sexta-feira, 21 de julho de 2023

Será que o mundo pode ser mesmo cor-de-rosa?


Será que o mundo pode ser mesmo cor-de-rosa?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Será que o mundo pode ser mesmo cor-de-rosa? Não, não é sobre o recente lançamento cinematográfico 1 a pergunta; mas, não posso negar que ele deu estímulo para as minhas reflexões. No entanto, o meu viés de análise mergulha em questões que geralmente passam despercebidas pela maior parte das pessoas, especialmente, em razão da dinâmica contemporânea.

Gostaria que o universo dos brinquedos estivesse literalmente restrito ao lúdico, a fantasia, a imaginação; mas, não está. Basta fechar os olhos e fazer uma viagem no tempo, até a infância, para perceber que a crueldade das desigualdades começa a se estampar no começo da história do indivíduo. Pois é, brinquedos e brincadeiras apresentam realidades distintas, dentro de um panorama de inacessibilidades diversas.

Então, quando a gente se permite pensar pela perspectiva da sociedade de consumo, entende que a indústria se dedicou a criar brinquedos para atender às expectativas de um seleto grupo de consumidores, cujos pais poderiam bancar os desejos de seus filhos. Acontece que toda aquela legião colocada à margem do consumismo não fica de olhinhos fechados para não ver o que acontece no mundo. E lá estão os brinquedos nos outdoors, nas revistas, nos comerciais, na televisão, as fazendo sonhar com um universo tão distante do seu.

Mas se engana quem pensa que esse é o único problema da história. Antes de chegar às prateleiras, às vitrines, ao sucesso com o público alvo, como todo produto mercadológico, os brinquedos surgem de concepções que busquem, entre vários aspectos, atender às ideologias dos seus consumidores. Não é à toa, por exemplo, que durante tanto tempo a sociedade reafirmou uma linha divisória entre brinquedos para meninos e brinquedos para meninas. Algo tão surreal, que não apenas separava os brinquedos; mas, também, obstaculizava e não incentivava a participação coletiva das crianças, de modo que meninos e meninas acabavam não interagindo entre si. 

A ideia era reafirmar continuamente crenças, valores e princípios em torno de um pseudopadrão de sociedade. Sim, porque aqueles produtos diziam respeito a uma dada realidade nacional, da qual se extraía uma respectiva classe social que, de repente, se tornava o modelo a ser seguido, ainda que, inacessível para uma imensa maioria da população global. De modo que a diversão infantil estava fadada a acompanhar um recorte específico do fluxo da evolução social e suas eventuais transformações comportamentais e de interesses.

E para que essa compreensão fique mais clara decidi escolher um exemplo. Bem, de todos os brinquedos, os quais tiveram como público alvo as meninas, as bonecas merecem uma reflexão especial, pois elas têm muito a nos dizer. Primeiramente, por se tratar da representação da mulher, ou seja, nas brincadeiras elas eram mães, filhas, tias, amigas e o enredo se desenvolvia em torno desse estereótipo feminino cuidador, doméstico. Aliás, brincar com bonecas era brincar de casinha. Faziam-se aniversários. Chás com as amigas. Compras de supermercado e feira. Buscavam os filhos na escola. Iam ao salão de beleza. ... As meninas, então, executavam uma representação do cotidiano de suas próprias mães.

Quanto à estética das bonecas, um número significativo delas potencializava no imaginário coletivo um padrão de beleza feminina, de biótipo físico beirando a perfeição, e um detalhe importante, que durante muitas décadas persistiu, a inexistência da diversidade racial das bonecas presentes no mercado. Basicamente a indústria trabalhou em torno de uma ideia caucasiana, ou seja, bonecas loiras, cabelos lisos ou levemente ondulados, altas, magras e de olhos azuis, dentro de uma proporcionalidade corporal de medidas exatas. Praticamente, seguindo o protocolo dos concursos de beleza internacionais, como o Miss Universo e o Miss Mundo.

