domingo, 30 de abril de 2023

A ética. A glória. O constrangimento.


A ética. A glória. O constrangimento.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Bons tempos eram aqueles em que o cidadão podia exercer sua simpatia ou paixão exacerbada por um time, sob o manto pacífico da compreensão imutável de que ganhar ou perder fazia parte do jogo.  Infelizmente, a contemporaneidade permitiu que certas variáveis do cotidiano contaminassem o cenário desportivo e nos trouxessem reflexões bem mais profundas e indigestas sobre o que acontece nos meandros da história.

Já faz tempo que o Brasil presencia, assim como outros países, episódios de barbárie entre torcidas organizadas. E embora muito se discuta a esse respeito, a partir de opiniões de especialistas, desportistas, clubes e cidadãos comuns, a situação persiste. Aliás, uma das explicações disso está no fato de que a realidade de violência propagada, principalmente, pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), com sua gama de redes sociais, torna tudo muito rápido e incontrolável.

Muito bem, esse é um ponto. Entretanto, me parece comodista essa visão de lançar sobre os ombros das TICs a grande parcela de responsabilidade, quando por trás delas estão milhões de seres humanos que são, na verdade, os verdadeiros reservatórios dessa violência. Em maior ou em menor escala, a essência humana é dotada de agressividade. Foi o tempo que, com seu processo civilizatório e domesticador, impôs freios aos arroubos da sua selvageria genuína. O que não significa, como já percebemos, ter obtido êxito pleno a esse respeito.

De modo que me parece fundamental sair de cima do muro e começar a discutir o ser humano no cenário da violência no esporte, principalmente, no que diz respeito aos atletas e seus admiradores. É curioso que haja um olhar de lince sobre os desportistas, especialmente os de alta performance, lançado pelas Associações, Federações e Confederações, em relação aos métodos e práticas de doping, por se tratar de um desvio ético que desequilibra a igualdade de forças e potencialidades entre os indivíduos e/ou equipes.  

Porém, não se engane que seja só por isso! Há milhares de questões socioeconômicas em jogo. O esporte é uma vitrine de oportunidades e possibilidades sociais. Atletas são cada vez mais elevados a condição de formadores de opinião, de influenciadores digitais, de exemplos a serem fielmente seguidos. Daí a questão do doping se tornar uma questão importante e delicada, na medida em que atravessa a imagem, a credibilidade, a influência desses indivíduos sobre a sua imensa legião de seguidores que passa a ser construída mediante a sua visibilidade desportiva.

Isso envolve, então, marcas, patrocinadores, equipes e seleções, que podem, de repente, ser envolvidas em situações negativas. O que surpreende é que no fato de falas, gestos ou comportamentos inapropriados e incompatíveis com suas respectivas filosofias, a questão da ética acaba sendo contemporizada ou tratada com muito menos rigor. Ora, ética é ética! Não dá para relativizar ao sabor dos ventos!

Daí ser tão necessária a formação de uma consciência nos atletas quanto ao seu papel social, cidadão, diante de determinados assuntos recorrentes no país e no mundo, como é o caso da violência. Algo que não fica restrito a uma postura consciente em entrevistas, por exemplo. É preciso que essa compreensão seja incorporada enquanto crença, valor ou princípio, à própria dinâmica cotidiana do atleta. Ajustar o discurso à prática é essencial!

No entanto, no Brasil, isso parece longe de configurar um senso comum. A idolatria mitificadora que envolve os atletas de alta performance tende a dissociá-los da sua humanidade, como se a fama, o sucesso, os altos salários e/ou a vida de luxo e regalias, fosse suficiente para abstê-los de suas responsabilidades cidadãs. O que acaba facilmente permeável à absorção de seu séquito de fiéis seguidores e cria uma realidade paralela onde a ética, a moral, as obrigações, os compromissos, passam a ser extremamente relativizados.

Quando patrocinadores, equipes e seleções permitem que um atleta envolvido, direta ou indiretamente, a um episódio que fere a ética, ou o decoro, ou até mesmo, represente um ato delituoso, não seja desligado das suas funções e o mantenha em posição de destaque no grupo, ainda que em stand by, o seu silêncio nesse movimento é deplorável e funciona sim, como ação reafirmativa aos desvios sociocomportamentais vigentes.

Afinal de contas, como já mencionei anteriormente, essa é uma responsabilidade a ser compartilhada coletivamente por diferentes elementos da sociedade, a fim de que se obtenha resultados transformadores efetivamente positivos. Quando um dos elos dessa corrente falha ou se abstém da sua responsabilidade, violências, beligerâncias, delitos, continuam encontrando solo fértil para se propagar com extrema facilidade.

É importante destacar, também, que pedidos de desculpa e/ou retratações são inócuas, e por excesso de recorrência na contemporaneidade, já soam com extrema desconfiança e desqualificação. Ninguém fala ou faz alguma coisa a esmo, sem pensar, sem intencionar algo. A manifestação prática, materializada, representa tão somente aquilo que o indivíduo defende, acredita, aceita, permite. Seja para o bem ou para o mal. Talvez, por isso o ser humano tenha sido dotado de capacidade cognitiva, analítica, reflexiva.

Por isso, sejamos mais conscientes e observadores em relação ao que acontece no mundo. A violência não é só a violência. O esporte não é só o esporte. Abaixo dessa linha tênue e superficializada que permitimos servir como referência de análise ao nosso olhar sobre o mundo, há um conjunto de teias relacionais emaranhadas, se desdobrando em consequências terríveis para o desenvolvimento e o progresso social.

Atenção às reafirmações deletérias de crenças, valores e princípios, absurdamente deploráveis, que desvirtuam as pessoas do caminho da exaltação de suas melhores habilidades e competências. Lembre-se de que a barbárie não desapareceu no ser humano, ela apenas está submetida a algum limite de domesticação; por isso, é preciso observância e cuidado, sempre. 

sábado, 29 de abril de 2023

É preciso corrigir a rota!


É preciso corrigir a rota!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Veja bem, não é porque uma história começa a partir de certas linhas que essas, obrigatoriamente, precisam determinar o seu curso. No entanto, o Brasil ao querer se prender, com unhas e dentes, às suas origens coloniais deixou escapar entre os dedos milhões de oportunidades de desbravar outros caminhos. E como de costume, ao invés de refletir a respeito desse comportamento, no mínimo, equivocado, busca na discursividade de suas narrativas elementos que possam, de alguma forma, justificar a sua resistente posição retrógrada.

