terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A chuva que chora...


A chuva que chora...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A natureza chora, em forma de chuva, a sua indignação diante de todas as investidas perversas e brutais que vem sofrendo. Mas, e nós, a sociedade brasileira? Será que ainda podemos continuar fingindo que não estamos entendendo o que está bem a luz da nossa retina? Penso que não. Não cabe mais apatia, nem descaso, nem postergação. É hora de arregaçar as mangas, de assumir o protagonismo em nome da própria sobrevivência; visto que, as catástrofes não são seletivas, não fazem discriminação deste ou daquele. É tudo junto e misturado. Quem assistiu ao filme “O impossível” (The impossible)1, de 2012, entende bem o que isso significa.

No caso específico das enchentes que são, no momento, a bola da vez, o significado do desmatamento para esse processo é incontestável. A retirada da cobertura vegetal, seja qual for o mecanismo – fogo, motosserra, machado, veneno, ... -, é determinante para a construção desse cenário devastador. Primeiro, porque não se trata de um acontecimento de natureza homogênea, na medida em que ela é impactada de maneira totalmente irregular. Portanto, a formação de chuvas acompanha essa heterogeneidade, a qual somada a outros fatores climáticos, condiciona a ocorrência de episódios fora da previsibilidade.

Segundo, porque as chuvas passam a não obter resistência no encontro com o solo, não há uma camada de proteção, uma barreira de contenção, o que amplia a intensidade com a qual ela golpeia a superfície e amplia a sua aceleração durante o deslocamento, carregando tudo o que há pela frente. De modo que grande parte do que as chuvas arrastam acaba dentro dos cursos d’água – nascentes, córregos, rios, ... -, tornando-os demasiadamente assoreados, ou seja, diminuindo a capacidade deles em reter o volume de água, causando transbordamentos; sobretudo, em casos de enchentes.

Por fim, o mau uso e ocupação do solo pelos seres humanos, representado pela expansão das fronteiras agrícolas e urbanoindustriais, não pode permanecer invisibilizado e desconsiderado nessa exacerbação de recorrência dos desastres ambientais. Há um visível estreitamento entre essas fronteiras em decorrência do desmatamento realizado de maneira insustentável e muito mal planejado. Estamos, portanto, perdendo vastas extensões de matas ciliares e demais organizações de cobertura vegetal, desconfigurando completamente os biomas nos quais elas estão inseridas e possibilitando o surgimento de uma nova ordem geográfica em total desequilíbrio.

Não, não adianta negar. Temos culpa por tudo o que está acontecendo. Enquanto prioriza a sua sobrevivência, o seu bem-estar, as suas demandas e desejos, a humanidade apaga da própria consciência o fato de que o planeta tem limites, tem uma organização própria. É um tal de desmatar aqui, alterar curso de rio ali, passar uma estrada acolá, ... sem pesar os prós e os contras, sem respeitar os estudos de impacto ambiental que fundamentam a legislação vigente, sem considerar os riscos e as inseguranças, sem pensar em nada. Ela simplesmente subjuga o meio ambiente à revelia de quaisquer consequências e desdobramentos. Ela se expõe de maneira desnecessária, pagando um preço alto demais, ou seja, com a própria vida.

Ano após ano, o perfil pluviométrico brasileiro tem, portanto, sofrido mudanças abruptas. As previsões para o verão, comumente chuvoso no hemisfério sul do planeta, têm se mostrado permeada de irregularidade, especialmente, nas regiões mais atingidas pelas ações antrópicas devastadoras. Há uma visível impossibilidade de continuarmos nos guiando por patamares estatísticos, porque eles estão sendo desconstruídos pelas conjunturas. Não é à toa, que as cidades estão sendo surpreendidas pela incapacidade de resistência da sua infraestrutura. Redes pluviométricas e de esgoto, barragens, reservatórios, pontes, vias urbanas e rurais, ... não há dimensionamento de engenharia que consiga antever e suportar as tragédias.

O mundo não é mais o mesmo. É isso que precisa ser compreendido de uma vez por todas. Não dá para ficar nesse destrói, reconstrói, destrói de novo, reconstrói de novo, ... ad aeternum. Porque não se trata somente de um processo material, de ter ou não recurso financeiro para fazer. É no componente subjetivo que reside o maior desafio. Seres humanos. Sua identidade. Suas crenças. Seus valores. Suas emoções. Seus sentimentos. Elementos muito singulares, muito particularizados, muito próprios, que não têm dia, não têm hora, para serem reconstituídos. Cada um sente de um jeito.

