Quando
a Saúde faz adoecer
Por
Alessandra Leles Rocha
Apesar de a Educação figurar com
destaque no cenário de problemas e desafios nacionais, se engana quem pensa que
ela está só nesse caminho. A Saúde não
fica muito atrás! Embora vestida de silêncios e pudores a respeito, cada vez
mais se torna impossível não perceber como a deterioração da Saúde avança no
Brasil.
A matéria intitulada “Competição com a rede privada e condições
de trabalho afastam médicos residentes do SUS” 1,
embora traga algumas considerações importantes para revolver a reflexão, não
contempla, talvez, camadas mais profundas e delicadas desse assunto. Certos
vieses negligenciam, de certo modo, a Medicina, deixando esquecidos, no âmbito
do foro privado da profissão, aspectos fundamentais que afetam diretamente a
Saúde.
Sustentada, historicamente, pela
narrativa de possuir a formação profissional mais longa e de maior
responsabilidade, por lidar com o tênue limite entre a vida e a morte, a
Medicina cruza o tempo sob uma aura de glamour e de reverência social, que
acaba lhe trazendo uma certa blindagem quanto a possíveis críticas e
questionamentos. Algo que se estabeleceu, principalmente, pela força corporativista
existente na profissão.
Isso cria não só um
distanciamento, mas um constrangimento nos pacientes e familiares, que não lhes
deixam ousar indagar ou deliberar sobre a conduta médica aplicada;
principalmente, entre aqueles cidadãos menos privilegiados socialmente. De modo
que a palavra do médico se torna lei, o que nutre no inconsciente do
profissional, com o passar do tempo, uma vaidade quanto a uma assertividade
absoluta. Lançando-os, inconscientemente, ao rol de semideuses.
Acontece que, contrariando o
equivocado pensamento que circula no inconsciente coletivo, como quaisquer
profissionais que se prezem, os médicos não escapam da certeza de que o conhecimento
não finda com o recebimento do diploma. As Ciências atravessam o tempo construindo,
desconstruindo e ressignificando saberes, ininterruptamente. Se quiserem,
então, se destacar e se reafirmar em suas respectivas áreas, eles terão que se
dedicar a um contínuo processo de formação, acompanhando os avanços científicos
e tecnológicos.
No entanto, esse processo se
transformou em faca de dois gumes. Se por um lado cria mecanismos importantes,
visando uma melhor capacitação e qualificação profissional, por outro, ela
contribuiu para o aprofundamento da inacessibilidade e da precificação da
Saúde. Cada vez mais, o acesso aos avanços da Ciência e aos médicos que dominam
a excelência desses novos conhecimentos está delimitado pela capacidade de
pagamento desses custos pelo paciente. De modo que nichos de atendimento são
criados de acordo com o perfil social da população.
Pena, que isso não é tudo! A
verdade é que toda essa dinâmica omite uma estarrecedora precarização da Saúde.
Infelizmente, esse “vale quanto pesa”
não traduz exatamente a qualidade do atendimento, do serviço prestado.
Dispondo-se ou não a uma formação continuada, o que se percebe amiúde é que a
graduação está aquém da consolidação básica de conhecimentos, valores e
princípios. Permitindo lançar no mercado profissionais extremamente vaidosos e
arrogantes, mas de competências e habilidades bastante questionáveis.
Sob a velha máxima de que “tempo é dinheiro”, e não importa se vem
das vias públicas ou privadas, a Medicina contemporânea vem homogeneizando os
pacientes, transformando as práxis em verdadeiras receitas de bolo, como se
pudessem caber nas demandas de todos, indiscutivelmente. O paciente é cada vez
menos protagonista do seu próprio atendimento. Não é ouvido. Não é examinado
adequadamente. Não é respeitado. Não é cuidado da maneira que espera e
necessita. Nem mesmo, quando paga a peso de ouro, por isso.
Portanto, falta discutir a
Medicina no Brasil. Suas realidades. Suas perspectivas. Que tipo de
profissionais se têm permitido formar no país. Não, não basta uma análise
superficial de quantos cursos de Medicina existem, ou onde se localizam, quais
as áreas têm excesso ou carência de profissionais. É preciso mergulhar mais
fundo nesse oceano! Se a Medicina pressupõe vasto conhecimento, ela também
implica em ética, dignidade, compromisso e responsabilidade. Vida e morte,
lembra???
É preciso saber onde os caminhos
se desvirtuaram, onde a mercantilização e a precificação assumiram o controle
da Saúde, para que nesse momento da história nos deparássemos com uma
desumanização tão flagrante. Entender como a precarização na Saúde avança sobre
aspectos humanos e materiais se misturando à burocracia, às omissões, às
negligências, à ineficiência/ insuficiência logística, ao descaso das políticas
públicas, a fim de propor medidas de recuperação e restauração das práticas
humanitárias é fundamental.
Sim, porque estamos diante do
mais absoluto estado de perda da qualidade enquanto se ampliam as vertentes da
insegurança social, no campo da Saúde 2.
Permitindo que ao invés de curar, a ação da Saúde venha impor riscos e agravos
ao cidadão, seja no serviço público ou privado do país.
Desse modo, de nada adianta
apostar nos milagres da Ciência e da Tecnologia se abdicamos de olhar o
principal, o ser humano. Porque na hora de operar a transformação da dor e do
sofrimento em saúde, quem está na dianteira do trabalho são pessoas, que
precisam sim, de conhecimento, de competência, de habilidade; mas,
especialmente, de ética e de humanidade.