sexta-feira, 21 de abril de 2023

Não é sobre eles. É sobre todos nós.


Não é sobre eles. É sobre todos nós.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Tenho pensado muito sobre o modo com o qual o brasileiro entende a sua civilidade, dada a facilidade com que ele superficializa questões importantíssimas, tornando-as banalizadas de tal maneira que deformam o inconsciente coletivo nacional. Há uma subserviência eurocêntrica tão pulsante em seu pensamento, que embaça a visão quanto ao mundo plural e diverso existente, aprofundando fronteiras e desigualdades que jamais deveriam ser toleradas.  

Em 1943, o Ex-Presidente da República Getúlio Vargas instituiu por decreto-lei o Dia do Índio, considerando que três anos antes, o Primeiro Congresso Indigenista, reunido no México, já havia proposto a adoção dessa data comemorativa. Passados pouco mais de 4 séculos, desde o início da colonização brasileira, uma data no calendário não diz muita coisa, considerando toda a brutalidade imposta aos povos originários, desde então.

Aí foram necessários mais 79 anos para retificar o tal decreto e renomear a data como Dia dos Povos Indígenas 1, retirando da ideia inicial o peso de uma homogeneização social generalista, considerando-se que a história nacional aponta para uma estimativa de aproximadamente 1000 etnias diferentes, em 1500. Porém, o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2, mostrou que, apesar da drástica redução numérica, o país ainda dispõe de 325 etnias e 274 línguas indígenas.

De modo que, mais uma vez, o assunto permaneceu em um nível de superficialização constrangedora. Não só porque o manteve preso a um papel meramente decorativo, simbólico; mas, pela reafirmação do descaso com a sua condição existencial enquanto coletivos grupais, cuja identidade se expressa pela especificidade na organização social, nos costumes, na língua, na crença e nas tradições. Serem denominados apenas como índios, durante tanto tempo, foi uma forma de desapropriá-los da sua identidade, da sua dignidade cidadã.

Mas, ao que tudo indica, nesses pouco mais de 500 anos, nunca houve realmente um ímpeto de reparação histórica em relação aos abusos e atrocidades cometidos contra os povos originários. Demonstrando, então, que passadas inúmeras gerações, não houve por parte da sociedade civil, e nem tampouco das autoridades competentes, qualquer sentimento de indignação que motivasse uma ruptura paradigmática com certos valores e princípios, a fim de se estabelecer uma nova ordem nas relações sociais no país.

Como o ideário permaneceu o mesmo, a escolha de uma data no calendário pareceu suficiente para aplacar-lhes a consciência. Traçando um paralelo com a realidade contemporânea, não é difícil entender que o germe da segregação, da indiferença, da invisibilização, surgiu na relação dos colonizadores com os povos originários. Foram eles, os primeiros, a serem colocados à margem do exercício cidadão nacional, a partir de uma arbitrária e repugnante objetificação humana. Sem contar o modo como suas vidas foram sumariamente consideradas desimportantes e, por isso, barbaramente dizimadas.

Entretanto, ao mesmo tempo em que esse processo é visivelmente flagrante, ele consegue passar despercebido, graças a força da alienação promovida pelos agentes contemporâneos incumbidos de atuar sobre o inconsciente coletivo. O que se faz bastante visível pela baixíssima representatividade dos povos originários na dinâmica do cotidiano nacional. Eles foram alçados a uma condição de minoria que não faz o menor sentido!

Veja que eles não estão presentes no campo sociocultural do ensino, ou seja, apresentados, falados, imersos nas discussões e proposições dos livros, das apostilas, da inter e transdisciplinaridade.  Como eles, também, não estão efetivamente presentes nos espaços de poder. Mas, a sociedade não reclama, não questiona, não se incomoda com essa ausência, porque foi doutrinada a aceitar o espetáculo do absurdo naturalizado. A considerar normal viver em um coletivo onde se permita existir cidadãos de primeira, de segunda ou de última classe. Sem vez, sem voz, sem direitos.

Acontece que os povos indígenas são só um exemplo, dentro de milhares de outros que se mostram altamente desafiadores para o cenário nacional. São tantos os ranços históricos que permanecem reverberando todos os dias, e teimam em atravessar o país pelas vias reais e virtuais, que acabam obstaculizando o ideário progressista e desenvolvimentista nacional, pois não permitem aceitar os ventos da mudança que sopram pelo mundo.

Assim, deixo uma reflexão final através das palavras de Ailton Krenak 3, “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos” (trecho do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”).