Não lhe parece estranho que, em plena efervescência contemporânea, quando tudo muda em um piscar de olhos, o Brasil reafirme para si e para o mundo a sua total devoção ao setor primário da economia, especialmente, ao agronegócio? Tudo começou daí. Com um avassalador extrativismo das madeiras de lei que constituíam a cobertura vegetal do território, com destaque para o Pau-Brasil.

Em seguida, vieram as plantations de cana-de-açúcar, predominantes no Nordeste. Depois, o Ciclo do Ouro nas Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. O Ciclo do Algodão para atender as demandas da produção têxtil, que marcava a Revolução Industrial, na Inglaterra. O Ciclo do Café, também, com suas enormes plantations, no Oeste Paulista e Vale do Paraíba, visando a exportação. O Ciclo da Borracha, na região Amazônica, para atender as demandas das três primeiras Revoluções Industriais. Isso sem contar, com a marcha de expansão do interior brasileiro, que impulsionou os diferentes tipos de criação animal para abate e consumo.

A subserviência a essa dinâmica, durante a colonização, é compreensível. O Brasil não tinha vez e voz para se posicionar de outra maneira. Mas, por que não rompeu essa estrutura depois da sua independência? Embora pertinente a pergunta, a resposta é frustrante. Infelizmente, a estrutura socioeconômica dominante já estava consolidada e não permitiu. Bem estabelecido, o setor primário nacional não viu razões para desestabilizar a sua influência e poder, a fim de se ajustar a corrente de transformações que se operava no mundo. Simplesmente, não quiseram trocar o certo pelo duvidoso e se colocar no mercado competitivo das grandes economias globais.

Ainda que o tempo tenha lhes obrigado a investir em novas tecnologias e conhecimentos científicos, a essência das suas práxis permaneceu a mesma, porque as condições geográficas do país, por si só, já lhes favorecem a manutenção de números expressivos no âmbito do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. E escorando-se nessa imagem bem-sucedida e poderosa, eles omitem do inconsciente coletivo as verdades indigestas que permeiam as suas respectivas atividades.

Começando pelo fato de que eles não estão, nem nunca estiveram, verdadeiramente comprometidos com a totalidade do desenvolvimento e do progresso socioeconômico brasileiro. Haja vista como eles são vorazes, quando o assunto é uma possível competição com o setor secundário, por exemplo. Além da disputa direta com a industrialização pela influência e poder decisório do país, há de se considerar, também, o fato de que a indústria tende a criar perspectivas sociais melhores para a população. O que significa mais geração de empregos formais, salários mais atrativos, melhor qualificação profissional. O que desconstruiria o paradigma histórico, o qual sempre esteve limitado a uma perspectiva de cenário socioeconômico imposto pelo setor primário, possibilitando assim, o desencadeamento de conflitos e tensões.  

Mas, se eles se opõem àqueles que, pelo menos em tese, estão no mesmo patamar de poder capital, imagina como se comportam em relação àqueles que sempre estiveram em outras camadas da pirâmide social? Isso explica a fúria obsessiva que certos segmentos do setor primário têm em relação a quaisquer propostas ou discussões quanto à política de reforma agrária no país. Não é só uma questão que orbita eventuais invasões e ocupações de propriedades, ou de depredação de patrimônio, por parte de movimentos sociais que defendem uma outra visão fundiária. A grande verdade é que eles têm uma convicção histórica consagrada, em relação a essas pessoas, que lhes impede sequer de admitir que elas possam disputar o mesmo espaço produtivo, porque isso significa colocá-las em um novo status quo social. Para eles, essa gente que sempre esteve à margem, invisibilizada, preterida, condicionada a servir e a produzir, segundo os interesses das elites, não pode ascender jamais.  

Portanto, enquanto o setor primário se deleita com números estratosféricos da sua produção, voltada prioritariamente à exportação, ele desconsidera os meios ignóbeis que se vale para alcançar a manutenção das regalias e dos privilégios de sua ínfima casta. Acontece que a contradição nacional choca! Não apenas porque uma minoria se enriquece à custa de uma maioria. Mas, porque é visível o apreço que se tem pelo TER em detrimento do SER, como se essa fosse uma prática normal.

Ora, um país de dimensões continentais, como é o Brasil, que exporta milhões de toneladas de grãos é o mesmo que se permite, em pleno século XXI, conviver com a fome e a miséria de uma gigantesca parcela de cidadãos. Que se permite conviver com o envenenamento humano, e de outras diferentes espécies, pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e agentes químicos na sua produção agrícola e pecuária, sob o pretexto de aumentar uma produção que está longe de ser acessível à população. Que se permite ainda conviver com a recorrência da prática de trabalho análogo à escravidão. ...

O país que exporta toneladas de minérios é o mesmo que se permite conviver com a iminência da ruptura de barragens, a destruição de pequenos municípios, a desapropriação sumária de habitantes locais, a dizimação de povos originários, a poluição de cursos hídricos e tantos outros impactos socioambientais gravíssimos. O que significa que, há 500 anos, o Brasil não viu outro quadro senão da sua exploração mais brutal e perversa, acontecendo bem diante do seu nariz e da sua permissividade alienante.

Por sorte, a mudança do cenário político-partidário brasileiro, na última eleição, sinaliza uma oportunidade para avanços nessas discussões, não só pela simpatia que o governo rende ao assunto; mas, pelas exigências do progresso contemporâneo quanto a um primeiro setor da economia pautado pelo aprimoramento do bem-estar humano baseado na equidade social simultaneamente à redução de riscos e escassez ambiental. 

Nesse sentido, é com base em dados técnicos, produzidos pelos mais importantes centros de pesquisa e ciência globais, que as discussões devem se dar. O que o mundo espera como nova ordem produtiva depende dessa disponibilidade civilizatória de dialogar e traçar um equilíbrio de forças dotado de justiça. Porque a realidade contemporânea não permite mais tratar apenas de interesses de propriedade e/ou econômicos; mas, de outras variáveis que afetam a estabilidade da produção no mundo. Guerras. Eventos extremos do clima. Escassez e contaminação hídrica e dos recursos naturais. Desmatamento. ...

