LIBERDADE...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não sei você; mas, quando penso
na palavra liberdade, me vem à mente a imagem de uma pluma voando solta pelo
vento à revelia das horas. Mas, quanto mais observo e penso sobre o mundo
contemporâneo mais percebo que essa perspectiva foge da realidade. Embora
clamada e propagada aos quatro cantos, a liberdade que se vive, em pleno século
XXI, foi definitivamente castrada na sua essência.
Pois é, milhões de pessoas nem se
dão conta do que fez o mundo cibernético para a sua liberdade. Na contramão da promessa de oferecer mais
tempo livre para o ser humano desfrutar da sua vida, sob os mais diferentes contextos,
a 4ª Revolução Industrial foi pensada e planejada para que as horas se
tornassem a mercadoria mais importante da contemporaneidade.
Portanto, todas as conquistas
tecnocientíficas culminaram no aprisionamento das atividades cotidianas em um
mundo cujo recorte temporal das 24 horas, que nos habituamos a conviver, não
existe. Nele tudo acontece ilimitadamente, fazendo com que as pessoas sejam
sobrecarregadas por milhões de informações, diversas formas de entretenimento,
conversas intermináveis, enfim.
No entanto, saiba que isso é só a
ponta de um imenso iceberg. No fundo de todo esse frenesi high tech, que trata do como e do quanto
a liberdade está sendo perdida pela infinitude do tempo demandado pelas
tecnologias, é possível perceber que há algo muito mais grave acontecendo, ou
seja, uma homogeneização social.
Na medida em que as tecnologias
subtraem o tempo das pessoas, elas acontecem instituindo padrões ideológicos e
comportamentais homogeneizantes, que afetam diretamente na individualidade
identitária. Como cópias de um carimbo? Sim.
De modo que a sua liberdade de
ser e estar no mundo, vem sendo arruinada em um ritmo extremamente veloz. O que
significa que as prioridades existenciais dos indivíduos foram se perdendo na
escala dessa nova ordem sociocultural instituída.
Cada vez menos tempo para ler, para
aprender, para conhecer, para desenvolver o ócio criativo, para tecer as
relações afetivas, ... Cada vez menos tempo para o simples e trivial da vida
humana, como ela foi concebida antes de se cogitar a chegada do mundo virtual.
Todo esse movimento avassalador
está, então, construindo gerações cuja identidade intelectual está se tornando mais
rasa, mais superficial. Paira no ar uma exaustão coletiva. Afinal, a busca pela
liberdade somada a dominação exercida pelas tecnologias é algo extremamente
cansativo.
E isso acaba minando os
interesses individuais e, sutilmente, induzindo as pessoas a seguirem o fluxo de
uma corrente. Lembra da música: “Pense,
fale, compre, beba / Leia, vote, não se esqueça / Use, seja, ouça, diga / Tenha,
more, gaste e viva[...]” 1?
Enquanto as redes sociais disputam
de maneira feroz o tempo e os interesses de uma sociedade, cuja liberdade já
foi devidamente manipulada e controlada por aqueles que detêm o poder nas mãos,
o cansaço social coletivo leva à proliferação do efeito manada.
Quaisquer exigências no campo
cognitivo e intelectual contemporâneo apontam para o imediato desinteresse das
pessoas. Daí o sucesso de uma escrita concisa a partir de um limite preestabelecido
de caracteres, ou a divulgação de vídeos curtos sobre determinados assuntos, ou
noticiários que recortam as matérias mais comentadas do dia, ... e até mesmo,
as Fake News.
E ainda querem se afirmar livres?!
Bem, nesse ritmo de alienação, os libertários contemporâneos vão se rendendo às
mais diversas correntes aprisionantes do poder. A ausência ou carência de
profundidade dialógica e argumentativa os tornam presas fáceis para se tornarem
multiplicadores de ideias, eventualmente nocivas e perigosas, aqui e acolá.
Quando lembro de um tempo em que
o debate girava em torno dos riscos de uma educação a partir de apostilas e
resumos, chego a achar engraçado; pois, evoluímos para algo muito pior. Acontece que essa deterioração identitária contemporânea
reflete na baixíssima qualidade dos seres humanos, nos mais diferentes aspectos
da sua vida social; sobretudo, naquelas situações em que as violências imperam.
O que vimos recentemente em episódios
de barbárie dentro de escolas é prova cabal disso. A realidade recortada em
pedaços e traduzida como gotas de verdade pelas redes sociais não encontra resistência
de nenhuma natureza; portanto, não sofre qualquer escrutínio da população e nem
das autoridades competentes.
Dizia a estilista francesa Coco
Chanel que “O mais corajoso dos atos
ainda é pensar com a própria cabeça”, e ela estava coberta de razão; pois, essa
é a única forma de defender e de se apropriar da liberdade.
Não basta dizer que somos livres!
Seria preciso que a nossa liberdade, então, nos fizesse cada dia menos
adoecidos, frustrados, isolados, humilhados, cancelados, empobrecidos,
violentos, ... Mas, diante de tanto cerceamento social desaprendemos a pensar,
a sonhar, a amar, a ser, segundo nossas próprias crenças, valores e convicções.
E quanto mais se conduz a vida
por essa trivialização, mais a liberdade, em seu sentido literal, morre. Assim como,
a nossa identidade, o nosso conhecimento e o nosso tempo. Como escreveu Mia
Couto, “Quem confunde céu e água acaba
por não distinguir vida e morte” 2.
Daí a necessidade de ver, com
toda atenção, com os olhos e a mente bem abertos, a quantidade de pontes que
temos propiciado construir para o trânsito corrente do que há de pior na
humanidade. Guerras. Fome. Miséria. Racismo. Xenofobia. Misoginia. ...
Talvez, por tudo isso, não falte razões
para nos perguntarmos sempre: “De que
vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o
que vivo é menos do que o que sonhei? ” (Mia Couto)3.
Porque diante dessa liberdade distorcida, equivocada, deturpada, que está por aí,
o ser humano pode, cada vez menos, se dar ao luxo de dizer “[...]Eu sou dono e senhor do meu destino; / Eu sou o comandante de
minha alma” (Invictus – William E.
Henley) 4.
1 Admirável
chip novo (Pitty) - https://www.youtube.com/watch?v=x_I74oWzjIU
2 COUTO, M. A varanda do Frangipani. São Paulo: Cia.
das Letras, 1996. 152p.
3 COUTO, M. O fio das missangas. São Paulo: Cia.
das Letras, 2016. 152p.