Por isso, em comum, apenas a certeza de que nada será como antes. Afinal, se alguns nessa vida são marcados a ferro, há milhares de outros que são marcados pela chuva, pelos ventos, pelos raios, pela fúria indomável da natureza. Quem vai dizer que não? Quem vai dizer que está acima das catástrofes, imune a isso ou aquilo? Quem vai? Nos últimos dias, olhando para as chuvas que assolaram regiões em Minas Gerais, Bahia, Goiás, Tocantins e Piauí, vi um pedaço do Brasil homogeneizado pelo imponderável. Pobres, ricos, desempregados, comerciantes, ... Gente de todas as idades, gêneros, credos, raças, anestesiada pela perplexidade, como se o jogo da vida tivesse zerado para elas, antes de oferecer-lhes quaisquer oportunidades.

Daí lembrei-me das seguintes palavras de Hannah Arendt, “Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para recomeçar” (A condição humana). Talvez, seja exatamente isso que a natureza esteja tentando nos relembrar através da sua ação avassaladora. Precisamos despertar do torpor que se reflete por tantas atitudes arraigadas e irrefletidas, em nome do próprio instinto de sobrevivência. Sim, precisamos. Sim, isso é urgente.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Eis que 2022 já aponta no fim dessa estrada...


Eis que 2022 já aponta no fim dessa estrada...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

2021 se aproxima do fim. O ano que tinha tudo para ser diferente, daquele 2020 intenso e avassalador da Pandemia, frustrou as expectativas. Já estavam disponíveis no mercado farmacêutico as vacinas que trariam a oportunidade de imunização contra o Sars-Cov-2 e suas variantes, mitigando a incidência dos casos mais graves e complexos da doença, reduzindo assim, a fatalidade. A vida poderia, então, retomar o seu fluxo e iniciar a reconstrução dos pilares que foram abalados ou destruídos no ano anterior. Enfim, seria um tempo de renascimento, ressignificação, reconstrução, redimensionamento de valores, princípios e crenças; mas... O panorama projetado para ser de ordem global, não se sucedeu assim.

O Brasil nos fez sentir como se estivéssemos diante de um fluxo contínuo de acirramento das adversidades. O desfolhar do calendário de 31 de dezembro de 2020 para 1º de janeiro de 2021 não resultou na concretização das esperanças, apenas se mostrou como rito protocolar. A exceção, no entanto, o que ninguém sabia naquele momento inicial é que a realidade encontraria meios para expurgar suas verdades mais inconvenientes, ao trazer à tona tanta coisa que estava obscura nas entrelinhas dos acontecimentos até aquele ponto. O que de certo modo passou a justificar a razão pela qual 2021 se tornaria uma mera extensão de 2020.

Infelizmente, ou felizmente, estava decretado o fim da existência de quaisquer espaços para se negar os fatos. Todos os acontecimentos no Brasil se configuravam na contramão do mundo e não se restringiam apenas à Pandemia. O status de isolamento no cenário global se consolidava a cada dia, sem que houvesse quaisquer esforços de retomada dos rumos pelo bom senso, pela competência, pela habilidade diplomática, ... O que desencadeou uma manifestação acelerada dos desdobramentos e consequências negativas, e porque não dizer nefastas, para o país. Sobretudo, quanto à sua credibilidade e protagonismo decisório.

Atirando no que se via, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Pandemia, instaurada pelo Senado Federal, acabou acertando em algo que jamais se poderia supor. As vísceras do país foram dissecadas e mostraram o grau de deterioração, de putrefação, ali existente. Havia omissão. Havia corrupção. Havia má intenção. Havia negligência dolosa. ... Havia de um tudo, de mais terrível, que não encontrava resistência, constrangimento ou quaisquer outros sentimentos capazes de frear suas investidas. Havia pessoas tripudiando sobre uma Pandeia que era a causa mortis de milhões de brasileiros e brasileiras de todas as idades, credos, gêneros, raças e status, enquanto contribuíam para obstaculizar severamente o processo de imunização no país.

