quarta-feira, 26 de julho de 2023

Inteligência ...


Inteligência ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Tem sido na constante observância dos acontecimentos globais 1 mais impactantes que procuro refletir em torno do frisson que se estabeleceu em torno da Inteligência Artificial (I.A.). Sim, porque para dimensionar os impactos que tamanha novidade tecnológica pode imprimir aos seres humanos é fundamental entender sobre que bases conjunturais ela se alicerça.

Desde que mundo é mundo, a saga da humanidade se deu a partir de sucessivas transformações sociais, lapidadas pela engenhosidade criativa e intelectual. No entanto, é uma pena que elas nunca tenham chegado munidas de um planejamento que preparasse a sociedade para as suas consequências e desdobramentos.

Basicamente, o que sempre se viu foi uma perplexidade entusiástica diante das novidades, a qual trazia consigo o peso de uma obrigação de ajustamento por parte da sociedade. A velha história de trocar o pneu do carro com ele em movimento. Desafios que não permitem, por exemplo, estimar o grau de fragilização e vulnerabilização social para uma gigantesca parcela de pessoas.

Basta consultar as páginas da história mundial para ver como os processos de inovação científica e tecnológica são fadados a constituir legiões marginais, no sentido de que a mecanização e a tecnologização implicaram necessariamente na redução da necessidade de mão-de-obra convencional, lançando à margem do mercado de trabalho um número significativo de cidadãos.

Portanto, cada passo adiante no desenvolvimento científico e tecnológico representou sim, a consolidação do desemprego. Ora, se novos vieses emergiram dentro do universo trabalhista jamais eles foram diretamente proporcionais para atender as demandas sociais desempregadas. Sem contar que, muitos desses trabalhadores, passaram a se encontrar em uma condição de incapacidade para atender aos novos requisitos exigidos; pois, não foram preparados para essa realidade que lhes caiu sobre a cabeça.

Aliás, esse é um dos pontos fundamentais de análise. O desalinhamento entre as teorias e as práticas delimita muito bem as dimensões dos problemas que a raça humana enfrenta em seus milhares de anos de existência. O fato de avançarmos sem que os problemas estejam devidamente solucionados é o que estabelece uma cronificação de mazelas, as quais se acentuam com o passar do tempo e criam obstáculos intransponíveis na medida em que a população não para de crescer.

Razão pela qual a conta nunca fecha e os déficits vão se acumulando. Até que, em pleno século XXI, o salto de avanço científico e tecnológico atinge um patamar absurdamente superior ao que se poderia supor. Dessa vez, não se trata de uma redução nas demandas de trabalhadores convencionais. O mundo está diante de uma sumária substituição de força de trabalho, ou seja, as atividades, das mais simples às mais complexas, tenderão a ser realizadas por uma mecanização munida de Inteligência Artificial (I.A.).

Ainda que se precise de trabalhadores qualificados para manter essas engrenagens em franco funcionamento, o curso natural do processo irá fazer com que as próprias máquinas realizem esse trabalho. Enquanto uma gigantesca massa da população acreditava que a precarização das atividades laborais e a perda de seus direitos trabalhistas acontecia em nome da mera ganância das elites e dos proprietários dos meios de produção, ela própria impulsionava o desenvolvimento de uma força de trabalho que fosse ainda mais barata do que a sua.

Quem assistiu ao filme TOP GUN: Maverick (2022), logo no início da trama se depara com a personagem Rear Admiral Chester “Hammer” Cain afirmando à personagem Pete “Maverick” Mitchell que o tempo dos pilotos de caça acabou, que o governo dos EUA não precisaria mais desse custo tão alto e que os aviões, logo, passariam a ser comandados por tecnologia de última geração 2. Como toda obra de ficção, nela o protagonista consegue reverter os prognósticos, mas na vida real não é tão simples.

Em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos os efeitos colaterais da Inteligência Artificial (I.A.) vão levar milhões de pessoas a extinção, a partir da impossibilidade real de alocação delas ao mercado trabalho. O que significa negar-lhes o direito à dignidade humana, à sua sobrevivência.

Observe, por exemplo, as seguintes manchetes: “Número de agências bancárias já é o menor desde 2010. Fechamento acompanha migração para canais digitais” 3, “Demissões no setor de tecnologia na primeira semana de 2023 superam dezembro de 2022” 4, “Supermercados investem em tecnologia para reduzir tempo na fila” 5, e “C&A investe no digital e acirra disputa por compra de roupas na internet” 6.

Pois é, enquanto você inadvertidamente é convencido sobre as maravilhas da facilidade tecnológica, da economia de tempo, na contramão disso está uma legião de pessoas desempregadas, expostas à fragilização e à vulnerabilização da sua dignidade humana. Embora tenha se tentado construir narrativas para lançar sobre os ombros da Pandemia a culpa sobre esse processo que culmina no empobrecimento global, no acirramento das desigualdades socioeconômicas, esse processo já está em curso há bastante tempo. Haja vista a matéria publicada pela BBC Brasil em Londres, em 2012 7.

Assim, de repente, você descobre que as novas regalias e privilégios, trazidas pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), enquanto parecem reafirmar o esplendor do espaço ocupado por uma minoria de afortunados, na verdade, tendem cada vez mais a intensificar a discrepância das desigualdades, mundo afora, e acentuar de maneira incisiva inúmeros problemas e desafios sociais que se arrastam historicamente.

Ora, se o desenvolvimento e o progresso não acabaram com a fome, não responderam à cura de diversas doenças, não mitigaram as desigualdades, não eliminaram as guerras e os conflitos, não constituíram base de consenso global sobre diferentes assuntos, não uniram a humanidade, por que acreditar que é possível controlar as consequências e os desdobramentos da Inteligência Artificial (I.A.)?

Foi pensando sobre tudo isso que não pude me deixar de lembrar das palavras do professor de História, o israelense Yuval Noah Harari, quando ele propõe a seguinte reflexão: “Se e quando programas de computador atingirem uma inteligência sobre-humana e um poder jamais visto, deveremos valorizar esses programas mais do que valorizamos os humanos? Seria aceitável, por exemplo, que uma inteligência artificial explorasse os humanos até os matasse para contemplar as necessidades de seus próprios desejos? Se a resposta é negativa, a   despeito da inteligência e do poder superiores, por que é ético que humanos explorem e matem porcos? ”.

De imediato elas fazem entender que não se pode atribuir todo esse processo a uma generalização da vontade humana. Ao contrário, ela acaba condicionada às vontades de uma ínfima parcela que domina e controla o planeta. Acontece que eles são egoístas demais, narcísicos demais, individualistas demais. E enquanto o restante da população enxerga nisso tudo um assombro de engenhosidade, de inteligência, os indivíduos acabam referendando a sua própria eliminação. Portanto, faça bom uso da sua inteligência natural, enquanto é possível.



2 TOP GUN MAVERICK II NOT TODAY -  https://www.youtube.com/watch?v=kZ_mrryk0h8