domingo, 30 de abril de 2023

A ética. A glória. O constrangimento.


A ética. A glória. O constrangimento.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Bons tempos eram aqueles em que o cidadão podia exercer sua simpatia ou paixão exacerbada por um time, sob o manto pacífico da compreensão imutável de que ganhar ou perder fazia parte do jogo.  Infelizmente, a contemporaneidade permitiu que certas variáveis do cotidiano contaminassem o cenário desportivo e nos trouxessem reflexões bem mais profundas e indigestas sobre o que acontece nos meandros da história.

Já faz tempo que o Brasil presencia, assim como outros países, episódios de barbárie entre torcidas organizadas. E embora muito se discuta a esse respeito, a partir de opiniões de especialistas, desportistas, clubes e cidadãos comuns, a situação persiste. Aliás, uma das explicações disso está no fato de que a realidade de violência propagada, principalmente, pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), com sua gama de redes sociais, torna tudo muito rápido e incontrolável.

Muito bem, esse é um ponto. Entretanto, me parece comodista essa visão de lançar sobre os ombros das TICs a grande parcela de responsabilidade, quando por trás delas estão milhões de seres humanos que são, na verdade, os verdadeiros reservatórios dessa violência. Em maior ou em menor escala, a essência humana é dotada de agressividade. Foi o tempo que, com seu processo civilizatório e domesticador, impôs freios aos arroubos da sua selvageria genuína. O que não significa, como já percebemos, ter obtido êxito pleno a esse respeito.

De modo que me parece fundamental sair de cima do muro e começar a discutir o ser humano no cenário da violência no esporte, principalmente, no que diz respeito aos atletas e seus admiradores. É curioso que haja um olhar de lince sobre os desportistas, especialmente os de alta performance, lançado pelas Associações, Federações e Confederações, em relação aos métodos e práticas de doping, por se tratar de um desvio ético que desequilibra a igualdade de forças e potencialidades entre os indivíduos e/ou equipes.  

Porém, não se engane que seja só por isso! Há milhares de questões socioeconômicas em jogo. O esporte é uma vitrine de oportunidades e possibilidades sociais. Atletas são cada vez mais elevados a condição de formadores de opinião, de influenciadores digitais, de exemplos a serem fielmente seguidos. Daí a questão do doping se tornar uma questão importante e delicada, na medida em que atravessa a imagem, a credibilidade, a influência desses indivíduos sobre a sua imensa legião de seguidores que passa a ser construída mediante a sua visibilidade desportiva.

Isso envolve, então, marcas, patrocinadores, equipes e seleções, que podem, de repente, ser envolvidas em situações negativas. O que surpreende é que no fato de falas, gestos ou comportamentos inapropriados e incompatíveis com suas respectivas filosofias, a questão da ética acaba sendo contemporizada ou tratada com muito menos rigor. Ora, ética é ética! Não dá para relativizar ao sabor dos ventos!

Daí ser tão necessária a formação de uma consciência nos atletas quanto ao seu papel social, cidadão, diante de determinados assuntos recorrentes no país e no mundo, como é o caso da violência. Algo que não fica restrito a uma postura consciente em entrevistas, por exemplo. É preciso que essa compreensão seja incorporada enquanto crença, valor ou princípio, à própria dinâmica cotidiana do atleta. Ajustar o discurso à prática é essencial!

No entanto, no Brasil, isso parece longe de configurar um senso comum. A idolatria mitificadora que envolve os atletas de alta performance tende a dissociá-los da sua humanidade, como se a fama, o sucesso, os altos salários e/ou a vida de luxo e regalias, fosse suficiente para abstê-los de suas responsabilidades cidadãs. O que acaba facilmente permeável à absorção de seu séquito de fiéis seguidores e cria uma realidade paralela onde a ética, a moral, as obrigações, os compromissos, passam a ser extremamente relativizados.

Quando patrocinadores, equipes e seleções permitem que um atleta envolvido, direta ou indiretamente, a um episódio que fere a ética, ou o decoro, ou até mesmo, represente um ato delituoso, não seja desligado das suas funções e o mantenha em posição de destaque no grupo, ainda que em stand by, o seu silêncio nesse movimento é deplorável e funciona sim, como ação reafirmativa aos desvios sociocomportamentais vigentes.

Afinal de contas, como já mencionei anteriormente, essa é uma responsabilidade a ser compartilhada coletivamente por diferentes elementos da sociedade, a fim de que se obtenha resultados transformadores efetivamente positivos. Quando um dos elos dessa corrente falha ou se abstém da sua responsabilidade, violências, beligerâncias, delitos, continuam encontrando solo fértil para se propagar com extrema facilidade.

É importante destacar, também, que pedidos de desculpa e/ou retratações são inócuas, e por excesso de recorrência na contemporaneidade, já soam com extrema desconfiança e desqualificação. Ninguém fala ou faz alguma coisa a esmo, sem pensar, sem intencionar algo. A manifestação prática, materializada, representa tão somente aquilo que o indivíduo defende, acredita, aceita, permite. Seja para o bem ou para o mal. Talvez, por isso o ser humano tenha sido dotado de capacidade cognitiva, analítica, reflexiva.

Por isso, sejamos mais conscientes e observadores em relação ao que acontece no mundo. A violência não é só a violência. O esporte não é só o esporte. Abaixo dessa linha tênue e superficializada que permitimos servir como referência de análise ao nosso olhar sobre o mundo, há um conjunto de teias relacionais emaranhadas, se desdobrando em consequências terríveis para o desenvolvimento e o progresso social.

Atenção às reafirmações deletérias de crenças, valores e princípios, absurdamente deploráveis, que desvirtuam as pessoas do caminho da exaltação de suas melhores habilidades e competências. Lembre-se de que a barbárie não desapareceu no ser humano, ela apenas está submetida a algum limite de domesticação; por isso, é preciso observância e cuidado, sempre.