Ao mesmo tempo, corriam por outras vertentes, questões não menos impactantes à sobrevivência da população. O caos se disseminava pela gestão pública através da Economia. O que já era sentido no dia a dia do cidadão foi abruptamente comprovado e reafirmado inúmeras vezes pelas estatísticas. Altos índices de desemprego, subocupação, desalento. Miséria e pobreza em franca expansão. Juros levados à estratosfera, como medida de contenção de uma inflação indomável. Perda do poder de compra da população. Crescimento das atividades econômicas estagnado. Desvalorização galopante da moeda nacional diante da elevação do dólar. Espaços urbanos tomados por uma legião de desabrigados, de gente sem acesso à moradia, expostos aos golpes da indignidade cidadã. ...

Pois é, tudo devidamente registrado a olhos nus e pelos veículos de informação e comunicação nacionais e estrangeiros. Páginas recentes de uma história bastante indigesta para se contar, para se lembrar; mas, que trazem a devida explicação dos motivos que nos fizeram tão cansados, tão exauridos, tão fatigados para transitar pelos 365 dias desse 2021. O efeito cumulativo desses acontecimentos foi o fiel da balança para tornar essa jornada tão desafiadora e cruel. Nem mesmo as alegrias dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, ocorridos extra tempore no Japão, foi capaz de resgatar o brasileiro, de maneira plena e satisfatória, dos abismos das adversidades. Apesar de dias mais suaves, o espírito humano estava muito ferido para celebrar e comemorar na intensidade que sempre lhe foi pertinente. Havia sempre uma nuvenzinha de preocupação e desconforto rondando o espaço mental e contendo as emoções e os sentimentos mais felizes.

Viver o 2021 foi viver aos sobressaltos. A vida colaborou para nos colocar em um alerta ininterrupto. Nada de certezas. Tudo caminhando pelos labirintos do relativismo, entre idas e vindas no tempo de um piscar de olhos, de um breve suspiro. Como se os dias tivessem se transformado em uma eterna observação do horizonte. Vai chover? Vai fazer sol? Vai ter vendaval? Vai ter estiagem? Como será? E esse movimento cansa. Como cansa! Não dá uma razão sequer para aliviar a alma, para se segurar em alguma mínima convicção. Porque as mudanças não demoram a volta completa do relógio. Acontecem da manhã para tarde, da tarde para a noite. É assim. Nesse ritmo frenético e incontrolável, que nos deixa meio cabisbaixos, sem viço, sem entusiasmo, sem aquele brilho nos olhos.

Mas, como a vida não é mesmo de dar muita atenção para as nossas opiniões, eis que um novo ano já aponta no fim dessa estrada. O que me parece oportuno para ouvir aquela canção, “Um novo tempo”1. Apesar de nos sentirmos frágeis, sensíveis, no fundo não é bem assim. Ainda que seja difícil de perceber, de detectar, as duras lições nos forjaram sim, o espírito, nos lapidaram a essência, nos restituíram uma força incomensurável.

Justamente por isso, precisamos alterar o curso da história, remendar os fiapos do que restou de nós até aqui, a fim de seguirmos adiante sob novas perspectivas e expectativas. Afinal, não podemos nos render de joelhos, nos entregar aos inimigos e as adversidades sem quaisquer resistências. Como diz o livro sagrado dos cristãos, “Enquanto há vida, há esperança (Eclesiastes, 9:4) ” e 2022 está aí para ser escrito. Porque projeções, conjecturas, idealizações, delírios, nada disso dispõe da robustez e da solidez suficientemente determinada para se afirmar na condição de fato concreto e absoluto. Elas são apenas sinais, indicativos, possibilidades, não são certezas. E há sempre muita água para rolar por debaixo da ponte.

Como de costume, não vai ser fácil. Porque a vida é assim. A sugestão que deixo, então,  para você, caro leitor, é que procure entender em profundidade que “querer mudar o mundo ao seu redor” implica necessariamente “saber que mudar por dentro pode ser melhor”2. E assim, com uma dose generosa de “paciência”3, mais dia menos dia, você descobre as possibilidades que viabilizam fazer da crença esperançosa uma realidade revestida de “dias melhores” 4, cantando “a beleza de ser um eterno aprendiz” 5 que jamais deixa de ter “fé na vida, fé no homem, fé no que virá” 6. Salve, salve, 2022 7! Feliz Ano Novo 8!



