Será
que o mundo pode ser mesmo cor-de-rosa?
Por
Alessandra Leles Rocha
Será que o mundo pode ser mesmo
cor-de-rosa? Não, não é sobre o recente lançamento cinematográfico 1 a pergunta; mas, não posso negar que
ele deu estímulo para as minhas reflexões. No entanto, o meu viés de análise
mergulha em questões que geralmente passam despercebidas pela maior parte das
pessoas, especialmente, em razão da dinâmica contemporânea.
Gostaria que o universo dos
brinquedos estivesse literalmente restrito ao lúdico, a fantasia, a imaginação;
mas, não está. Basta fechar os olhos e fazer uma viagem no tempo, até a
infância, para perceber que a crueldade das desigualdades começa a se estampar no
começo da história do indivíduo. Pois é, brinquedos e brincadeiras apresentam
realidades distintas, dentro de um panorama de inacessibilidades diversas.
Então, quando a gente se permite
pensar pela perspectiva da sociedade de consumo, entende que a indústria se
dedicou a criar brinquedos para atender às expectativas de um seleto grupo de consumidores,
cujos pais poderiam bancar os desejos de seus filhos. Acontece que toda aquela
legião colocada à margem do consumismo não fica de olhinhos fechados para não
ver o que acontece no mundo. E lá estão os brinquedos nos outdoors, nas
revistas, nos comerciais, na televisão, as fazendo sonhar com um universo tão
distante do seu.
Mas se engana quem pensa que esse
é o único problema da história. Antes de chegar às prateleiras, às vitrines, ao
sucesso com o público alvo, como todo produto mercadológico, os brinquedos
surgem de concepções que busquem, entre vários aspectos, atender às ideologias
dos seus consumidores. Não é à toa, por exemplo, que durante tanto tempo a
sociedade reafirmou uma linha divisória entre brinquedos para meninos e
brinquedos para meninas. Algo tão surreal, que não apenas separava os
brinquedos; mas, também, obstaculizava e não incentivava a participação
coletiva das crianças, de modo que meninos e meninas acabavam não interagindo
entre si.
A ideia era reafirmar
continuamente crenças, valores e princípios em torno de um pseudopadrão de
sociedade. Sim, porque aqueles produtos diziam respeito a uma dada realidade
nacional, da qual se extraía uma respectiva classe social que, de repente, se
tornava o modelo a ser seguido, ainda que, inacessível para uma imensa maioria
da população global. De modo que a diversão infantil estava fadada a acompanhar
um recorte específico do fluxo da evolução social e suas eventuais
transformações comportamentais e de interesses.
E para que essa compreensão fique
mais clara decidi escolher um exemplo. Bem, de todos os brinquedos, os quais
tiveram como público alvo as meninas, as bonecas merecem uma reflexão especial,
pois elas têm muito a nos dizer. Primeiramente, por se tratar da representação
da mulher, ou seja, nas brincadeiras elas eram mães, filhas, tias, amigas e o
enredo se desenvolvia em torno desse estereótipo feminino cuidador, doméstico. Aliás,
brincar com bonecas era brincar de casinha. Faziam-se aniversários. Chás com as
amigas. Compras de supermercado e feira. Buscavam os filhos na escola. Iam ao
salão de beleza. ... As meninas, então, executavam uma representação do
cotidiano de suas próprias mães.
Quanto à estética das bonecas, um
número significativo delas potencializava no imaginário coletivo um padrão de
beleza feminina, de biótipo físico beirando a perfeição, e um detalhe
importante, que durante muitas décadas persistiu, a inexistência da diversidade
racial das bonecas presentes no mercado. Basicamente a indústria trabalhou em
torno de uma ideia caucasiana, ou seja, bonecas loiras, cabelos lisos ou
levemente ondulados, altas, magras e de olhos azuis, dentro de uma
proporcionalidade corporal de medidas exatas. Praticamente, seguindo o
protocolo dos concursos de beleza internacionais, como o Miss Universo e o Miss
Mundo.
