sexta-feira, 28 de abril de 2023

Não há só um viés para a violência!


Não há só um viés para a violência!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais que muita gente não queira admitir ou perceber que entre o fluxo da vida e o recorte temporal há um registro de marcas e lembranças inesquecíveis, isso é um fato inconteste. Não é à toa que exista pelo mundo milhões de seres humanos convivendo com os impactos dos transtornos de estresse pós-traumático. Daí a necessidade de se abrir espaço para uma reflexão mais profunda e responsável nesse contexto.

Não é preciso tanta lucidez assim, para enxergar como a contemporaneidade tem exacerbado as violências e, apesar disso, ainda resistir uma tendência unilateral de se solidarizar e contemporizar os fatos com o agressor, anulando por completo a dor e o sofrimento físico, emocional e moral da vítima, como se ela não tivesse a menor importância. O que significa uma permissividade monstruosa em relação a reafirmação reverberante da desolação e da aflição por quem sofre uma violência.

Como se as vítimas pudessem sumariamente ser abandonadas e esquecidas a própria sorte, tendo que se reerguer solitariamente. Acontece que cada ser humano é um, tem um tempo de absorção, de assimilação, de reconstrução e ressignificação da vida, muito particular. E por mais que o indivíduo seja psicoemocionalmente forte e equilibrado, sempre haverá marcas, cicatrizes, lembranças que funcionam como verdadeiros gatilhos de emoção e sentimento. De modo que não há superação plena, total, que possa ser capaz de absolver a violência sofrida.

Por mais esforços que a sociedade empenhe no sentido de construir uma justiça atuante e reparadora dos desvios e desalinhamentos da ordem social, nem mesmo ela é capaz de aplacar e conter a reverberação dos sofrimentos. Porque o registro dos fatos nunca se apaga, ele permanece como uma tatuagem na história do indivíduo. De vez em quando dói. De vez em quando sangra. De vez em quando incomoda. Afinal, a vida não pode ser passada a limpo e nem ressarcida materialmente, a fim de sublimar as passagens difíceis, ruins, tristes, decepcionantes, violentas.

Mas, é importante ressaltar que da perspectiva do agressor a máxima se mantém a mesma. Não há subterfugio ou argumento que seja suficientemente capaz de apagar o ato cometido. Na consciência ou na inconsciência, todo indivíduo sabe bem o que faz e/ou deixa de fazer ao longo da vida. Por mais que possa vir a se arrepender, a construir um novo arcabouço de valores, de crenças e de princípios, nada disso muda o curso da história sob a ótica daquele recorte temporal. Ainda que se tente artimanhas narrativas ou discursivas para desqualificar ou contemporizar os erros, os tropeços, os equívocos, eles não se dissolvem.

Talvez, seja esse o ponto mais importante de reflexão a respeito. Qualquer um pode errar, em maior ou em menor escala, na vida; pois, o ser humano é falho, é uma obra incompleta. Entretanto, o modo como se lida com as circunstâncias do cotidiano, no momento em que acontecem, é que constitui exatamente a materialidade do caráter, dos valores, das crenças e dos princípios mais profundos do indivíduo.

É daí que ressalta o grau de respeito, de solidariedade, de responsabilidade, de empatia, de alteridade, para com seus pares. Não havendo, portanto, à espera de que a poeira abaixe, que os fatos caiam no esquecimento popular ou que, quem sabe, as conjunturas deem conta, por si mesmas, de uma melhor solução. O que não se resolve a contento, na hora certa, transforma-se em fantasma que assombra pela eternidade. Ao contrário do ponto final, a história adquire reticências que permitem todo tipo de especulações e conjecturas, as quais nem sempre se atêm ao compromisso de se fundamentar pela verdade dos fatos.

Amiúde tenho visto, daqui e dali, gente colocando na conta do politicamente correto um desagrado descomunal com as manifestações democraticamente questionadoras e reivindicadoras em torno de rupturas com certos paradigmas nocivos para a sociedade. Me pergunto, então, será que é mesmo ruim?  Por que devemos deixar essas máculas e nódoas sociais sob o tapete, proliferando ácaros cada vez mais beligerantes e destrutivos? Dizia George Bernard Shaw que “O progresso é impossível sem mudanças; e aqueles que não conseguem mudar as suas mentes não conseguem mudar nada”.

Acontece que mudar certos valores, crenças e princípios significa, necessariamente, trabalhar pela construção de soluções para as violências que tanto afligem a humanidade. Portanto, não se trata de permitir (ou não) uma mudança qualquer! Afinal, você quer que as violências sejam resolvidas ou não? Então? Simples assim.  

Ora, a violência não tem um único lado, de modo que para estabelecer a sua análise é preciso considerar a perspectiva do agressor e da vítima. É preciso considerar as narrativas, os discursos, de ambos os lados; mas, principalmente, a materialidade comprobatória dos fatos para não se permitir contaminar pelo calor das emoções e dos sentimentos dos envolvidos.

Há muito o mundo abandonou as arenas e suas espetacularizações dos sacrifícios humanos. A violência, seja ela qual for, é um ato de despojamento da dignidade humana pela expressão de uma suposta lei do mais forte. O que coloca a vítima em posição de franca desigualdade em relação ao seu agressor. Então, quando a sociedade se permite invisibilizá-la na sua voz, na sua vez, no seu direito, ela referenda a reafirmação da violência. E como nenhuma violência prescreve no campo da subjetividade, esse gesto amplifica a dor e o sofrimento da vítima, enquanto resgata no agressor, uma memória que, talvez, ele gostaria de manter ocultada.