada aos olhos de quem está no topo da pirâmide social.
De modo que a pandemia caiu como uma luva para o projeto necropolítico e aporofóbico
nacional, na medida em que não precisariam exercitar extremos esforços para
atuar na invisibilização plena desses cidadãos; mas, também, lançar mão de
menos recursos e investimentos para políticas públicas no setor social.
Assim, valendo-se da capilaridade
das mídias sociais contemporâneas, membros e simpatizantes da Direita e de seus
matizes se colocaram em missão de manipular e persuadir, o maior número de
pessoas, em uma verdadeira cruzada negacionista. Em um primeiro momento foram contra
o uso de máscaras, de medidas contínuas de higienização das mãos, de isolamento
social. Depois se colocaram como árduos defensores de medicamentos
comprovadamente ineficazes e contra as vacinas.
O que não se viu pronunciar foi o
fato de que o negacionismo tinha como alvo, não necessariamente a pandemia, mas
a destruição completa do Sistema Único de Saúde (SUS). Na verdade, ainda sem
saber que um novo e letal vírus cruzaria o horizonte planetário, em 2020, o
ex-governo brasileiro tinha em seus planos a privatização dos serviços de
saúde, a fim de beneficiar os lobbies
do setor e eximir o governo das suas responsabilidades institucionais e
orçamentárias nesse campo. No entanto, a Covid-19 chegou e, se não fosse o SUS,
os números da letalidade teriam sido ainda mais cruéis e perversos.
Aliás, gostaria de chamar a
atenção sobre o uso do termo “ex-governo”, porque todo esse processo acabou sendo
referendado por todas as instâncias governamentais, não ficando restrito à
figura desse ou daquele indivíduo, bem como ao espaço exclusivo do Ministério
da Saúde. Veja que a própria notícia, publicada hoje, dá conta do conhecimento
dos setores de inteligência, ligados à área militar. Mas, participaram dessa
construção necropolítica e aporofóbica o Ministério da Economia, o Ministério
do Trabalho e todos os demais, fosse de maneira diretíssima ou indireta.
Isso mostra como a necropolítica
e aporofobia são presentes na construção ideológica das elites dominantes e
arrebanham seguidores nos mais diferentes espectros sociais. Do mesmo modo que o Titanic, em 1912, foi construído
com número reduzido de botes salva-vidas, ou seja, foi programado para trazer
segurança apenas à primeira classe, cidades como São Paulo, em pleno século
XXI, não dispõem de abrigos suficientes, em termos qualitativos e
quantitativos, para atender uma legião de sem-teto que cresceu em razão das
políticas ultra neoliberais disseminadas, particularmente, pelos
ultradireitistas.
Resta, então, saber se agora,
diante da existência de “mais de mil
relatórios da Abin e do GSI” durante o período pandêmico, quais medidas
práticas e judiciais serão tomadas a respeito. Se os silêncios, sob os quais
algumas autoridades da época vêm se refugiando, permanecerão ou não desalinhando
o peso igualitário das leis, o qual, pelo menos em tese, não permite distinção
de quaisquer naturezas entre os cidadãos brasileiros.
Afinal, nomeando corretamente os
acontecimentos, a notícia de hoje, em síntese fala da ocorrência de um crime
cometido contra a população brasileira, o qual pode ser desdobrado, em outros
tantos, segundo o entendimento jurídico nacional. Como escreveu Rui Barbosa, “A justiça pode irritar porque é precária. A
verdade não se impacienta porque é eterna”. Assim, aguardemos.
1 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2023/07/planalto-sob-bolsonaro-escondeu-projecoes-de-casos-e-mortes-na-pandemia.shtml
2
Uso do poder político e social, especialmente por parte do estado, de forma a
determinar, por meio de ações ou omissões (gerando condições de risco para
alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas
de exclusão e violência, em condições de vida precárias, por exemplo), quem
pode permanecer vivo ou deve morrer. [Termo cunhado pelo filósofo, teórico
político e historiador camaronês Achille Mbembe, em 2003, em ensaio homônimo e,
posteriormente, livro] – Fonte: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/necropolitica#:~:text=%E2%80%9C'Necropol%C3%ADtica%20%C3%A9%20a%20capacidade%20de,morrer%2C%20%C3%A9%20fazer%20morrer%20tamb%C3%A9m.
3 Repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos; hostilidade para com pessoas em situação de pobreza ou miséria. [Do grego á-poros, ‘pobre, desamparado, sem recursos’ + -fobia] – Fonte: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/aporofobia#:~:text=Defini%C3%A7%C3%A3o%3A,recursos'%20%2B%20%2Dfobia.%5D