1 Novo Tempo (Ivan Lins / Vitor Martins) - https://www.letras.mus.br/ivan-lins/46444/

2 Daqui só se leva o amor (Jota Quest) - https://www.letras.mus.br/jota-quest/daqui-so-se-leva-o-amor/

3 Paciência (Lenine / Dudu Falcão) - https://www.letras.mus.br/lenine/47001/

4 Dias melhores (Jota Quest) - https://www.letras.mus.br/jota-quest/46686/

5 O que é, O que é? (Gonzaguinha) - https://www.letras.mus.br/gonzaguinha/463845/

6 Nunca pare de sonhar (Gonzaguinha) - https://www.letras.mus.br/gonzaguinha/46281/

7 Renova-te (Cecília Meireles) - https://blogdospoetas.com.br/poemas/renova-te/

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

FELIZ NATAL!!! MERRY CHRISTMAS!!! JOYEUX NOËL!!! ! FELIZ NAVIDAD! BUON NATALE!!! FROHE WEIHNACHTEN!!! ...


Apenas mais uma reflexão natalina...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Para mim, Natal sempre foi tempo de reflexão. De um jeito ou de outro estamos ligados à história daquele menino que nasceu para transformar, para ressignificar, para redefinir a vida, para cumprir uma missão. Pois é, somos missionários. Ninguém chega a essa vida a passeio. Cada qual ao seu modo; mas, ninguém menos importante nesse processo de construção do mundo.

Alguns já nascem sabendo a que vieram. Outros vão se descobrindo ao longo da jornada, a partir dos acontecimentos, dos desafios, das conjunturas. Porque a vida não vem com manual, ou com script. O roteiro está sempre em aberto, disponível para “plot twists” arrebatadores ou licenças poéticas de encher o coração. Para ser escrito individual e coletivamente.

Afinal, simplificando as coisas, viver é a maior de todas as missões. Não é à toa que temos direitos; mas, também, temos obrigações. Muitas. Diversas. Plurais. Porque somos, direta ou indiretamente, cobrados por cada mínima ação colocada (ou não) em prática.

Nada passa despercebido. Tudo tem consequência, desdobramento, repercussão. O que é bom. O que é ruim. O que é mais ou menos. Já se esqueceu de que não pecamos apenas por atos, mas por omissões, também?

Então, quando se aproxima dezembro tudo isso começa a se aflorar na consciência de uma maneira muito mais intensa e especial. Independentemente da nossa profissão de fé, da nossa conexão religiosa, as tramas do sagrado que nos revestem, nos envolvem nos 365 ou 366 dias de cada ano, iniciam a sinalização de que estamos sim, mais perto do fim de um ciclo de 12 longos meses.

O que significa que precisamos fazer um balanço profundo desse recorte do tempo. Sucessos. Fracassos. Conquistas. Derrotas. Avanços. Retrocessos. Aprendizados. Estagnações. Enfim... tudo deve passar por um pente fino, uma análise metódica e criteriosa. Ainda que doa. Ainda que faça sofrer. Ainda que nos faça submergir às profundezas do inconsciente.

Nesse momento, então, temos a oportunidade, quem sabe, de adquirir uma compreensão mais clara do ponto de intersecção que existe entre a nossa história e a história do menino de Nazaré. Porque, mesmo sendo o Filho de Deus, ele não foi eximido da existência humana.

Sofreu. Sorriu. Chorou. Se angustiou. Foi questionado. Insultado. Desqualificado. Humilhado. Perseguido. ... Durante sua breve passagem por esse mundo. Sua trajetória esteve longe de ser um “mar de rosas”. Ao contrário, foram mais espinhos do que flores, como é a vida de qualquer mortal. Como é a nossa.

Daí a importância de se pensar a respeito. Essa consciência promove um deslocamento fundamental para o ser humano, na medida em que desconstrói tantas idealizações, esterotipizações, vaidades, que não condizem com a realidade. Ora, o que é ser especial? O que é ser importante? Onde essas perspectivas se encaixam de fato?

