Não
é sobre eles. É sobre todos nós.
Por
Alessandra Leles Rocha
Tenho pensado muito sobre o modo
com o qual o brasileiro entende a sua civilidade, dada a facilidade com que ele
superficializa questões importantíssimas, tornando-as banalizadas de tal maneira
que deformam o inconsciente coletivo nacional. Há uma subserviência eurocêntrica
tão pulsante em seu pensamento, que embaça a visão quanto ao mundo plural e
diverso existente, aprofundando fronteiras e desigualdades que jamais deveriam
ser toleradas.
Em 1943, o Ex-Presidente da
República Getúlio Vargas instituiu por decreto-lei o Dia do Índio, considerando
que três anos antes, o Primeiro Congresso Indigenista, reunido no México, já
havia proposto a adoção dessa data comemorativa. Passados pouco mais de 4
séculos, desde o início da colonização brasileira, uma data no calendário não
diz muita coisa, considerando toda a brutalidade imposta aos povos originários,
desde então.
Aí foram necessários mais 79 anos
para retificar o tal decreto e renomear a data como Dia dos Povos Indígenas 1, retirando da ideia inicial o peso de
uma homogeneização social generalista, considerando-se que a história nacional aponta
para uma estimativa de aproximadamente 1000 etnias diferentes, em 1500. Porém,
o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) 2, mostrou que, apesar da
drástica redução numérica, o país ainda dispõe de 325 etnias e 274 línguas indígenas.
De modo que, mais uma vez, o
assunto permaneceu em um nível de superficialização constrangedora. Não só
porque o manteve preso a um papel meramente decorativo, simbólico; mas, pela
reafirmação do descaso com a sua condição existencial enquanto coletivos
grupais, cuja identidade se expressa pela especificidade na organização social,
nos costumes, na língua, na crença e nas tradições. Serem denominados apenas
como índios, durante tanto tempo, foi uma forma de desapropriá-los da sua
identidade, da sua dignidade cidadã.
Mas, ao que tudo indica, nesses
pouco mais de 500 anos, nunca houve realmente um ímpeto de reparação histórica
em relação aos abusos e atrocidades cometidos contra os povos originários. Demonstrando,
então, que passadas inúmeras gerações, não houve por parte da sociedade civil,
e nem tampouco das autoridades competentes, qualquer sentimento de indignação que
motivasse uma ruptura paradigmática com certos valores e princípios, a fim de se
estabelecer uma nova ordem nas relações sociais no país.
Como o ideário permaneceu o mesmo,
a escolha de uma data no calendário pareceu suficiente para aplacar-lhes a consciência.
Traçando um paralelo com a realidade contemporânea, não é difícil entender que
o germe da segregação, da indiferença, da invisibilização, surgiu na relação
dos colonizadores com os povos originários. Foram eles, os primeiros, a serem
colocados à margem do exercício cidadão nacional, a partir de uma arbitrária e
repugnante objetificação humana. Sem contar o modo como suas vidas foram
sumariamente consideradas desimportantes e, por isso, barbaramente dizimadas.
Entretanto, ao mesmo tempo em que
esse processo é visivelmente flagrante, ele consegue passar despercebido,
graças a força da alienação promovida pelos agentes contemporâneos incumbidos
de atuar sobre o inconsciente coletivo. O que se faz bastante visível pela baixíssima
representatividade dos povos originários na dinâmica do cotidiano nacional. Eles
foram alçados a uma condição de minoria que não faz o menor sentido!
Veja que eles não estão presentes
no campo sociocultural do ensino, ou seja, apresentados, falados, imersos nas
discussões e proposições dos livros, das apostilas, da inter e transdisciplinaridade.
Como eles, também, não estão efetivamente
presentes nos espaços de poder. Mas, a sociedade não reclama, não questiona, não
se incomoda com essa ausência, porque foi doutrinada a aceitar o espetáculo do
absurdo naturalizado. A considerar normal viver em um coletivo onde se permita existir
cidadãos de primeira, de segunda ou de última classe. Sem vez, sem voz, sem
direitos.
Acontece que os povos indígenas são
só um exemplo, dentro de milhares de outros que se mostram altamente
desafiadores para o cenário nacional. São tantos os ranços históricos que
permanecem reverberando todos os dias, e teimam em atravessar o país pelas vias
reais e virtuais, que acabam obstaculizando o ideário progressista e
desenvolvimentista nacional, pois não permitem aceitar os ventos da mudança que
sopram pelo mundo.
Assim, deixo uma reflexão final
através das palavras de Ailton Krenak 3,
“Sentimo-nos como se estivéssemos soltos
num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser
compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados
o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se
pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos
vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma
cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós
mesmos” (trecho do livro “Ideias para adiar o fim do mundo”).
2 https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/nosso-povo/20507-indigenas.html#:~:text=Existem%20hoje%20305%20etnias%20e%20274%20l%C3%ADnguas%20ind%C3%ADgenas.
3 Ailton Alves Lacerda Krenak, mais conhecido como Ailton Krenak, é um pensador, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena crenaque. É também professor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pela Universidade de Brasília (UnB). Fonte: https://academiamineiradeletras.org.br/academicos/ailtonkrenak/