Inteligência
...
Por
Alessandra Leles Rocha
Tem sido na constante observância
dos acontecimentos globais 1 mais
impactantes que procuro refletir em torno do frisson que se estabeleceu em
torno da Inteligência Artificial (I.A.). Sim, porque para dimensionar os
impactos que tamanha novidade tecnológica pode imprimir aos seres humanos é
fundamental entender sobre que bases conjunturais ela se alicerça.
Desde que mundo é mundo, a saga
da humanidade se deu a partir de sucessivas transformações sociais, lapidadas
pela engenhosidade criativa e intelectual. No entanto, é uma pena que elas
nunca tenham chegado munidas de um planejamento que preparasse a sociedade para
as suas consequências e desdobramentos.
Basicamente, o que sempre se viu
foi uma perplexidade entusiástica diante das novidades, a qual trazia consigo o
peso de uma obrigação de ajustamento por parte da sociedade. A velha história
de trocar o pneu do carro com ele em movimento. Desafios que não permitem, por
exemplo, estimar o grau de fragilização e vulnerabilização social para uma
gigantesca parcela de pessoas.
Basta consultar as páginas da
história mundial para ver como os processos de inovação científica e tecnológica
são fadados a constituir legiões marginais, no sentido de que a mecanização e a
tecnologização implicaram necessariamente na redução da necessidade de
mão-de-obra convencional, lançando à margem do mercado de trabalho um número significativo
de cidadãos.
Portanto, cada passo adiante no
desenvolvimento científico e tecnológico representou sim, a consolidação do desemprego.
Ora, se novos vieses emergiram dentro do universo trabalhista jamais eles foram
diretamente proporcionais para atender as demandas sociais desempregadas. Sem contar
que, muitos desses trabalhadores, passaram a se encontrar em uma condição de
incapacidade para atender aos novos requisitos exigidos; pois, não foram
preparados para essa realidade que lhes caiu sobre a cabeça.
Aliás, esse é um dos pontos fundamentais
de análise. O desalinhamento entre as teorias e as práticas delimita muito bem
as dimensões dos problemas que a raça humana enfrenta em seus milhares de anos
de existência. O fato de avançarmos sem que os problemas estejam devidamente
solucionados é o que estabelece uma cronificação de mazelas, as quais se
acentuam com o passar do tempo e criam obstáculos intransponíveis na medida em
que a população não para de crescer.
Razão pela qual a conta nunca
fecha e os déficits vão se acumulando. Até que, em pleno século XXI, o salto de
avanço científico e tecnológico atinge um patamar absurdamente superior ao que se
poderia supor. Dessa vez, não se trata de uma redução nas demandas de
trabalhadores convencionais. O mundo está diante de uma sumária substituição de
força de trabalho, ou seja, as atividades, das mais simples às mais complexas, tenderão
a ser realizadas por uma mecanização munida de Inteligência Artificial (I.A.).
Ainda que se precise de
trabalhadores qualificados para manter essas engrenagens em franco
funcionamento, o curso natural do processo irá fazer com que as próprias máquinas
realizem esse trabalho. Enquanto uma gigantesca massa da população acreditava
que a precarização das atividades laborais e a perda de seus direitos trabalhistas
acontecia em nome da mera ganância das elites e dos proprietários dos meios de
produção, ela própria impulsionava o desenvolvimento de uma força de trabalho
que fosse ainda mais barata do que a sua.
Quem assistiu ao filme TOP GUN:
Maverick (2022), logo no início da trama se depara com a personagem Rear
Admiral Chester “Hammer” Cain afirmando à personagem Pete “Maverick” Mitchell
que o tempo dos pilotos de caça acabou, que o governo dos EUA não precisaria
mais desse custo tão alto e que os aviões, logo, passariam a ser comandados por
tecnologia de última geração 2. Como toda
obra de ficção, nela o protagonista consegue reverter os prognósticos, mas na
vida real não é tão simples.
Em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos
os efeitos colaterais da Inteligência Artificial (I.A.) vão levar milhões de pessoas
a extinção, a partir da impossibilidade real de alocação delas ao mercado
trabalho. O que significa negar-lhes o direito à dignidade humana, à sua sobrevivência.
Observe, por exemplo, as
seguintes manchetes: “Número de agências
bancárias já é o menor desde 2010. Fechamento acompanha migração para canais
digitais” 3, “Demissões no setor de tecnologia na
primeira semana de 2023 superam dezembro de 2022” 4,
“Supermercados investem em tecnologia para reduzir tempo na fila” 5, e “C&A investe no digital e acirra
disputa por compra de roupas na internet” 6.
Pois é, enquanto você inadvertidamente
é convencido sobre as maravilhas da facilidade tecnológica, da economia de
tempo, na contramão disso está uma legião de pessoas desempregadas, expostas à fragilização
e à vulnerabilização da sua dignidade humana. Embora tenha se tentado construir
narrativas para lançar sobre os ombros da Pandemia a culpa sobre esse processo
que culmina no empobrecimento global, no acirramento das desigualdades socioeconômicas,
esse processo já está em curso há bastante tempo. Haja vista a matéria publicada
pela BBC Brasil em Londres, em 2012 7.
Assim, de repente, você descobre que
as novas regalias e privilégios, trazidas pelas Tecnologias da Informação e da
Comunicação (TICs), enquanto parecem reafirmar o esplendor do espaço ocupado
por uma minoria de afortunados, na verdade, tendem cada vez mais a intensificar
a discrepância das desigualdades, mundo afora, e acentuar de maneira incisiva inúmeros
problemas e desafios sociais que se arrastam historicamente.
Ora, se o desenvolvimento e o
progresso não acabaram com a fome, não responderam à cura de diversas doenças, não
mitigaram as desigualdades, não eliminaram as guerras e os conflitos, não constituíram
base de consenso global sobre diferentes assuntos, não uniram a humanidade, por
que acreditar que é possível controlar as consequências e os desdobramentos da
Inteligência Artificial (I.A.)?
Foi pensando sobre tudo isso que
não pude me deixar de lembrar das palavras do professor de História, o israelense
Yuval Noah Harari, quando ele propõe a seguinte reflexão: “Se e quando programas de computador atingirem uma inteligência sobre-humana
e um poder jamais visto, deveremos valorizar esses programas mais do que
valorizamos os humanos? Seria aceitável, por exemplo, que uma inteligência artificial
explorasse os humanos até os matasse para contemplar as necessidades de seus próprios
desejos? Se a resposta é negativa, a despeito da inteligência e do poder
superiores, por que é ético que humanos explorem e matem porcos? ”.
De imediato elas fazem entender
que não se pode atribuir todo esse processo a uma generalização da vontade
humana. Ao contrário, ela acaba condicionada às vontades de uma ínfima parcela
que domina e controla o planeta. Acontece que eles são egoístas demais, narcísicos
demais, individualistas demais. E enquanto o restante da população enxerga
nisso tudo um assombro de engenhosidade, de inteligência, os indivíduos acabam referendando
a sua própria eliminação. Portanto, faça bom uso da sua inteligência natural,
enquanto é possível.
2 TOP GUN
MAVERICK II NOT TODAY - https://www.youtube.com/watch?v=kZ_mrryk0h8
3 https://valor.globo.com/financas/noticia/2023/04/04/numero-de-agencias-bancarias-ja-e-o-menor-desde-2010.ghtml
4 https://www.tudocelular.com/mercado/noticias/n200715/demissoes-tech-primeira-semana-2023-maior-2022.html#google_vignette
5 https://veja.abril.com.br/economia/supermercados-investem-em-tecnologia-para-reduzir-tempo-na-fila