A
ética. A glória. O constrangimento.
Por
Alessandra Leles Rocha
Bons tempos eram aqueles em que o
cidadão podia exercer sua simpatia ou paixão exacerbada por um time, sob o
manto pacífico da compreensão imutável de que ganhar ou perder fazia parte do
jogo. Infelizmente, a contemporaneidade permitiu
que certas variáveis do cotidiano contaminassem o cenário desportivo e nos
trouxessem reflexões bem mais profundas e indigestas sobre o que acontece nos
meandros da história.
Já faz tempo que o Brasil presencia,
assim como outros países, episódios de barbárie entre torcidas organizadas. E embora
muito se discuta a esse respeito, a partir de opiniões de especialistas,
desportistas, clubes e cidadãos comuns, a situação persiste. Aliás, uma das explicações
disso está no fato de que a realidade de violência propagada, principalmente,
pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), com sua gama de redes
sociais, torna tudo muito rápido e incontrolável.
Muito bem, esse é um ponto. Entretanto,
me parece comodista essa visão de lançar sobre os ombros das TICs a grande
parcela de responsabilidade, quando por trás delas estão milhões de seres
humanos que são, na verdade, os verdadeiros reservatórios dessa violência. Em maior
ou em menor escala, a essência humana é dotada de agressividade. Foi o tempo
que, com seu processo civilizatório e domesticador, impôs freios aos arroubos da
sua selvageria genuína. O que não significa, como já percebemos, ter obtido êxito
pleno a esse respeito.
De modo que me parece fundamental
sair de cima do muro e começar a discutir o ser humano no cenário da violência no
esporte, principalmente, no que diz respeito aos atletas e seus admiradores. É curioso
que haja um olhar de lince sobre os desportistas, especialmente os de alta
performance, lançado pelas Associações, Federações e Confederações, em relação
aos métodos e práticas de doping, por
se tratar de um desvio ético que desequilibra a igualdade de forças e
potencialidades entre os indivíduos e/ou equipes.
Porém, não se engane que seja só
por isso! Há milhares de questões socioeconômicas em jogo. O esporte é uma
vitrine de oportunidades e possibilidades sociais. Atletas são cada vez mais elevados
a condição de formadores de opinião, de influenciadores digitais, de exemplos a
serem fielmente seguidos. Daí a questão do doping
se tornar uma questão importante e delicada, na medida em que atravessa a
imagem, a credibilidade, a influência desses indivíduos sobre a sua imensa legião
de seguidores que passa a ser construída mediante a sua visibilidade
desportiva.
Isso envolve, então, marcas,
patrocinadores, equipes e seleções, que podem, de repente, ser envolvidas em
situações negativas. O que surpreende é que no fato de falas, gestos ou
comportamentos inapropriados e incompatíveis com suas respectivas filosofias, a
questão da ética acaba sendo contemporizada ou tratada com muito menos rigor.
Ora, ética é ética! Não dá para relativizar ao sabor dos ventos!
Daí ser tão necessária a formação
de uma consciência nos atletas quanto ao seu papel social, cidadão, diante de determinados
assuntos recorrentes no país e no mundo, como é o caso da violência. Algo que
não fica restrito a uma postura consciente em entrevistas, por exemplo. É preciso
que essa compreensão seja incorporada enquanto crença, valor ou princípio, à própria
dinâmica cotidiana do atleta. Ajustar o discurso à prática é essencial!
No entanto, no Brasil, isso
parece longe de configurar um senso comum. A idolatria mitificadora que envolve
os atletas de alta performance tende a dissociá-los da sua humanidade, como se
a fama, o sucesso, os altos salários e/ou a vida de luxo e regalias, fosse
suficiente para abstê-los de suas responsabilidades cidadãs. O que acaba
facilmente permeável à absorção de seu séquito de fiéis seguidores e cria uma
realidade paralela onde a ética, a moral, as obrigações, os compromissos, passam
a ser extremamente relativizados.
Quando patrocinadores, equipes e seleções
permitem que um atleta envolvido, direta ou indiretamente, a um episódio que
fere a ética, ou o decoro, ou até mesmo, represente um ato delituoso, não seja
desligado das suas funções e o mantenha em posição de destaque no grupo, ainda
que em stand by, o seu silêncio nesse
movimento é deplorável e funciona sim, como ação reafirmativa aos desvios
sociocomportamentais vigentes.
Afinal de contas, como já
mencionei anteriormente, essa é uma responsabilidade a ser compartilhada
coletivamente por diferentes elementos da sociedade, a fim de que se obtenha
resultados transformadores efetivamente positivos. Quando um dos elos dessa
corrente falha ou se abstém da sua responsabilidade, violências, beligerâncias,
delitos, continuam encontrando solo fértil para se propagar com extrema
facilidade.
É importante destacar, também,
que pedidos de desculpa e/ou retratações são inócuas, e por excesso de recorrência
na contemporaneidade, já soam com extrema desconfiança e desqualificação. Ninguém
fala ou faz alguma coisa a esmo, sem pensar, sem intencionar algo. A manifestação
prática, materializada, representa tão somente aquilo que o indivíduo defende,
acredita, aceita, permite. Seja para o bem ou para o mal. Talvez, por isso o
ser humano tenha sido dotado de capacidade cognitiva, analítica, reflexiva.
Por isso, sejamos mais
conscientes e observadores em relação ao que acontece no mundo. A violência não
é só a violência. O esporte não é só o esporte. Abaixo dessa linha tênue e
superficializada que permitimos servir como referência de análise ao nosso
olhar sobre o mundo, há um conjunto de teias relacionais emaranhadas, se
desdobrando em consequências terríveis para o desenvolvimento e o progresso
social.
Atenção às reafirmações deletérias de crenças, valores e princípios, absurdamente deploráveis, que desvirtuam as pessoas do caminho da exaltação de suas melhores habilidades e competências. Lembre-se de que a barbárie não desapareceu no ser humano, ela apenas está submetida a algum limite de domesticação; por isso, é preciso observância e cuidado, sempre.