sábado, 29 de abril de 2023

É preciso corrigir a rota!


É preciso corrigir a rota!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Veja bem, não é porque uma história começa a partir de certas linhas que essas, obrigatoriamente, precisam determinar o seu curso. No entanto, o Brasil ao querer se prender, com unhas e dentes, às suas origens coloniais deixou escapar entre os dedos milhões de oportunidades de desbravar outros caminhos. E como de costume, ao invés de refletir a respeito desse comportamento, no mínimo, equivocado, busca na discursividade de suas narrativas elementos que possam, de alguma forma, justificar a sua resistente posição retrógrada.

Não lhe parece estranho que, em plena efervescência contemporânea, quando tudo muda em um piscar de olhos, o Brasil reafirme para si e para o mundo a sua total devoção ao setor primário da economia, especialmente, ao agronegócio? Tudo começou daí. Com um avassalador extrativismo das madeiras de lei que constituíam a cobertura vegetal do território, com destaque para o Pau-Brasil.

Em seguida, vieram as plantations de cana-de-açúcar, predominantes no Nordeste. Depois, o Ciclo do Ouro nas Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. O Ciclo do Algodão para atender as demandas da produção têxtil, que marcava a Revolução Industrial, na Inglaterra. O Ciclo do Café, também, com suas enormes plantations, no Oeste Paulista e Vale do Paraíba, visando a exportação. O Ciclo da Borracha, na região Amazônica, para atender as demandas das três primeiras Revoluções Industriais. Isso sem contar, com a marcha de expansão do interior brasileiro, que impulsionou os diferentes tipos de criação animal para abate e consumo.

A subserviência a essa dinâmica, durante a colonização, é compreensível. O Brasil não tinha vez e voz para se posicionar de outra maneira. Mas, por que não rompeu essa estrutura depois da sua independência? Embora pertinente a pergunta, a resposta é frustrante. Infelizmente, a estrutura socioeconômica dominante já estava consolidada e não permitiu. Bem estabelecido, o setor primário nacional não viu razões para desestabilizar a sua influência e poder, a fim de se ajustar a corrente de transformações que se operava no mundo. Simplesmente, não quiseram trocar o certo pelo duvidoso e se colocar no mercado competitivo das grandes economias globais.

Ainda que o tempo tenha lhes obrigado a investir em novas tecnologias e conhecimentos científicos, a essência das suas práxis permaneceu a mesma, porque as condições geográficas do país, por si só, já lhes favorecem a manutenção de números expressivos no âmbito do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. E escorando-se nessa imagem bem-sucedida e poderosa, eles omitem do inconsciente coletivo as verdades indigestas que permeiam as suas respectivas atividades.

Começando pelo fato de que eles não estão, nem nunca estiveram, verdadeiramente comprometidos com a totalidade do desenvolvimento e do progresso socioeconômico brasileiro. Haja vista como eles são vorazes, quando o assunto é uma possível competição com o setor secundário, por exemplo. Além da disputa direta com a industrialização pela influência e poder decisório do país, há de se considerar, também, o fato de que a indústria tende a criar perspectivas sociais melhores para a população. O que significa mais geração de empregos formais, salários mais atrativos, melhor qualificação profissional. O que desconstruiria o paradigma histórico, o qual sempre esteve limitado a uma perspectiva de cenário socioeconômico imposto pelo setor primário, possibilitando assim, o desencadeamento de conflitos e tensões.  

Mas, se eles se opõem àqueles que, pelo menos em tese, estão no mesmo patamar de poder capital, imagina como se comportam em relação àqueles que sempre estiveram em outras camadas da pirâmide social? Isso explica a fúria obsessiva que certos segmentos do setor primário têm em relação a quaisquer propostas ou discussões quanto à política de reforma agrária no país. Não é só uma questão que orbita eventuais invasões e ocupações de propriedades, ou de depredação de patrimônio, por parte de movimentos sociais que defendem uma outra visão fundiária. A grande verdade é que eles têm uma convicção histórica consagrada, em relação a essas pessoas, que lhes impede sequer de admitir que elas possam disputar o mesmo espaço produtivo, porque isso significa colocá-las em um novo status quo social. Para eles, essa gente que sempre esteve à margem, invisibilizada, preterida, condicionada a servir e a produzir, segundo os interesses das elites, não pode ascender jamais.  