Pois é, ninguém disse que a vida seria uma odisseia. Nessa missão de atravessar os dias entre aventuras e desventuras, o ser humano vive uma eterna metamorfose de si mesmo, seja do ponto de vista biológico, intelectual e/ou espiritual. Ele nunca está pronto. Nunca está completo. Não importa quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Há sempre mais por fazer, por aprender, por agregar, por descobrir, por ser.

É assim que vamos descobrindo que o Natal não se resume a uma data no calendário, a um dia específico no ano, ele é um estado de espírito. A partir dele é que se descortina a nossa essência, através de nossas crenças, valores, virtudes, emoções e sentimentos.

Por isso, não estão nas árvores, nos enfeites, nos presentes, nas ceias, a verdade do Natal. Não, ela está no pessoal, no intransferível, no silêncio, na prece, no fundo da alma. Na mais completa imaterialidade subjetiva que nos permite ver o essencial da vida continuamente. Por isso, alguns precisam comemorá-lo ano após ano e a outros basta, apenas, externá-lo genuinamente, porque sabem que o Natal não expira.

Verdade seja dita, John Lennon tinha razão quando manifestou que “Vivemos num mundo onde nos escondemos para fazer amor, enquanto a violência é praticada em plena luz do dia”. Talvez seja hora de começar a olhar para dentro, para fora, em todas as direções, em todos os sentidos.

Precisamos romper paradigmas. Mudar de opiniões. Reformular ideias. (Re) visitar lugares. Ver as pessoas. Acrescentar virtudes. Suprimir defeitos. ... Afinal, se reposicionar humanitariamente no mundo, não é tarefa para o Papai Noel e seus assistentes, é para cada um de nós.

Entretanto, diante da realidade que nos cerca, para que isso seja realmente possível “É preciso amar as pessoas e usar as coisas e não, amar as coisas e usar as pessoas” (Cecília Meireles – poetisa brasileira). Só assim, poderemos nos dar o direito de expressar, sem qualquer sombra de dúvida, que há um Feliz Natal, pulsando por aí.  

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

A Bondade em tempos Pós-Modernos


A Bondade em tempos Pós-Modernos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A quatro dias para o Natal é sim, oportuno celebrar o Dia Mundial da Bondade. Pois é, essa data comemorativa existe. Foi estabelecida em 1998, pelo Movimento Mundial da Bondade, o qual, na verdade, é uma coalizão de Organizações Não-Governamentais (ONGs) voltadas para o desenvolvimento da bondade nas nações. Isso significa uma compreensão global de que as boas ações realizadas nas comunidades, destacam o poder construtivo e transformador da bondade para o bem comum. De modo que a gentileza, um dos elementos fundamentais da condição humana, é o elo de ligação entre raças, religiões, políticas, gêneros e lugares.

E em tempos tão adversos, tão caóticos, tão instáveis, enaltecer a bondade se torna tão importante quanto desafiador. Afinal de contas, valores e princípios humanos andam meio distorcidos, alterados e desconstruídos, por parte de muita gente. Como se o fato de ser bom transmitisse a impressão de fraqueza ou vulnerabilidade e, de certo modo, uma incapacidade de sobrevivência nesse mundo, onde o poder, a ganância a cobiça, a deslealdade tentam exaustivamente se firmar. Mas, apesar de todos os pesares, mexe daqui, vira dali, e as conjunturas acabam resgatando a bondade de uma maneira ou de outra, dando-lhe vieses de visibilidade que permitem a compreensão de novas perspectivas e expectativas para a existência humana.

É o caso da Pandemia, por exemplo. Lançando um olhar microscópico sobre o cotidiano, para as pequenas ações, descobre-se um mundo onde a bondade flui ininterruptamente. Do imaterial ao material é possível perceber o ser humano indo ao encontro do seu semelhante para colaborar, para auxiliar, para acalentar, para minimizar as perdas e os sofrimentos. Quase que um movimento de formiguinhas. Tendo em vista de que a fome não espera, a necessidade não espera, a dor não espera, a dificuldade não espera, ... é preciso agir, fazer, criar, inventar, colocar a mão na massa em prol de quem precisa. E cada um, na sua possibilidade, representa um tijolinho nessa construção, nesse imenso mosaico de fraternidade, de compaixão, de empatia.