Aliás, aproveito a oportunidade para dizer que considero lamentável a decisão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em promover invasões de propriedade, nesses últimos quatro meses, se apropriando da premissa de o atual governo brasileiro não lhes ser hostil. Lamento, mas esse tipo de estratégia não é capaz de substituir uma mesa de negociação plural e aberta à dialogia do consenso. Nessas alturas do campeonato, isso é pura falta de visão e de estupidez. Ninguém pressiona governo algum ocupando propriedades, hasteando bandeiras de beligerância, depredando patrimônio alheio!

Em tempos, como os atuais, o MST precisa reconhecer que as Tecnologias da Comunicação e da Informação (TICs) propiciam muito mais a construção difamatória e odiosa a seu respeito, com base nas imagens das ocupações, do que enaltecendo seus esforços para se tornar, há mais de dez anos, por exemplo, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.  Há um ditado que diz, “o apressado come cru”! O imediatismo do MST produziu um desserviço coletivo sem precedentes, a tal ponto que uma “CPI foi criada pela Câmara após invasão de terras pelo movimento” 1.

Sem dar tempo ao tempo, sem arrancar uma conquista sequer das suas pretensões, eles criaram tumulto para si e para um país que tenta se reerguer de tantos escombros de natureza política, econômica e social. Já dizia o historiador grego Heródoto, “A pressa gera o erro em todas as coisas”. Assim, ela afasta qualquer possibilidade de êxito, de sucesso, de vitória, porque não se permite a lucidez de análise e de reflexão sobre os prós e os contras, ou seja, sobre os traços que definem as expectativas de futuro.  

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Não há só um viés para a violência!


Não há só um viés para a violência!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais que muita gente não queira admitir ou perceber que entre o fluxo da vida e o recorte temporal há um registro de marcas e lembranças inesquecíveis, isso é um fato inconteste. Não é à toa que exista pelo mundo milhões de seres humanos convivendo com os impactos dos transtornos de estresse pós-traumático. Daí a necessidade de se abrir espaço para uma reflexão mais profunda e responsável nesse contexto.

Não é preciso tanta lucidez assim, para enxergar como a contemporaneidade tem exacerbado as violências e, apesar disso, ainda resistir uma tendência unilateral de se solidarizar e contemporizar os fatos com o agressor, anulando por completo a dor e o sofrimento físico, emocional e moral da vítima, como se ela não tivesse a menor importância. O que significa uma permissividade monstruosa em relação a reafirmação reverberante da desolação e da aflição por quem sofre uma violência.

Como se as vítimas pudessem sumariamente ser abandonadas e esquecidas a própria sorte, tendo que se reerguer solitariamente. Acontece que cada ser humano é um, tem um tempo de absorção, de assimilação, de reconstrução e ressignificação da vida, muito particular. E por mais que o indivíduo seja psicoemocionalmente forte e equilibrado, sempre haverá marcas, cicatrizes, lembranças que funcionam como verdadeiros gatilhos de emoção e sentimento. De modo que não há superação plena, total, que possa ser capaz de absolver a violência sofrida.

Por mais esforços que a sociedade empenhe no sentido de construir uma justiça atuante e reparadora dos desvios e desalinhamentos da ordem social, nem mesmo ela é capaz de aplacar e conter a reverberação dos sofrimentos. Porque o registro dos fatos nunca se apaga, ele permanece como uma tatuagem na história do indivíduo. De vez em quando dói. De vez em quando sangra. De vez em quando incomoda. Afinal, a vida não pode ser passada a limpo e nem ressarcida materialmente, a fim de sublimar as passagens difíceis, ruins, tristes, decepcionantes, violentas.

Mas, é importante ressaltar que da perspectiva do agressor a máxima se mantém a mesma. Não há subterfugio ou argumento que seja suficientemente capaz de apagar o ato cometido. Na consciência ou na inconsciência, todo indivíduo sabe bem o que faz e/ou deixa de fazer ao longo da vida. Por mais que possa vir a se arrepender, a construir um novo arcabouço de valores, de crenças e de princípios, nada disso muda o curso da história sob a ótica daquele recorte temporal. Ainda que se tente artimanhas narrativas ou discursivas para desqualificar ou contemporizar os erros, os tropeços, os equívocos, eles não se dissolvem.

Talvez, seja esse o ponto mais importante de reflexão a respeito. Qualquer um pode errar, em maior ou em menor escala, na vida; pois, o ser humano é falho, é uma obra incompleta. Entretanto, o modo como se lida com as circunstâncias do cotidiano, no momento em que acontecem, é que constitui exatamente a materialidade do caráter, dos valores, das crenças e dos princípios mais profundos do indivíduo.

É daí que ressalta o grau de respeito, de solidariedade, de responsabilidade, de empatia, de alteridade, para com seus pares. Não havendo, portanto, à espera de que a poeira abaixe, que os fatos caiam no esquecimento popular ou que, quem sabe, as conjunturas deem conta, por si mesmas, de uma melhor solução. O que não se resolve a contento, na hora certa, transforma-se em fantasma que assombra pela eternidade. Ao contrário do ponto final, a história adquire reticências que permitem todo tipo de especulações e conjecturas, as quais nem sempre se atêm ao compromisso de se fundamentar pela verdade dos fatos.

Amiúde tenho visto, daqui e dali, gente colocando na conta do politicamente correto um desagrado descomunal com as manifestações democraticamente questionadoras e reivindicadoras em torno de rupturas com certos paradigmas nocivos para a sociedade. Me pergunto, então, será que é mesmo ruim?  Por que devemos deixar essas máculas e nódoas sociais sob o tapete, proliferando ácaros cada vez mais beligerantes e destrutivos? Dizia George Bernard Shaw que “O progresso é impossível sem mudanças; e aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada”.

Acontece que mudar certos valores, crenças e princípios significa, necessariamente, trabalhar pela construção de soluções para as violências que tanto afligem a humanidade. Portanto, não se trata de permitir (ou não) uma mudança qualquer! Afinal, você quer que as violências sejam resolvidas ou não? Então? Simples assim.  

Ora, a violência não tem um único lado, de modo que para estabelecer a sua análise é preciso considerar a perspectiva do agressor e da vítima. É preciso considerar as narrativas, os discursos, de ambos os lados; mas, principalmente, a materialidade comprobatória dos fatos para não se permitir contaminar pelo calor das emoções e dos sentimentos dos envolvidos.