Acontece que isso afastava a
possibilidade de construção de representatividade. E a falta de questionamento
a respeito derivava, basicamente, do fato de que o mercado consumidor era
majoritariamente caucasiano. De modo que as bonecas produzidas tinham que
garantir a representatividade dessas pessoas, cujo poder capital mantinha as
engrenagens industriais a pleno vapor de produção. Foram necessárias, portanto,
longas décadas e inúmeras discussões acaloradas, para que as bonecas viessem, ao
menos, se aproximar da verdadeira representatividade social na amplidão da sua
diversidade.
No entanto, lamento que isso
tenha ocorrido quase que em paralelo com a redução da faixa etária das meninas
que se encantam pelo mundo das bonecas. A realidade do mundo contemporâneo fez
com que as tecnologias conseguissem romper a velha bolha dos brinquedos de
meninos e de meninas, trazendo uma democratização para o contexto da diversão e
da interação entre as crianças. Cada vez mais cedo, lá estão elas com seus
dedinhos e olhinhos frenéticos diante das telas, desconstruindo o ideário da
diversão dos tempos analógicos para ampliar espaço para as brincadeiras
virtuais e tecnológicas.
E aí esbarramos em um outro ponto
importante. Porque, embora as bonecas, ou quaisquer outros brinquedos dos
tempos analógicos, tenham ganho uma recontextualização, o nicho de mercado
consumidor já está em outra. Isso significa que esses brinquedos, ainda que
continuem sendo produzidos, eles passaram a adquirir um outro papel social.
Alguns tornaram-se elementos de decoração. Outros passaram a ser objetos de
colecionador. ... O interessante é que uma imensa maioria, finalmente, chegou
às mãos de crianças pertencentes as camadas sociais menos favorecidas.
Pois é, como a sociedade de
consumo se nutre das novidades, o momento agora pertence à diversão
tecnológica. Então, ela acaba se desfazendo dos seus brinquedos analógicos e
propiciando que outras crianças desfrutem daquilo que ela já desfrutou. Há,
dentro da própria indústria de brinquedos, uma redução drástica no preço quando
o produto perde o seu rótulo de novidade, propiciando a aquisição por outros
perfis consumidores. Mais uma vez, isso significa que pelo fato de serem lançadas
à margem da inacessibilidade, resta a infância sem regalias e privilégios
exercer o seu direito de diversão sempre dentro de um contexto de atraso
social.
Dito isso, peço perdão ao (à)
leitor (a) se essa breve reflexão afeta o seu ideário de um mundo cor-de-rosa! Eduardo
Galeano escreveu que “A primeira condição
para modificar a realidade consiste em conhecê-la” (As veias abertas da
América Latina, 2006) e quando eu paro para pensar sobre essa eterna
necessidade que o ser humano tem em relação a uma vida cor-de-rosa, eu penso
que é porque ele tem consciência de que isso ainda não existe. Ninguém corre
atrás de algo, com tanta voracidade, que já se encontra, por aí, em cada
esquina. A própria sociedade de consumo nos deixa isso muito claro, quando
aponta o frenesi em torno da novidade.
Ora, se queremos, de fato, nos
aproximar de uma realidade bonita, feliz, tranquila, literalmente cor-de-rosa, precisamos
purgar os horrores de tantos fantasmas trazidos pelas desigualdades. Parar de
querer fugir das entrelinhas que escrevem o cotidiano e não banalizar o que não
é raso e nem desimportante. Não há só uma perspectiva. Não há só um ponto de
vista. Não há só um padrão. Apesar de toda a diversidade, de toda pluralidade,
é sempre possível chegar a um consenso que seja positivo para todos.
Por isso, “Conseguir que as gerações futuras sejam mais felizes que a nossa será o
maior prêmio que se possa aspirar. Não haverá valor comparável ao cumprimento
desta grande missão que consiste em preparar para a humanidade futura um mundo
melhor”; afinal, “Todo conceito que o
homem não modifica com sua evolução, torna-se um preconceito” (Gonzalez
Pecotche). Pensemos a respeito!