Portanto, enquanto o setor primário se deleita com números estratosféricos da sua produção, voltada prioritariamente à exportação, ele desconsidera os meios ignóbeis que se vale para alcançar a manutenção das regalias e dos privilégios de sua ínfima casta. Acontece que a contradição nacional choca! Não apenas porque uma minoria se enriquece à custa de uma maioria. Mas, porque é visível o apreço que se tem pelo TER em detrimento do SER, como se essa fosse uma prática normal.

Ora, um país de dimensões continentais, como é o Brasil, que exporta milhões de toneladas de grãos é o mesmo que se permite, em pleno século XXI, conviver com a fome e a miséria de uma gigantesca parcela de cidadãos. Que se permite conviver com o envenenamento humano, e de outras diferentes espécies, pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e agentes químicos na sua produção agrícola e pecuária, sob o pretexto de aumentar uma produção que está longe de ser acessível à população. Que se permite ainda conviver com a recorrência da prática de trabalho análogo à escravidão. ...

O país que exporta toneladas de minérios é o mesmo que se permite conviver com a iminência da ruptura de barragens, a destruição de pequenos municípios, a desapropriação sumária de habitantes locais, a dizimação de povos originários, a poluição de cursos hídricos e tantos outros impactos socioambientais gravíssimos. O que significa que, há 500 anos, o Brasil não viu outro quadro senão da sua exploração mais brutal e perversa, acontecendo bem diante do seu nariz e da sua permissividade alienante.

Por sorte, a mudança do cenário político-partidário brasileiro, na última eleição, sinaliza uma oportunidade para avanços nessas discussões, não só pela simpatia que o governo rende ao assunto; mas, pelas exigências do progresso contemporâneo quanto a um primeiro setor da economia pautado pelo aprimoramento do bem-estar humano baseado na equidade social simultaneamente à redução de riscos e escassez ambiental. 

Nesse sentido, é com base em dados técnicos, produzidos pelos mais importantes centros de pesquisa e ciência globais, que as discussões devem se dar. O que o mundo espera como nova ordem produtiva depende dessa disponibilidade civilizatória de dialogar e traçar um equilíbrio de forças dotado de justiça. Porque a realidade contemporânea não permite mais tratar apenas de interesses de propriedade e/ou econômicos; mas, de outras variáveis que afetam a estabilidade da produção no mundo. Guerras. Eventos extremos do clima. Escassez e contaminação hídrica e dos recursos naturais. Desmatamento. ...

Aliás, aproveito a oportunidade para dizer que considero lamentável a decisão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em promover invasões de propriedade, nesses últimos quatro meses, se apropriando da premissa de o atual governo brasileiro não lhes ser hostil. Lamento, mas esse tipo de estratégia não é capaz de substituir uma mesa de negociação plural e aberta à dialogia do consenso. Nessas alturas do campeonato, isso é pura falta de visão e de estupidez. Ninguém pressiona governo algum ocupando propriedades, hasteando bandeiras de beligerância, depredando patrimônio alheio!

Em tempos, como os atuais, o MST precisa reconhecer que as Tecnologias da Comunicação e da Informação (TICs) propiciam muito mais a construção difamatória e odiosa a seu respeito, com base nas imagens das ocupações, do que enaltecendo seus esforços para se tornar, há mais de dez anos, por exemplo, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.  Há um ditado que diz, “o apressado come cru”! O imediatismo do MST produziu um desserviço coletivo sem precedentes, a tal ponto que uma “CPI foi criada pela Câmara após invasão de terras pelo movimento” 1.

Sem dar tempo ao tempo, sem arrancar uma conquista sequer das suas pretensões, eles criaram tumulto para si e para um país que tenta se reerguer de tantos escombros de natureza política, econômica e social. Já dizia o historiador grego Heródoto, “A pressa gera o erro em todas as coisas”. Assim, ela afasta qualquer possibilidade de êxito, de sucesso, de vitória, porque não se permite a lucidez de análise e de reflexão sobre os prós e os contras, ou seja, sobre os traços que definem as expectativas de futuro.