Há muito o mundo abandonou as arenas e suas espetacularizações dos sacrifícios humanos. A violência, seja ela qual for, é um ato de despojamento da dignidade humana pela expressão de uma suposta lei do mais forte. O que coloca a vítima em posição de franca desigualdade em relação ao seu agressor. Então, quando a sociedade se permite invisibilizá-la na sua voz, na sua vez, no seu direito, ela referenda a reafirmação da violência. E como nenhuma violência prescreve no campo da subjetividade, esse gesto amplifica a dor e o sofrimento da vítima, enquanto resgata no agressor, uma memória que, talvez, ele gostaria de manter ocultada.


terça-feira, 25 de abril de 2023

Nas voltas que o Pós-Colonialismo dá...


Nas voltas que o Pós-Colonialismo dá...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É claro que o avanço da ultradireita, no mundo, não acontece aos moldes do que se viu durante a Segunda Guerra. Primeiro, porque a população do planeta está muito maior, o que possibilita uma fragmentação político-partidária bem ampla e diferente. Segundo, porque a realidade das Tecnologias da Comunicação e Informação (TICs) estabeleceu uma nova ordem para a relação tempo/espaço, que favorece a aglutinação ideológica de maneira quase que imediata e ininterrupta. E por fim, a própria dinâmica geopolítica contemporânea, depois de muita água ter passado por baixo da ponte histórica, fazendo se estabelecer um universo de novos interesses e demandas, os quais obrigam a uma outra perspectiva de arranjos diplomáticos entre os países.

Partindo dessas considerações, então, é possível entender as razões que levam a uma preocupação em torno dos riscos e ameaças à democracia global. Pois as investidas para fragilizar e vulnerabilizar os alicerces democráticos pelo mundo, desde o fim da Segunda Guerra, têm sido cada vez mais intensas e impetuosas a despeito de quaisquer prejuízos ao desenvolvimento e ao progresso que possam emergir dessas ações. De modo que tem havido sim, uma compreensão de que, mesmo diante de profundas diferenças, é fundamental haver uma disposição coletiva para agregar esforços pela defesa democrática.

Daí termos visto tanto empenho internacional em celebrar a vitória do atual governo brasileiro, na última eleição presidencial. Afinal, o Brasil sempre foi um player estratégico importantíssimo na geopolítica, principalmente, graças a sua capacidade diplomática contrária ao isolacionismo sob diferentes aspectos. No entanto, o tempo passa, as pessoas mudam, os cenários se descontroem e reconstroem sob novas perspectivas, o que leva a uma construção de pensamentos e ideias alinhadas a imposição de novas conjunturas demandadas pelo mundo.

Por isso, ao me deparar com a notícia de que “Documento secreto indica preocupação da UE com o governo” 1 não pude deixar de trazer à tona as minhas reflexões. Eu começo pela estranheza quanto ao generalismo trazido pela referência à União Europeia (UE). Sim, porque isso parece homogeneizante demais, em se tratando de política partidária. O que levanta suspeita de que um eventual desconforto tende a ser manifesto, particularmente, por elementos da direita e seus matizes; sobretudo, os da própria ultradireita.

Ora, eles sim, têm milhares de razões para se incomodar com a postura e as recentes falas do Presidente da República brasileiro, quando o mesmo coloca o país em uma posição pós-colonial.  Isso significa trazer o Brasil para o campo diplomático sob uma posição de protagonista, bem diferente de um tempo em que lhe bastava participar como ouvinte, subserviente às decisões definidas pelas grandes potências mundiais. E isso gera tensão, porque pode vir a estimular outros países, com o mesmo histórico colonial que o Brasil, a repensar o seu papel dentro e fora de suas fronteiras. O que esbarra nos interesses já consagrados e consolidados das grandes economias globais, que têm no rol dos seus maiores investidores, gente ideologicamente simpatizante à Direita.  

Infelizmente, o poder aprisiona certos indivíduos a uma incapacidade de perceber e aceitar as transformações correntes do mundo. A expressão do protagonismo de países em desenvolvimento, ou emergentes, costuma desencadear o medo de eventuais abalos na dinâmica do equilíbrio econômico e da influência geopolítica pelos países desenvolvidos. O surgimento de zonas de acirramento competitivo comercial pode afetar o padrão de enriquecimento vigente no planeta e favorecer a consolidação de uma nova ordem decisória, para assuntos de suma importância na contemporaneidade. Aliás, isso de certa forma ajuda a explicar o saudosismo que invadiu o cenário político atual, especialmente, pelas mãos da ultradireita, que tenta desesperadamente resgatar velhas crenças, valores e convicções que transitam na mais completa contramão do mundo contemporâneo.

A grande verdade é que não há nada de errado com a postura brasileira, nesse momento. A reação, de uns e outros por aí, decorre justamente do fato de estarem tão acostumados a um padrão histórico de mundo, que não esperavam que a defesa da democracia brasileira pudesse vir acompanhada de um conjunto de posicionamentos impulsionados por uma afirmação pós-colonial. Por uma capacidade de leitura da realidade contemporânea que não aceitasse, simplesmente, a satisfação dos interesses e demandas das grandes economias; mas, que buscasse compatibilizá-las aos interesses e demandas dos países em desenvolvimento.

Aos que estão torcendo o nariz e ostentando a sua forma limitada de enxergar os acontecimentos, penso que deveriam sentir alegria por ver a poeira da história sendo sacudida, em momento tão oportuno. Como na velha fábula de Esopo 2, “O problema de um é problema de todos”. Portanto, o movimento em busca de mobilidade diplomática que o Brasil está realizando, apesar de ousado, é importantíssimo não só para fortalecer a democracia; mas, para alavancar novos caminhos para o desenvolvimento e o progresso global.

Assim, quando o Brasil se permite ter vez e voz nas tribunas do mundo, mostra que tem opinião, que sabe defender seus pontos de vista sem se deixar enredar pelas perspectivas alheias. É, ele faz um caminho sem volta para resgatar a sua dignidade e a sua importância no cenário internacional. Relembrando o que escreveu René Descartes, “Pessoas que hesitam constantemente não chegam a lugar nenhum, como se andassem em círculos. Uma decisão uma vez tomada deve ser assumida com firmeza tal como uma hipótese científica que deve ser verificada. Se ela for demonstrada falsa, pelo menos saberemos com certeza que esse caminho não deverá ser novamente trilhado. Ganho sempre haverá, no caso, o reconhecimento do erro”. Se nessa empreitada, então, o Brasil vai acertar mais do que errar, só o tempo dirá; mas, pelo menos, ele não se permitiu acomodar em uma zona de pseudoconforto alienante e constrangedora.  

