O
péssimo hábito da desresponsabilização contemporânea
Por
Alessandra Leles Rocha
Observando o franco movimento
social de abstenção das responsabilidades, decidi escrever a respeito sob um
viés ainda mais desconfortável. Nem sempre a concretude dos acontecimentos é a
causa em si das dores, no contexto das relações humanas. Se desresponsabilizar
pela dor alheia através da negação do que disse, fez e/ou expressou pode ser
muito mais perverso e cruel. Sobretudo, dentro das especificidades conjunturais
de cada situação.
Ainda que seja possível
compreender que essa abstenção das responsabilidades seja um subterfúgio para
resguardar algum tipo de imagem socialmente aceita, quem padece o sofrimento
causado não esquece. Afinal, o poço das fragilidades humanas não é passível de
medição. Assim, dependendo do que se ouve, do que se recebe, do que se
experencia, o impacto pode ser efetivamente devastador, especialmente, quando
ele reproduz algo semelhante já acontecido. Nessas horas, um mínimo arranhão
que seja pode abrir a ferida e fazê-la sangrar novamente.
Por isso, o ser humano precisa
ser mais cuidadoso, mais empático. Apesar de vivermos tempos de um
individualismo narcísico e egoísta, nenhum ser humano é uma ilha. A existência humana
está sob um regime de relações sociais, menos e mais complexas, com uma
pluralidade infinita de pessoas. De modo que não temos como precisar, com
exatidão, como os nossos atos, decisões, escolhas, podem afetar diretamente a
estabilidade e o equilíbrio do outro. Principalmente, quando a realidade do
outro parece segura por pilares arduamente construídos.
Isso explica porque, então, é fundamental
entender que a nossa autonomia existencial tem limites. Não dá para agir
segundo a vontade dos ventos da própria cabeça. Instintos e impulsos nunca
foram bons conselheiros e se eles emergem, de uma hora para outra, dentro de
uma personalidade repleta de crenças, valores e princípios, é sinal de que a coisa
está transitando por caminhos perigosos. A não ser que estejamos falando de
alguém com transtorno bipolar!
Ninguém muda tanto e
repentinamente se não fosse esse o desejo inconsciente que aguardava
oportunidade para romper. Sinal claro de que aquela imagem não era, de fato, o
que se mostrava a princípio. E como não poderia deixar de ser, isso choca,
desconforta; pois, implica na necessidade de reconhecimento dessa nova persona
que se apresenta. Ora, e o indivíduo nem se deu ao trabalho de questionar se o
outro estava pronto para esse reaprendizado, para essa avalanche de surpresas!
Pois é, de repente, o sério vira
debochado, o conservador vira moderninho, o confiável vira mentiroso, ... e
aquela pessoa, que um dia você acreditou conhecer, desaparece como em um passe
de mágica. Tudo porque ela decidiu navegar por outros mares munida de seus
direitos, cabendo ao resto do mundo se ajustar, se modelar, se render às suas novas
decisões. E se para isso ela vai precisar ofender, magoar, desrespeitar
etc.etc.etc., quem quer que seja, esteja certo de que ela vai. Porque depois
ela vai se desresponsabilizar através da negação do que disse, fez e/ou
expressou.
Assim, lamento informar que quaisquer
tentativas de diálogo com alguém assim, é inútil. O sujeito vira daqui, mexe
dali, e cria na sua mente um discurso totalmente contrário a lógica e à realidade
dos acontecimentos. De bandido para mocinho, ele se transforma num piscar de
olhos. Ele passa a ser a vítima, o ofendido, o agredido, pela perspectiva de
que ele estava no seu direito de decidir, de escolher. Era a sua vida. ... Como
se vivesse sozinho na sua bolha!
E aí, nessa jornada de
acontecimentos, o outro começa a perceber o tamanho do engano que reside em
depositar confiança, afeto, a pessoas com esse perfil. O ideário que se tinha é
sumariamente desconstruído, como se tivesse prazo de validade e terminasse
quando o indivíduo encontrasse alguma possibilidade de subverter a lógica. Portanto, não é qualquer mudança, é uma
mudança identitária, que nunca chega com aviso prévio, com cartas na mesa, com
verdades ditas com clareza.
Desse modo, por mais que o outro
queira tentar, e manter a tecitura desses laços, chega um momento que não dá. A
sua tentativa de se fazer caber nessa história é demasiadamente indigna, porque
enquanto se preocupa em cultivar respeitosamente a relação, na sua integridade
e integralidade, o outro se contenta com migalhas porque precisa defender a
escolha que fez. E assim, as importâncias e as desimportâncias são
estabelecidas sem que, no entanto, tenha havido qualquer manifestação verdadeiramente
consistente e respeitosa em assumir as responsabilidades quanto ao que foi
dito, feito ou expresso.
De certa forma, isso explica
porque as mágoas acabam se tornando tão difíceis de serem superadas. Elas acabam
caindo numa vala rasa de esquecimento; mas, sem quaisquer trabalhos de
superação, de resolução definitiva. Ficam ali, fermentando, aguardando, como se
esperassem uma autodepuração. E como isso não acontece e a vida é cheia de
gatilhos para acionar as nossas dores mais profundas, vez por outra, elas
voltam a pulsar, a incomodar. Lembra da canção “Revelação” (1978), de Raimundo Fagner
1?
A ideia dessa breve reflexão é
pensar a respeito desse movimento que nos conduz a repetir velhos padrões, a
andar por círculos de dor e sofrimento que já deveriam ter sido superados. Ainda
que pareça contraditório, o mundo contemporâneo tende a nos fazer almejar, cada
vez mais, o pertencimento, a aceitação, a participação. Porém, isso não pode
ser à custa de sofrimento, de dor, de ruptura com o nosso amor-próprio. Talvez,
por conta disso, Caio Fernando Abreu fez questão de deixar o seguinte aviso: “Tô me afastando de tudo que me atrasa, me
engana, me segura e me retém. Tô me aproximando de tudo que me faz completo, me
faz feliz e me quer bem”.