domingo, 30 de julho de 2023

O péssimo hábito da desresponsabilização contemporânea


O péssimo hábito da desresponsabilização contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Observando o franco movimento social de abstenção das responsabilidades, decidi escrever a respeito sob um viés ainda mais desconfortável. Nem sempre a concretude dos acontecimentos é a causa em si das dores, no contexto das relações humanas. Se desresponsabilizar pela dor alheia através da negação do que disse, fez e/ou expressou pode ser muito mais perverso e cruel. Sobretudo, dentro das especificidades conjunturais de cada situação.

Ainda que seja possível compreender que essa abstenção das responsabilidades seja um subterfúgio para resguardar algum tipo de imagem socialmente aceita, quem padece o sofrimento causado não esquece. Afinal, o poço das fragilidades humanas não é passível de medição. Assim, dependendo do que se ouve, do que se recebe, do que se experencia, o impacto pode ser efetivamente devastador, especialmente, quando ele reproduz algo semelhante já acontecido. Nessas horas, um mínimo arranhão que seja pode abrir a ferida e fazê-la sangrar novamente.

Por isso, o ser humano precisa ser mais cuidadoso, mais empático. Apesar de vivermos tempos de um individualismo narcísico e egoísta, nenhum ser humano é uma ilha. A existência humana está sob um regime de relações sociais, menos e mais complexas, com uma pluralidade infinita de pessoas. De modo que não temos como precisar, com exatidão, como os nossos atos, decisões, escolhas, podem afetar diretamente a estabilidade e o equilíbrio do outro. Principalmente, quando a realidade do outro parece segura por pilares arduamente construídos.

Isso explica porque, então, é fundamental entender que a nossa autonomia existencial tem limites. Não dá para agir segundo a vontade dos ventos da própria cabeça. Instintos e impulsos nunca foram bons conselheiros e se eles emergem, de uma hora para outra, dentro de uma personalidade repleta de crenças, valores e princípios, é sinal de que a coisa está transitando por caminhos perigosos. A não ser que estejamos falando de alguém com transtorno bipolar!

Ninguém muda tanto e repentinamente se não fosse esse o desejo inconsciente que aguardava oportunidade para romper. Sinal claro de que aquela imagem não era, de fato, o que se mostrava a princípio. E como não poderia deixar de ser, isso choca, desconforta; pois, implica na necessidade de reconhecimento dessa nova persona que se apresenta. Ora, e o indivíduo nem se deu ao trabalho de questionar se o outro estava pronto para esse reaprendizado, para essa avalanche de surpresas!

Pois é, de repente, o sério vira debochado, o conservador vira moderninho, o confiável vira mentiroso, ... e aquela pessoa, que um dia você acreditou conhecer, desaparece como em um passe de mágica. Tudo porque ela decidiu navegar por outros mares munida de seus direitos, cabendo ao resto do mundo se ajustar, se modelar, se render às suas novas decisões. E se para isso ela vai precisar ofender, magoar, desrespeitar etc.etc.etc., quem quer que seja, esteja certo de que ela vai. Porque depois ela vai se desresponsabilizar através da negação do que disse, fez e/ou expressou.

Assim, lamento informar que quaisquer tentativas de diálogo com alguém assim, é inútil. O sujeito vira daqui, mexe dali, e cria na sua mente um discurso totalmente contrário a lógica e à realidade dos acontecimentos. De bandido para mocinho, ele se transforma num piscar de olhos. Ele passa a ser a vítima, o ofendido, o agredido, pela perspectiva de que ele estava no seu direito de decidir, de escolher. Era a sua vida. ... Como se vivesse sozinho na sua bolha!

E aí, nessa jornada de acontecimentos, o outro começa a perceber o tamanho do engano que reside em depositar confiança, afeto, a pessoas com esse perfil. O ideário que se tinha é sumariamente desconstruído, como se tivesse prazo de validade e terminasse quando o indivíduo encontrasse alguma possibilidade de subverter a lógica.  Portanto, não é qualquer mudança, é uma mudança identitária, que nunca chega com aviso prévio, com cartas na mesa, com verdades ditas com clareza.

Desse modo, por mais que o outro queira tentar, e manter a tecitura desses laços, chega um momento que não dá. A sua tentativa de se fazer caber nessa história é demasiadamente indigna, porque enquanto se preocupa em cultivar respeitosamente a relação, na sua integridade e integralidade, o outro se contenta com migalhas porque precisa defender a escolha que fez. E assim, as importâncias e as desimportâncias são estabelecidas sem que, no entanto, tenha havido qualquer manifestação verdadeiramente consistente e respeitosa em assumir as responsabilidades quanto ao que foi dito, feito ou expresso.

De certa forma, isso explica porque as mágoas acabam se tornando tão difíceis de serem superadas. Elas acabam caindo numa vala rasa de esquecimento; mas, sem quaisquer trabalhos de superação, de resolução definitiva. Ficam ali, fermentando, aguardando, como se esperassem uma autodepuração. E como isso não acontece e a vida é cheia de gatilhos para acionar as nossas dores mais profundas, vez por outra, elas voltam a pulsar, a incomodar. Lembra da canção “Revelação” (1978), de Raimundo Fagner 1?

A ideia dessa breve reflexão é pensar a respeito desse movimento que nos conduz a repetir velhos padrões, a andar por círculos de dor e sofrimento que já deveriam ter sido superados. Ainda que pareça contraditório, o mundo contemporâneo tende a nos fazer almejar, cada vez mais, o pertencimento, a aceitação, a participação. Porém, isso não pode ser à custa de sofrimento, de dor, de ruptura com o nosso amor-próprio. Talvez, por conta disso, Caio Fernando Abreu fez questão de deixar o seguinte aviso: “Tô me afastando de tudo que me atrasa, me engana, me segura e me retém. Tô me aproximando de tudo que me faz completo, me faz feliz e me quer bem”.