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Quando a Saúde faz adoecer


Quando a Saúde faz adoecer

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Apesar de a Educação figurar com destaque no cenário de problemas e desafios nacionais, se engana quem pensa que ela está só nesse caminho.  A Saúde não fica muito atrás! Embora vestida de silêncios e pudores a respeito, cada vez mais se torna impossível não perceber como a deterioração da Saúde avança no Brasil.

A matéria intitulada “Competição com a rede privada e condições de trabalho afastam médicos residentes do SUS” 1, embora traga algumas considerações importantes para revolver a reflexão, não contempla, talvez, camadas mais profundas e delicadas desse assunto. Certos vieses negligenciam, de certo modo, a Medicina, deixando esquecidos, no âmbito do foro privado da profissão, aspectos fundamentais que afetam diretamente a Saúde.

Sustentada, historicamente, pela narrativa de possuir a formação profissional mais longa e de maior responsabilidade, por lidar com o tênue limite entre a vida e a morte, a Medicina cruza o tempo sob uma aura de glamour e de reverência social, que acaba lhe trazendo uma certa blindagem quanto a possíveis críticas e questionamentos. Algo que se estabeleceu, principalmente, pela força corporativista existente na profissão.

Isso cria não só um distanciamento, mas um constrangimento nos pacientes e familiares, que não lhes deixam ousar indagar ou deliberar sobre a conduta médica aplicada; principalmente, entre aqueles cidadãos menos privilegiados socialmente. De modo que a palavra do médico se torna lei, o que nutre no inconsciente do profissional, com o passar do tempo, uma vaidade quanto a uma assertividade absoluta. Lançando-os, inconscientemente, ao rol de semideuses.

Acontece que, contrariando o equivocado pensamento que circula no inconsciente coletivo, como quaisquer profissionais que se prezem, os médicos não escapam da certeza de que o conhecimento não finda com o recebimento do diploma. As Ciências atravessam o tempo construindo, desconstruindo e ressignificando saberes, ininterruptamente. Se quiserem, então, se destacar e se reafirmar em suas respectivas áreas, eles terão que se dedicar a um contínuo processo de formação, acompanhando os avanços científicos e tecnológicos.

No entanto, esse processo se transformou em faca de dois gumes. Se por um lado cria mecanismos importantes, visando uma melhor capacitação e qualificação profissional, por outro, ela contribuiu para o aprofundamento da inacessibilidade e da precificação da Saúde. Cada vez mais, o acesso aos avanços da Ciência e aos médicos que dominam a excelência desses novos conhecimentos está delimitado pela capacidade de pagamento desses custos pelo paciente. De modo que nichos de atendimento são criados de acordo com o perfil social da população.

Pena, que isso não é tudo! A verdade é que toda essa dinâmica omite uma estarrecedora precarização da Saúde. Infelizmente, esse “vale quanto pesa” não traduz exatamente a qualidade do atendimento, do serviço prestado. Dispondo-se ou não a uma formação continuada, o que se percebe amiúde é que a graduação está aquém da consolidação básica de conhecimentos, valores e princípios. Permitindo lançar no mercado profissionais extremamente vaidosos e arrogantes, mas de competências e habilidades bastante questionáveis.

Sob a velha máxima de que “tempo é dinheiro”, e não importa se vem das vias públicas ou privadas, a Medicina contemporânea vem homogeneizando os pacientes, transformando as práxis em verdadeiras receitas de bolo, como se pudessem caber nas demandas de todos, indiscutivelmente. O paciente é cada vez menos protagonista do seu próprio atendimento. Não é ouvido. Não é examinado adequadamente. Não é respeitado. Não é cuidado da maneira que espera e necessita. Nem mesmo, quando paga a peso de ouro, por isso.

Portanto, falta discutir a Medicina no Brasil. Suas realidades. Suas perspectivas. Que tipo de profissionais se têm permitido formar no país. Não, não basta uma análise superficial de quantos cursos de Medicina existem, ou onde se localizam, quais as áreas têm excesso ou carência de profissionais. É preciso mergulhar mais fundo nesse oceano! Se a Medicina pressupõe vasto conhecimento, ela também implica em ética, dignidade, compromisso e responsabilidade. Vida e morte, lembra???

É preciso saber onde os caminhos se desvirtuaram, onde a mercantilização e a precificação assumiram o controle da Saúde, para que nesse momento da história nos deparássemos com uma desumanização tão flagrante. Entender como a precarização na Saúde avança sobre aspectos humanos e materiais se misturando à burocracia, às omissões, às negligências, à ineficiência/ insuficiência logística, ao descaso das políticas públicas, a fim de propor medidas de recuperação e restauração das práticas humanitárias é fundamental.

Sim, porque estamos diante do mais absoluto estado de perda da qualidade enquanto se ampliam as vertentes da insegurança social, no campo da Saúde 2. Permitindo que ao invés de curar, a ação da Saúde venha impor riscos e agravos ao cidadão, seja no serviço público ou privado do país.

Desse modo, de nada adianta apostar nos milagres da Ciência e da Tecnologia se abdicamos de olhar o principal, o ser humano. Porque na hora de operar a transformação da dor e do sofrimento em saúde, quem está na dianteira do trabalho são pessoas, que precisam sim, de conhecimento, de competência, de habilidade; mas, especialmente, de ética e de humanidade.     

sábado, 22 de abril de 2023

Dia da Terra


Dia da Terra

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sim, o planeta Terra é uma pequena esfera que rodopia na imensidão azul do universo! Mas, isso não responde tudo. Para trazer uma consciência e uma relação mais intensa e direta com ele, ultrapassando as fronteiras da informação meramente geográfica, é preciso olhá-lo e percebê-lo como o espaço limitado de convivência e coexistência de 8 bilhões de seres humanos. Aí sim, a perspectiva vital ganha formas e contornos que nos permitem discuti-lo com a devida profundidade.

Ora, para falar das aventuras e desventuras do planeta é impossível dissociar a presença e a participação humana; sobretudo, no que diz respeito ao seu papel no processo de Antropização, que nada mais é do que o uso indevido do meio ambiente pelos indivíduos.

É com base nessa perspectiva que se torna possível colocar em seu devido lugar cada aspecto da realidade atual e desconstruir certos princípios, crenças e valores que teimam não só, em isentar a raça humana de suas responsabilidades; mas, de eventualmente culpabilizar a própria natureza por certos acontecimentos.

