quinta-feira, 20 de julho de 2023

Dia do amigo


Dia do amigo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto o ser humano ainda for humano, ou seja, estiver na sua condição plena de existência, respirando, falando, andando, ... não vejo razão para dar a amizade, ou a qualquer outro sentimento, uma outra dimensão, mais atualizada, dentro dos “protocolos” contemporâneos.  Afinal, não dá para tampar o sol com uma peneira, tentando contemporizar em torno das transformações que operaram sobre as relações humanas, como se elas não estivessem afetando o sentido e a importância de quem realmente somos.  

Encurtar a geografia, do ponto de vista da comunicação, foi sim, um grande avanço tecnológico. Mas, quando se trata da subjetividade dos afetos, aí a coisa muda de figura. Acontece que, de repente, milhares de seres humanos viram na conquista de likes e seguidores um caminho bem mais fácil, curto e indolor para sobreviver nesse mundo.

Contrapondo todo aquele imenso processo de tecitura dos laços, que exigem sacrifícios, disposição, interesse, ... para lidar com o direito e o avesso do outro e de nós mesmos. Sim, porque relações humanas, ao vivo e a cores, é no mínimo desafiador. Ora, não somos completos, inteiros, plenos. A cada minuto somos surpreendidos por uma faceta nova da nossa personalidade, da nossa identidade, da nossa essência. E o mundo lá fora, nem sempre está acessível para nos receber como somos, sem exigir nada, sem impor pré-requisitos, sem tentar nos enquadrar de algum modo.

Querendo ou não, seres humanos são dados a idealizar, a construir um estereótipo irretocável sobre o outro. Algo que dura até a página dois, quando a verdade nua e crua frustra as expectativas, como era de ser. É nesse instante fatídico que a vida nos coloca contra a parede e diz: “É assim! Vai aceitar o pacote ou não? ”. Acontece que, na maioria das vezes, a indagação da vida não diz respeito ao outro, mas do outro sobre nós. Sim, porque relações humanas acontecem numa via de mão de dupla.  

E diante do cenário contemporâneo, quando o tempo é um elemento raro na dinâmica do cotidiano, o ser humano vem sendo cada vez mais obrigado a estabelecer as suas prioridades, inclusive, no campo das subjetividades. E se para tecer laços é preciso tempo, paciência, disposição etc.etc.etc., as pessoas acabam abdicando de relações que precisem ir além da superficialidade do convívio tecnológico. De modo que a convivência humana lembra, cada vez mais, os encontros de férias, os namoros de verão, as paixões de carnaval, enfim. Como se tivessem um prazo determinado para começar e acabar, estabelecido pelo grau de profundidade que desencadeiam.

Todos querem só o lado bom da vida e, portanto, das relações humanas. Assim, a velha máxima do “amigo para todas as horas” foi ficando restrito ao imaginário de quem viveu nos tempos analógicos. De repente, parece existir uma consciência tão absoluta em torno da pressa, da indisponibilidade afetiva, do descompromisso, que se estabeleceu um certo conformismo em torno dos likes e do número de seguidores, como a solução para redesenhar o significado da amizade.

Se não é para estar, para conviver, para compartilhar, para apoiar, para desfrutar com o outro a realidade, então, não tem problema reduzir tudo aos números do mundo virtual. Só que tem problema, sim! Esse é um efeito tão fugaz, que ao passar ele amplifica demasiadamente o sentimento de solidão, porque ele não consegue suprir o outro do essencial que está no exercício da sua humanidade. Porque os números não nos conhecem. Não, na profundidade do que somos. Os números constroem uma breve percepção a nosso respeito e a ajustam dentro das suas próprias expectativas. Cada número nos enxerga de uma maneira diferente; mas, certamente, distante da verdade.

De modo que, no frigir dos ovos, a contemporaneidade e suas pseudofacilidades nos lançaram, sem direito à rede de proteção ou paraquedas, à frieza de uma solidão acompanhada. E, talvez, para não nos sentirmos dissonantes do coletivo, não questionamos, não damos meia volta, não rompemos com as práxis. Silenciamos com a alma destroçada, em nome de um pseudopertencimento, de uma pseudoaceitação. Nos contentamos com as migalhas de superficialidade, de encontros fortuitos, de relações fragmentadas.

E, sem nos darmos conta, vez por outra, desenvolvendo toda a nossa habilidade afetiva, cuidadosa, sensível, sentimental, devotada, aos animais de estimação. Claro que eles merecem! Mas, temos que concordar que, majoritariamente, os animais de estimação têm ocupado, mais e mais, um espaço dentro das relações sociais, que antes pertencia a uma outra perspectiva, acontecia dentro de uma outra lógica, ditada pelo senso genuíno de humanidade. Agora, ela surge como o porto seguro que restou de “todo aquele imenso processo de tecitura dos laços”.

Por isso, no dia em que se comemora a amizade, vale a pena refletir a respeito. Para mim, de imediato, vem a lembrança de um trecho da crônica “Obrigada por insistir1, de Martha Medeiros, que diz “Em tempos em que quase ninguém se olha nos olhos, em que a maioria das pessoas pouco se interessa pelo que não lhe diz respeito, só mesmo agradecendo àqueles que percebem nossas descrenças, indecisões, suspeitas, tudo o que nos paralisa, e gastam um pouco da sua energia conosco, insistindo”. Afinal, palavras assim, nos devolvem o sentido da amizade, a vontade de voltar a tecer relações humanas analógicas, atemporais, genuína e prazerosamente afetivas, porque são capazes de tocar no mais profundo do que ainda resta da nossa humanidade.  



1 MEDEIROS, M. Doidas e Santas. Porto Alegre: L&PM, 2008. 

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