Dia
do amigo
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto o ser humano ainda for
humano, ou seja, estiver na sua condição plena de existência, respirando,
falando, andando, ... não vejo razão para dar a amizade, ou a qualquer outro
sentimento, uma outra dimensão, mais atualizada, dentro dos “protocolos” contemporâneos. Afinal, não dá para tampar o sol com uma
peneira, tentando contemporizar em torno das transformações que operaram sobre
as relações humanas, como se elas não estivessem afetando o sentido e a importância
de quem realmente somos.
Encurtar a geografia, do ponto de
vista da comunicação, foi sim, um grande avanço tecnológico. Mas, quando se
trata da subjetividade dos afetos, aí a coisa muda de figura. Acontece que, de
repente, milhares de seres humanos viram na conquista de likes e seguidores um caminho bem mais fácil, curto e indolor para
sobreviver nesse mundo.
Contrapondo todo aquele imenso
processo de tecitura dos laços, que exigem sacrifícios, disposição, interesse,
... para lidar com o direito e o avesso do outro e de nós mesmos. Sim, porque
relações humanas, ao vivo e a cores, é no mínimo desafiador. Ora, não somos
completos, inteiros, plenos. A cada minuto somos surpreendidos por uma faceta
nova da nossa personalidade, da nossa identidade, da nossa essência. E o mundo
lá fora, nem sempre está acessível para nos receber como somos, sem exigir
nada, sem impor pré-requisitos, sem tentar nos enquadrar de algum modo.
Querendo ou não, seres humanos são
dados a idealizar, a construir um estereótipo irretocável sobre o outro. Algo que
dura até a página dois, quando a verdade nua e crua frustra as expectativas,
como era de ser. É nesse instante fatídico que a vida nos coloca contra a
parede e diz: “É assim! Vai aceitar o
pacote ou não? ”. Acontece que, na maioria das vezes, a indagação da vida
não diz respeito ao outro, mas do outro sobre nós. Sim, porque relações humanas
acontecem numa via de mão de dupla.
E diante do cenário contemporâneo,
quando o tempo é um elemento raro na dinâmica do cotidiano, o ser humano vem
sendo cada vez mais obrigado a estabelecer as suas prioridades, inclusive, no
campo das subjetividades. E se para tecer laços é preciso tempo, paciência,
disposição etc.etc.etc., as pessoas acabam abdicando de relações que precisem
ir além da superficialidade do convívio tecnológico. De modo que a convivência humana
lembra, cada vez mais, os encontros de férias, os namoros de verão, as paixões
de carnaval, enfim. Como se tivessem um prazo determinado para começar e
acabar, estabelecido pelo grau de profundidade que desencadeiam.
Todos querem só o lado bom da
vida e, portanto, das relações humanas. Assim, a velha máxima do “amigo para todas as horas” foi ficando
restrito ao imaginário de quem viveu nos tempos analógicos. De repente, parece
existir uma consciência tão absoluta em torno da pressa, da indisponibilidade
afetiva, do descompromisso, que se estabeleceu um certo conformismo em torno
dos likes e do número de seguidores, como a solução para
redesenhar o significado da amizade.
Se não é para estar, para
conviver, para compartilhar, para apoiar, para desfrutar com o outro a
realidade, então, não tem problema reduzir tudo aos números do mundo virtual. Só
que tem problema, sim! Esse é um efeito tão fugaz, que ao passar ele amplifica demasiadamente
o sentimento de solidão, porque ele não consegue suprir o outro do essencial
que está no exercício da sua humanidade. Porque os números não nos conhecem. Não,
na profundidade do que somos. Os números constroem uma breve percepção a nosso
respeito e a ajustam dentro das suas próprias expectativas. Cada número nos enxerga
de uma maneira diferente; mas, certamente, distante da verdade.
De modo que, no frigir dos ovos,
a contemporaneidade e suas pseudofacilidades nos lançaram, sem direito à rede
de proteção ou paraquedas, à frieza de uma solidão acompanhada. E, talvez, para
não nos sentirmos dissonantes do coletivo, não questionamos, não damos meia volta,
não rompemos com as práxis. Silenciamos com a alma destroçada, em nome de um
pseudopertencimento, de uma pseudoaceitação. Nos contentamos com as migalhas de
superficialidade, de encontros fortuitos, de relações fragmentadas.
E, sem nos darmos conta, vez por
outra, desenvolvendo toda a nossa habilidade afetiva, cuidadosa, sensível,
sentimental, devotada, aos animais de estimação. Claro que eles merecem! Mas, temos
que concordar que, majoritariamente, os animais de estimação têm ocupado, mais
e mais, um espaço dentro das relações sociais, que antes pertencia a uma outra
perspectiva, acontecia dentro de uma outra lógica, ditada pelo senso genuíno de
humanidade. Agora, ela surge como o porto seguro que restou de “todo aquele imenso processo de tecitura dos
laços”.
Por isso, no dia em que se
comemora a amizade, vale a pena refletir a respeito. Para mim, de imediato, vem
a lembrança de um trecho da crônica “Obrigada
por insistir” 1, de Martha Medeiros, que
diz “Em tempos em que quase ninguém se
olha nos olhos, em que a maioria das pessoas pouco se interessa pelo que não
lhe diz respeito, só mesmo agradecendo àqueles que percebem nossas descrenças,
indecisões, suspeitas, tudo o que nos paralisa, e gastam um pouco da sua
energia conosco, insistindo”. Afinal, palavras assim, nos devolvem o
sentido da amizade, a vontade de voltar a tecer relações humanas analógicas,
atemporais, genuína e prazerosamente afetivas, porque são capazes de tocar no
mais profundo do que ainda resta da nossa humanidade.