segunda-feira, 24 de abril de 2023

Quando a Saúde faz adoecer


Quando a Saúde faz adoecer

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Apesar de a Educação figurar com destaque no cenário de problemas e desafios nacionais, se engana quem pensa que ela está só nesse caminho.  A Saúde não fica muito atrás! Embora vestida de silêncios e pudores a respeito, cada vez mais se torna impossível não perceber como a deterioração da Saúde avança no Brasil.

A matéria intitulada “Competição com a rede privada e condições de trabalho afastam médicos residentes do SUS” 1, embora traga algumas considerações importantes para revolver a reflexão, não contempla, talvez, camadas mais profundas e delicadas desse assunto. Certos vieses negligenciam, de certo modo, a Medicina, deixando esquecidos, no âmbito do foro privado da profissão, aspectos fundamentais que afetam diretamente a Saúde.

Sustentada, historicamente, pela narrativa de possuir a formação profissional mais longa e de maior responsabilidade, por lidar com o tênue limite entre a vida e a morte, a Medicina cruza o tempo sob uma aura de glamour e de reverência social, que acaba lhe trazendo uma certa blindagem quanto a possíveis críticas e questionamentos. Algo que se estabeleceu, principalmente, pela força corporativista existente na profissão.

Isso cria não só um distanciamento, mas um constrangimento nos pacientes e familiares, que não lhes deixam ousar indagar ou deliberar sobre a conduta médica aplicada; principalmente, entre aqueles cidadãos menos privilegiados socialmente. De modo que a palavra do médico se torna lei, o que nutre no inconsciente do profissional, com o passar do tempo, uma vaidade quanto a uma assertividade absoluta. Lançando-os, inconscientemente, ao rol de semideuses.

Acontece que, contrariando o equivocado pensamento que circula no inconsciente coletivo, como quaisquer profissionais que se prezem, os médicos não escapam da certeza de que o conhecimento não finda com o recebimento do diploma. As Ciências atravessam o tempo construindo, desconstruindo e ressignificando saberes, ininterruptamente. Se quiserem, então, se destacar e se reafirmar em suas respectivas áreas, eles terão que se dedicar a um contínuo processo de formação, acompanhando os avanços científicos e tecnológicos.

No entanto, esse processo se transformou em faca de dois gumes. Se por um lado cria mecanismos importantes, visando uma melhor capacitação e qualificação profissional, por outro, ela contribuiu para o aprofundamento da inacessibilidade e da precificação da Saúde. Cada vez mais, o acesso aos avanços da Ciência e aos médicos que dominam a excelência desses novos conhecimentos está delimitado pela capacidade de pagamento desses custos pelo paciente. De modo que nichos de atendimento são criados de acordo com o perfil social da população.

Pena, que isso não é tudo! A verdade é que toda essa dinâmica omite uma estarrecedora precarização da Saúde. Infelizmente, esse “vale quanto pesa” não traduz exatamente a qualidade do atendimento, do serviço prestado. Dispondo-se ou não a uma formação continuada, o que se percebe amiúde é que a graduação está aquém da consolidação básica de conhecimentos, valores e princípios. Permitindo lançar no mercado profissionais extremamente vaidosos e arrogantes, mas de competências e habilidades bastante questionáveis.

Sob a velha máxima de que “tempo é dinheiro”, e não importa se vem das vias públicas ou privadas, a Medicina contemporânea vem homogeneizando os pacientes, transformando as práxis em verdadeiras receitas de bolo, como se pudessem caber nas demandas de todos, indiscutivelmente. O paciente é cada vez menos protagonista do seu próprio atendimento. Não é ouvido. Não é examinado adequadamente. Não é respeitado. Não é cuidado da maneira que espera e necessita. Nem mesmo, quando paga a peso de ouro, por isso.

Portanto, falta discutir a Medicina no Brasil. Suas realidades. Suas perspectivas. Que tipo de profissionais se têm permitido formar no país. Não, não basta uma análise superficial de quantos cursos de Medicina existem, ou onde se localizam, quais as áreas têm excesso ou carência de profissionais. É preciso mergulhar mais fundo nesse oceano! Se a Medicina pressupõe vasto conhecimento, ela também implica em ética, dignidade, compromisso e responsabilidade. Vida e morte, lembra???

É preciso saber onde os caminhos se desvirtuaram, onde a mercantilização e a precificação assumiram o controle da Saúde, para que nesse momento da história nos deparássemos com uma desumanização tão flagrante. Entender como a precarização na Saúde avança sobre aspectos humanos e materiais se misturando à burocracia, às omissões, às negligências, à ineficiência/ insuficiência logística, ao descaso das políticas públicas, a fim de propor medidas de recuperação e restauração das práticas humanitárias é fundamental.

Sim, porque estamos diante do mais absoluto estado de perda da qualidade enquanto se ampliam as vertentes da insegurança social, no campo da Saúde 2. Permitindo que ao invés de curar, a ação da Saúde venha impor riscos e agravos ao cidadão, seja no serviço público ou privado do país.

Desse modo, de nada adianta apostar nos milagres da Ciência e da Tecnologia se abdicamos de olhar o principal, o ser humano. Porque na hora de operar a transformação da dor e do sofrimento em saúde, quem está na dianteira do trabalho são pessoas, que precisam sim, de conhecimento, de competência, de habilidade; mas, especialmente, de ética e de humanidade.