Portanto, todas as discussões na seara do desmatamento, das mudanças climáticas, da poluição, do uso e ocupação indevido do solo, da geração de resíduos, da superpopulação, da extinção de espécies e da modificação genética para diferentes fins, ... têm na humanidade o seu verdadeiro protagonista.

O planeta, no fundo, é só o grande cenário onde as intervenções e transformações socioambientais tem ocorrido ao longo do tempo. De modo que, muito pouco, ele pode fazer, autonomamente, no sentido de conter ou de impedir excessos e abusos.

Se o planeta está à deriva das circunstâncias, então, não é porque ele está solto no universo. É porque ele foi submetido a uma condição de se ajustar e caber aos interesses e necessidades humanas, os quais parecem não ter fim.

Com base nesse entendimento é que a Assembleia Geral das Nações Unidas determinou, em 21 de dezembro de 2009, a declaração que estabelece o Dia Internacional da Mãe Terra ou, simplesmente, Dia da Terra1. A criação da referida data, então, foi um marco importante para uma posterior reafirmação dessa discussão através dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015.

Sim, porque os ODS visam promover “um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade” 2. De modo que uma mudança dessa envergadura nas práxis humanas representa sim, uma possibilidade real de garantir a estabilidade do próprio planeta.

Aliás, é importante ressaltar que essas iniciativas não se basearam apenas nas repercussões e desdobramentos nefastos, ocorridos nos últimos séculos; mas, de todo um esforço coletivo da Ciência em torno de construir arcabouços de conhecimento suficientemente capazes de sustentar o planejamento de estratégias exequíveis e eficazes.

Afinal, essa não é uma discussão que permite abrir espaços para achismos e casuísmos. Dada a sua complexidade é imperioso tratá-la com responsabilidade, competência técnica e uma habilidade dialógica repleta de bom senso e equilíbrio. Mas, também, pelo fato da diversidade e da pluralidade socioambiental disseminada pelo planeta.

No entanto, isso não significa deixá-la a cargo dos experts no assunto, ou das autoridades competentes, ou das entidades e organismos governamentais e não-governamentais do setor. Como ela diz respeito ao ser humano é fundamental que ela envolva toda a sociedade, sem distinção de qualquer natureza; pois, não basta transformar o pensamento de apenas alguns.

É essencial que cada indivíduo exerça particularmente a sua análise e reflexão sobre a sua própria participação na dinâmica do planeta, ponderando direitos, deveres, responsabilidades e atitudes, no sentido de descobrir o grau da sua interferência nos ganhos e prejuízos socioambientais.

O Dia da Terra é, portanto, mais do que um dia de reflexão. É um dia de ruptura com as banalizações, as normalizações, as trivializações ideológico-comportamentais que têm como caráter básico aplacar a consciência humana e minimizar os impactos da sua interferência no planeta.

É um dia para se restabelecer uma nova ordem em relação ao tempo utilizado, o dinheiro gasto, os ideais de consumo, às escalas de prioridade cotidiana, às interações socioambientais, o nível de conhecimento, enfim. É um dia para exercer efetivamente a humanidade, em seu sentido mais amplo e profundo.

Talvez, a síntese desse dia esteja, então, na sugestão proposta pelas palavras de São Tomás de Aquino, ou seja, “Dê-me, Senhor, agudeza para entender, capacidade para reter, método e faculdade para aprender, sutileza para interpretar, graça e abundância para falar, acerto ao começar, direção ao progredir e perfeição ao concluir...”.

Porque das entrelinhas dessa reflexão emerge a verdade inconteste de que “Não se opor ao erro é aprová-lo, não defender a verdade é negá-la” (São Tomás de Aquino), ou seja, revela exatamente de que lado o indivíduo se posiciona na vida, em como ele vê, entende e sente o planeta que habita temporariamente.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Não é sobre eles. É sobre todos nós.


Não é sobre eles. É sobre todos nós.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Tenho pensado muito sobre o modo com o qual o brasileiro entende a sua civilidade, dada a facilidade com que ele superficializa questões importantíssimas, tornando-as banalizadas de tal maneira que deformam o inconsciente coletivo nacional. Há uma subserviência eurocêntrica tão pulsante em seu pensamento, que embaça a visão quanto ao mundo plural e diverso existente, aprofundando fronteiras e desigualdades que jamais deveriam ser toleradas.  

Em 1943, o Ex-Presidente da República Getúlio Vargas instituiu por decreto-lei o Dia do Índio, considerando que três anos antes, o Primeiro Congresso Indigenista, reunido no México, já havia proposto a adoção dessa data comemorativa. Passados pouco mais de 4 séculos, desde o início da colonização brasileira, uma data no calendário não diz muita coisa, considerando toda a brutalidade imposta aos povos originários, desde então.

Aí foram necessários mais 79 anos para retificar o tal decreto e renomear a data como Dia dos Povos Indígenas 1, retirando da ideia inicial o peso de uma homogeneização social generalista, considerando-se que a história nacional aponta para uma estimativa de aproximadamente 1000 etnias diferentes, em 1500. Porém, o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2, mostrou que, apesar da drástica redução numérica, o país ainda dispõe de 325 etnias e 274 línguas indígenas.

De modo que, mais uma vez, o assunto permaneceu em um nível de superficialização constrangedora. Não só porque o manteve preso a um papel meramente decorativo, simbólico; mas, pela reafirmação do descaso com a sua condição existencial enquanto coletivos grupais, cuja identidade se expressa pela especificidade na organização social, nos costumes, na língua, na crença e nas tradições. Serem denominados apenas como índios, durante tanto tempo, foi uma forma de desapropriá-los da sua identidade, da sua dignidade cidadã.

Mas, ao que tudo indica, nesses pouco mais de 500 anos, nunca houve realmente um ímpeto de reparação histórica em relação aos abusos e atrocidades cometidos contra os povos originários. Demonstrando, então, que passadas inúmeras gerações, não houve por parte da sociedade civil, e nem tampouco das autoridades competentes, qualquer sentimento de indignação que motivasse uma ruptura paradigmática com certos valores e princípios, a fim de se estabelecer uma nova ordem nas relações sociais no país.

