Não
há só um viés para a violência!
Por
Alessandra Leles Rocha
Por mais que muita gente não
queira admitir ou perceber que entre o fluxo da vida e o recorte temporal há um
registro de marcas e lembranças inesquecíveis, isso é um fato inconteste. Não é
à toa que exista pelo mundo milhões de seres humanos convivendo com os impactos
dos transtornos de estresse pós-traumático. Daí a necessidade de se abrir
espaço para uma reflexão mais profunda e responsável nesse contexto.
Não é preciso tanta lucidez
assim, para enxergar como a contemporaneidade tem exacerbado as violências e,
apesar disso, ainda resistir uma tendência unilateral de se solidarizar e
contemporizar os fatos com o agressor, anulando por completo a dor e o sofrimento
físico, emocional e moral da vítima, como se ela não tivesse a menor importância.
O que significa uma permissividade monstruosa em relação a reafirmação
reverberante da desolação e da aflição por quem sofre uma violência.
Como se as vítimas pudessem
sumariamente ser abandonadas e esquecidas a própria sorte, tendo que se
reerguer solitariamente. Acontece que cada ser humano é um, tem um tempo de
absorção, de assimilação, de reconstrução e ressignificação da vida, muito
particular. E por mais que o indivíduo seja psicoemocionalmente forte e
equilibrado, sempre haverá marcas, cicatrizes, lembranças que funcionam como
verdadeiros gatilhos de emoção e sentimento. De modo que não há superação
plena, total, que possa ser capaz de absolver a violência sofrida.
Por mais esforços que a sociedade
empenhe no sentido de construir uma justiça atuante e reparadora dos desvios e
desalinhamentos da ordem social, nem mesmo ela é capaz de aplacar e conter a
reverberação dos sofrimentos. Porque o registro dos fatos nunca se apaga, ele permanece
como uma tatuagem na história do indivíduo. De vez em quando dói. De vez em
quando sangra. De vez em quando incomoda. Afinal, a vida não pode ser passada a
limpo e nem ressarcida materialmente, a fim de sublimar as passagens difíceis,
ruins, tristes, decepcionantes, violentas.
Mas, é importante ressaltar que
da perspectiva do agressor a máxima se mantém a mesma. Não há subterfugio ou
argumento que seja suficientemente capaz de apagar o ato cometido. Na consciência
ou na inconsciência, todo indivíduo sabe bem o que faz e/ou deixa de fazer ao
longo da vida. Por mais que possa vir a se arrepender, a construir um novo
arcabouço de valores, de crenças e de princípios, nada disso muda o curso da
história sob a ótica daquele recorte temporal. Ainda que se tente artimanhas
narrativas ou discursivas para desqualificar ou contemporizar os erros, os
tropeços, os equívocos, eles não se dissolvem.
Talvez, seja esse o ponto mais
importante de reflexão a respeito. Qualquer um pode errar, em maior ou em menor
escala, na vida; pois, o ser humano é falho, é uma obra incompleta. Entretanto,
o modo como se lida com as circunstâncias do cotidiano, no momento em que
acontecem, é que constitui exatamente a materialidade do caráter, dos valores,
das crenças e dos princípios mais profundos do indivíduo.
É daí que ressalta o grau de
respeito, de solidariedade, de responsabilidade, de empatia, de alteridade,
para com seus pares. Não havendo, portanto, à espera de que a poeira abaixe,
que os fatos caiam no esquecimento popular ou que, quem sabe, as conjunturas
deem conta, por si mesmas, de uma melhor solução. O que não se resolve a
contento, na hora certa, transforma-se em fantasma que assombra pela
eternidade. Ao contrário do ponto final, a história adquire reticências que
permitem todo tipo de especulações e conjecturas, as quais nem sempre se atêm ao
compromisso de se fundamentar pela verdade dos fatos.
Amiúde tenho visto, daqui e dali,
gente colocando na conta do politicamente correto um desagrado descomunal com
as manifestações democraticamente questionadoras e reivindicadoras em torno de
rupturas com certos paradigmas nocivos para a sociedade. Me pergunto, então,
será que é mesmo ruim? Por que devemos
deixar essas máculas e nódoas sociais sob o tapete, proliferando ácaros cada
vez mais beligerantes e destrutivos? Dizia George Bernard Shaw que “O progresso é impossível sem mudanças; e
aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada”.
Acontece que mudar certos
valores, crenças e princípios significa, necessariamente, trabalhar pela
construção de soluções para as violências que tanto afligem a humanidade. Portanto,
não se trata de permitir (ou não) uma mudança qualquer! Afinal, você quer que
as violências sejam resolvidas ou não? Então? Simples assim.
Ora, a violência não tem um único
lado, de modo que para estabelecer a sua análise é preciso considerar a
perspectiva do agressor e da vítima. É preciso considerar as narrativas, os
discursos, de ambos os lados; mas, principalmente, a materialidade comprobatória
dos fatos para não se permitir contaminar pelo calor das emoções e dos
sentimentos dos envolvidos.
Há muito o mundo abandonou as
arenas e suas espetacularizações dos sacrifícios humanos. A violência, seja ela
qual for, é um ato de despojamento da dignidade humana pela expressão de uma
suposta lei do mais forte. O que coloca a vítima em posição de franca desigualdade
em relação ao seu agressor. Então, quando a sociedade se permite invisibilizá-la
na sua voz, na sua vez, no seu direito, ela referenda a reafirmação da violência.
E como nenhuma violência prescreve no campo da subjetividade, esse gesto
amplifica a dor e o sofrimento da vítima, enquanto resgata no agressor, uma memória
que, talvez, ele gostaria de manter ocultada.