Acontece que isso afastava a possibilidade de construção de representatividade. E a falta de questionamento a respeito derivava, basicamente, do fato de que o mercado consumidor era majoritariamente caucasiano. De modo que as bonecas produzidas tinham que garantir a representatividade dessas pessoas, cujo poder capital mantinha as engrenagens industriais a pleno vapor de produção. Foram necessárias, portanto, longas décadas e inúmeras discussões acaloradas, para que as bonecas viessem, ao menos, se aproximar da verdadeira representatividade social na amplidão da sua diversidade.  

No entanto, lamento que isso tenha ocorrido quase que em paralelo com a redução da faixa etária das meninas que se encantam pelo mundo das bonecas. A realidade do mundo contemporâneo fez com que as tecnologias conseguissem romper a velha bolha dos brinquedos de meninos e de meninas, trazendo uma democratização para o contexto da diversão e da interação entre as crianças. Cada vez mais cedo, lá estão elas com seus dedinhos e olhinhos frenéticos diante das telas, desconstruindo o ideário da diversão dos tempos analógicos para ampliar espaço para as brincadeiras virtuais e tecnológicas.  

E aí esbarramos em um outro ponto importante. Porque, embora as bonecas, ou quaisquer outros brinquedos dos tempos analógicos, tenham ganho uma recontextualização, o nicho de mercado consumidor já está em outra. Isso significa que esses brinquedos, ainda que continuem sendo produzidos, eles passaram a adquirir um outro papel social. Alguns tornaram-se elementos de decoração. Outros passaram a ser objetos de colecionador. ... O interessante é que uma imensa maioria, finalmente, chegou às mãos de crianças pertencentes as camadas sociais menos favorecidas.

Pois é, como a sociedade de consumo se nutre das novidades, o momento agora pertence à diversão tecnológica. Então, ela acaba se desfazendo dos seus brinquedos analógicos e propiciando que outras crianças desfrutem daquilo que ela já desfrutou. Há, dentro da própria indústria de brinquedos, uma redução drástica no preço quando o produto perde o seu rótulo de novidade, propiciando a aquisição por outros perfis consumidores. Mais uma vez, isso significa que pelo fato de serem lançadas à margem da inacessibilidade, resta a infância sem regalias e privilégios exercer o seu direito de diversão sempre dentro de um contexto de atraso social.

Dito isso, peço perdão ao (à) leitor (a) se essa breve reflexão afeta o seu ideário de um mundo cor-de-rosa! Eduardo Galeano escreveu que “A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la” (As veias abertas da América Latina, 2006) e quando eu paro para pensar sobre essa eterna necessidade que o ser humano tem em relação a uma vida cor-de-rosa, eu penso que é porque ele tem consciência de que isso ainda não existe. Ninguém corre atrás de algo, com tanta voracidade, que já se encontra, por aí, em cada esquina. A própria sociedade de consumo nos deixa isso muito claro, quando aponta o frenesi em torno da novidade. 

Ora, se queremos, de fato, nos aproximar de uma realidade bonita, feliz, tranquila, literalmente cor-de-rosa, precisamos purgar os horrores de tantos fantasmas trazidos pelas desigualdades. Parar de querer fugir das entrelinhas que escrevem o cotidiano e não banalizar o que não é raso e nem desimportante. Não há só uma perspectiva. Não há só um ponto de vista. Não há só um padrão. Apesar de toda a diversidade, de toda pluralidade, é sempre possível chegar a um consenso que seja positivo para todos.

Por isso, “Conseguir que as gerações futuras sejam mais felizes que a nossa será o maior prêmio que se possa aspirar. Não haverá valor comparável ao cumprimento desta grande missão que consiste em preparar para a humanidade futura um mundo melhor”; afinal, “Todo conceito que o homem não modifica com sua evolução, torna-se um preconceito” (Gonzalez Pecotche). Pensemos a respeito!

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