Como o ideário permaneceu o mesmo, a escolha de uma data no calendário pareceu suficiente para aplacar-lhes a consciência. Traçando um paralelo com a realidade contemporânea, não é difícil entender que o germe da segregação, da indiferença, da invisibilização, surgiu na relação dos colonizadores com os povos originários. Foram eles, os primeiros, a serem colocados à margem do exercício cidadão nacional, a partir de uma arbitrária e repugnante objetificação humana. Sem contar o modo como suas vidas foram sumariamente consideradas desimportantes e, por isso, barbaramente dizimadas.

Entretanto, ao mesmo tempo em que esse processo é visivelmente flagrante, ele consegue passar despercebido, graças a força da alienação promovida pelos agentes contemporâneos incumbidos de atuar sobre o inconsciente coletivo. O que se faz bastante visível pela baixíssima representatividade dos povos originários na dinâmica do cotidiano nacional. Eles foram alçados a uma condição de minoria que não faz o menor sentido!

Veja que eles não estão presentes no campo sociocultural do ensino, ou seja, apresentados, falados, imersos nas discussões e proposições dos livros, das apostilas, da inter e transdisciplinaridade.  Como eles, também, não estão efetivamente presentes nos espaços de poder. Mas, a sociedade não reclama, não questiona, não se incomoda com essa ausência, porque foi doutrinada a aceitar o espetáculo do absurdo naturalizado. A considerar normal viver em um coletivo onde se permita existir cidadãos de primeira, de segunda ou de última classe. Sem vez, sem voz, sem direitos.

Acontece que os povos indígenas são só um exemplo, dentro de milhares de outros que se mostram altamente desafiadores para o cenário nacional. São tantos os ranços históricos que permanecem reverberando todos os dias, e teimam em atravessar o país pelas vias reais e virtuais, que acabam obstaculizando o ideário progressista e desenvolvimentista nacional, pois não permitem aceitar os ventos da mudança que sopram pelo mundo.

Assim, deixo uma reflexão final através das palavras de Ailton Krenak 3, “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos” (trecho do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”).  

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Até quando vamos nos permitir girar nessa espiral insana???


Até quando vamos nos permitir girar nessa espiral insana???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nada mais representativo para o mundo contemporâneo do que a herança da Segunda Guerra Mundial; sobretudo, em termos estatísticos da mortandade de pessoas, de todo o processo de reconstrução geopolítico e de responsabilização e de punição dos culpados. Afinal, imagina se o cenário de terra arrasada tivesse intimidado o avanço das nações, prendendo-as a uma espiral insana que gira repetindo e reverberando os infortúnios sem conseguir sair do lugar?

Mas, ao que parece, nem todos os países do mundo extraíram algum aprendizado disso. Haja vista o Brasil. Respeitadas as devidas proporções e o fato de o 8 de janeiro de 2023, na capital federal, ser um episódio de convulsão e beligerância social relativamente recente, aparenta-se clara a existência de uma corrente social que defende a ideia do país se prender a essa espiral insana 1, girando a repetição e a reverberação dos infortúnios, para resguardar sua inação.

Observe, como os pequenos avanços já alcançados pela atual gestão, ao longo desse limitado recorte de tempo, são obrigados a disputar espaço com constates reinterpretações do fatídico acontecimento, por grupos que tentam construir novas perspectivas à luz de seus interesses e inconformismos. Apesar de todo o ímpeto convicto que colocou em curso o processo de reconstrução nacional e de responsabilização e punição dos culpados, desde a flagrância dos acontecimentos, eles insistem em chafurdar na lama. O que soa como um disco arranhado, cansando ouvidos e mentes.

De modo que tamanha insistência acaba descortinando a verdadeira intenção desse modus operandi defendido pela direita brasileira e seus matizes simpatizantes. Não foi a perda eleitoral, em si, que lhes tomou de raiva e de fúria ao ponto de ostentar toda a sua incivilidade criminosa pelos espaços de poder da capital federal. Foi perder para aqueles que julgam inferiores, incapazes, desimportantes, e que historicamente foram colocados à margem de qualquer possibilidade de ascensão e poder. Portanto, gente que, na concepção deles, não poderia em hipótese alguma lograr êxito na governança do país.  

Daí as inúmeras tentativas em ofuscar e apagar o curso dos acontecimentos cotidianos, que possam trazer eventualmente alguma boa nova, por mínima que seja. Isso seria admitir que eles não são inferiores, ou incapazes, ou desimportantes. Muito pelo contrário! Apenas dispõem de uma outra visão de mundo, de cidadania, de governança, de futuro, de progresso e de desenvolvimento. Não são nem mais e nem menos, são apenas diferentes na expressão de seus talentos, habilidades e/ou competências.

Entretanto, isso desconstrói a ideologia do medo e do ódio que a direita com seus matizes simpatizantes, especialmente, a ultradireita, tenta reafirmar constantemente contra o atual governo. Algo tão raso, tão provinciano, que não traduz nada! Eles não conseguem apontar fragilidades e vulnerabilidades efetivamente consistentes e convincentes, tendo em vista que seus argumentos infactíveis são incapazes de promover uma marca de distinção e especificidade para os seus oponentes. De modo que seus discursos e narrativas, inflamadas por aversão e irracionalidade, tornam-se espelhos para eles mesmos.

Talvez, isso explique a extensão do cansaço social que se abateu sobre o país. Levada por uma tempestade de delírios e absurdos narcísicos, a direita e seus matizes simpatizantes, mais ou menos radicais, parece ter se esquecido de que o Brasil ainda está preso ao globo terrestre e não pode, simplesmente, se dar ao luxo de olhar apenas para si mesmo. A realidade contemporânea coloca-se cada vez mais hostil e desafiadora, enfatizando, de algum modo, o velho dilema do porco-espinho 2, ou seja, a sobrevivência individual dependerá da habilidade e da competência para manter o equilíbrio da convivência coletiva.

O planeta não para de girar e de impor conjunturas, bastante complexas, que afetam diretamente a sobrevivência e o desenvolvimento brasileiro. É preciso entender, então, o que é ou não prioridade para poder elencá-la e mover suas engrenagens. A síntese dessa compreensão me parece as palavras de Steve Jobs, em seu discurso na Universidade de Stanford, em 2005, ou seja, “Seu tempo é limitado, então, não percam tempo vivendo a vida de outro. Não sejam aprisionados pelo dogma – que é viver com os resultados do pensamento de outras pessoas. Não deixe o barulho da opinião dos outros abafar sua voz interior. E mais importante, tenha coragem de seguir seu coração e sua intuição. Eles de alguma forma já sabem o que você realmente quer se tornar. Tudo o mais é secundário”.


2 Metáfora criada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) para ilustrar o problema da convivência humana. 

terça-feira, 18 de abril de 2023

LIBERDADE...


LIBERDADE...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sei você; mas, quando penso na palavra liberdade, me vem à mente a imagem de uma pluma voando solta pelo vento à revelia das horas. Mas, quanto mais observo e penso sobre o mundo contemporâneo mais percebo que essa perspectiva foge da realidade. Embora clamada e propagada aos quatro cantos, a liberdade que se vive, em pleno século XXI, foi definitivamente castrada na sua essência.

Pois é, milhões de pessoas nem se dão conta do que fez o mundo cibernético para a sua liberdade.  Na contramão da promessa de oferecer mais tempo livre para o ser humano desfrutar da sua vida, sob os mais diferentes contextos, a 4ª Revolução Industrial foi pensada e planejada para que as horas se tornassem a mercadoria mais importante da contemporaneidade.

Portanto, todas as conquistas tecnocientíficas culminaram no aprisionamento das atividades cotidianas em um mundo cujo recorte temporal das 24 horas, que nos habituamos a conviver, não existe. Nele tudo acontece ilimitadamente, fazendo com que as pessoas sejam sobrecarregadas por milhões de informações, diversas formas de entretenimento, conversas intermináveis, enfim.

No entanto, saiba que isso é só a ponta de um imenso iceberg.  No fundo de todo esse frenesi high tech, que trata do como e do quanto a liberdade está sendo perdida pela infinitude do tempo demandado pelas tecnologias, é possível perceber que há algo muito mais grave acontecendo, ou seja, uma homogeneização social.

Na medida em que as tecnologias subtraem o tempo das pessoas, elas acontecem instituindo padrões ideológicos e comportamentais homogeneizantes, que afetam diretamente na individualidade identitária. Como cópias de um carimbo? Sim.

De modo que a sua liberdade de ser e estar no mundo, vem sendo arruinada em um ritmo extremamente veloz. O que significa que as prioridades existenciais dos indivíduos foram se perdendo na escala dessa nova ordem sociocultural instituída.

Cada vez menos tempo para ler, para aprender, para conhecer, para desenvolver o ócio criativo, para tecer as relações afetivas, ... Cada vez menos tempo para o simples e trivial da vida humana, como ela foi concebida antes de se cogitar a chegada do mundo virtual.

Todo esse movimento avassalador está, então, construindo gerações cuja identidade intelectual está se tornando mais rasa, mais superficial. Paira no ar uma exaustão coletiva. Afinal, a busca pela liberdade somada a dominação exercida pelas tecnologias é algo extremamente cansativo.

E isso acaba minando os interesses individuais e, sutilmente, induzindo as pessoas a seguirem o fluxo de uma corrente. Lembra da música: “Pense, fale, compre, beba / Leia, vote, não se esqueça / Use, seja, ouça, diga / Tenha, more, gaste e viva[...]” 1?  

Enquanto as redes sociais disputam de maneira feroz o tempo e os interesses de uma sociedade, cuja liberdade já foi devidamente manipulada e controlada por aqueles que detêm o poder nas mãos, o cansaço social coletivo leva à proliferação do efeito manada.

Quaisquer exigências no campo cognitivo e intelectual contemporâneo apontam para o imediato desinteresse das pessoas. Daí o sucesso de uma escrita concisa a partir de um limite preestabelecido de caracteres, ou a divulgação de vídeos curtos sobre determinados assuntos, ou noticiários que recortam as matérias mais comentadas do dia, ... e até mesmo, as Fake News.

E ainda querem se afirmar livres?! Bem, nesse ritmo de alienação, os libertários contemporâneos vão se rendendo às mais diversas correntes aprisionantes do poder. A ausência ou carência de profundidade dialógica e argumentativa os tornam presas fáceis para se tornarem multiplicadores de ideias, eventualmente nocivas e perigosas, aqui e acolá.

Quando lembro de um tempo em que o debate girava em torno dos riscos de uma educação a partir de apostilas e resumos, chego a achar engraçado; pois, evoluímos para algo muito pior.  Acontece que essa deterioração identitária contemporânea reflete na baixíssima qualidade dos seres humanos, nos mais diferentes aspectos da sua vida social; sobretudo, naquelas situações em que as violências imperam.

O que vimos recentemente em episódios de barbárie dentro de escolas é prova cabal disso. A realidade recortada em pedaços e traduzida como gotas de verdade pelas redes sociais não encontra resistência de nenhuma natureza; portanto, não sofre qualquer escrutínio da população e nem das autoridades competentes.

Dizia a estilista francesa Coco Chanel que “O mais corajoso dos atos ainda é pensar com a própria cabeça”, e ela estava coberta de razão; pois, essa é a única forma de defender e de se apropriar da liberdade.

Não basta dizer que somos livres! Seria preciso que a nossa liberdade, então, nos fizesse cada dia menos adoecidos, frustrados, isolados, humilhados, cancelados, empobrecidos, violentos, ... Mas, diante de tanto cerceamento social desaprendemos a pensar, a sonhar, a amar, a ser, segundo nossas próprias crenças, valores e convicções.

E quanto mais se conduz a vida por essa trivialização, mais a liberdade, em seu sentido literal, morre. Assim como, a nossa identidade, o nosso conhecimento e o nosso tempo. Como escreveu Mia Couto, “Quem confunde céu e água acaba por não distinguir vida e morte” 2.

Daí a necessidade de ver, com toda atenção, com os olhos e a mente bem abertos, a quantidade de pontes que temos propiciado construir para o trânsito corrente do que há de pior na humanidade. Guerras. Fome. Miséria. Racismo. Xenofobia. Misoginia. ...

Talvez, por tudo isso, não falte razões para nos perguntarmos sempre: “De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei? ” (Mia Couto)3. Porque diante dessa liberdade distorcida, equivocada, deturpada, que está por aí, o ser humano pode, cada vez menos, se dar ao luxo de dizer “[...]Eu sou dono e senhor do meu destino; / Eu sou o comandante de minha alma” (Invictus – William E. Henley) 4.



1 Admirável chip novo (Pitty) - https://www.youtube.com/watch?v=x_I74oWzjIU

2 COUTO, M. A varanda do Frangipani. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. 152p.

3 COUTO, M. O fio das missangas. São Paulo: Cia. das Letras, 2016. 152p.