Por isso, vez por outra, a indignação me consome. Porque o exercício da bondade não se mede por balança ou fita métrica. Cada pouquinho, cada mínimo gesto, cada manifestação, tem um valor inestimável. O que não vale é o descaso, a negligência, o não fazer absolutamente nada, seja por vontade ou por influência dos outros. Então, quando dizem que “o Brasil está quebrado”, por exemplo, que “o país não tem dinheiro”, isso me incomoda muito, porque não é verdade. Recursos existem sim, em profusão, mas são muito mal-empregados. Gastos com supérfluos desnecessários, com corrupção a qualquer hora e em todo lugar, com obras que nunca ficam prontas e consomem valores cada vez mais escandalosos, com propagandas enganosas e inúteis, ...

Aliás, qual o sentido da propaganda? O governo é pago, e muito bem pago, para cumprir seu dever. Ele não faz porque é bom ou porque pensou que devia fazer. Ele faz porque assumiu não só um compromisso constitucional; mas, também, um vasto compromisso de campanha. Propaganda, então, é pura vaidade, é publicidade de si mesmo, é autopromoção, e isso é tão pequeno, tão deselegante, tão constrangedor, tão inapropriado. Precisar se visibilizar para os outros é como se seus próprios esforços e ações fossem insuficientes para lhe apresentar e demonstrar a que veio a esse mundo.

Não é à toa que o evangelho cristão, no livro de São Mateus, prega que “quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, de modo que, a tua esmola fique oculta”. Porque a prática da bondade não deixa de ser uma forma de oração. Quanto mais silenciosa e reservada, mais forte são os laços que se estabelecem com o sagrado. A bondade reside na convicção. A bondade é voluntária, é uma expressão genuína que brota da consciência e da sensibilidade humana. Você é bom porque crê incondicionalmente na bondade, entende que através dela é possível consolidar um mundo mais justo, mais humano, mais solidário, mais igualitário e equitativo. Pois como dizia o Profeta Gentileza1, “Gentileza gera gentileza”.

Quando criança ouvia meu avô paterno dizer que “Ninguém é tão pobre que não possa dar e nem tão rico que não possa receber”, porque a bondade, na expressão da gentileza, cabe em todo lugar. Se engana quem pensa que a bondade possa ser definida e regulamentada por essa ou aquela situação. Não. Se o ser humano é plural, diverso, a bondade também é. Pois, como diz o poema, “Não sei... se a vida é curta / ou longa demais para nós. / Mas sei que nada do que vivemos / tem sentido, / se não tocarmos o coração das pessoas. / Muitas vezes basta ser: / colo que acolhe, / braço que envolve, / palavra que conforta, / silêncio que respeita, / alegria que contagia, / lágrima que corre, / olhar que sacia, / amor que promove. [...]” (autor desconhecido, poema apócrifo 2).

O ser humano se equivoca ao querer demais, a depositar suas expectativas muito além das suas reais demandas, e isso o afasta da bondade. Faz com que ele fique olhando fixamente para si mesmo e esqueça dos outros, do mundo, lançando-se a uma bolha de individualismo que acaba por distorcer a sua própria individualidade. Então, ele se perde nos seus devaneios, nas suas loucuras, nas suas ambições, na sua avareza. Ele passa a correr atrás de algo que não sabe o que é, ou por que razão deseja, ou se vale a pena, e acaba não chegando a lugar algum. Rubem Alves dizia que “Quem é movido pela avareza não tem olhos nem coração para sentir o sofrimento dos outros, porque estes lhe são apenas um valor econômico. A avareza tira a capacidade de compaixão. E, com isso, nossa condição de seres humanos”. 

Na verdade, colocar em prática a bondade não é difícil, não é coisa de outro mundo. “O primeiro passo para o bem é não fazer o mal” (Jean-Jacques Rousseau). Talvez, o que se chama dificuldade, nesse caso, seja exercitar a capacidade de olhar para dentro da própria alma, no sentido de descobrir onde estão guardadas as virtudes, os sentimentos e as emoções plenas de dignidade e afeto. Parar em meio ao frenesi caótico do mundo, para silenciar e ouvir, permitindo que a bondade se desfie em gentilezas e nos envolva na delicadeza de um encantamento, quase infantil.

Então, nesse Natal aproveite para se reconectar com a bondade. Afinal, “Muitas vezes, as pessoas são egocêntricas, ilógicas e insensatas. Perdoe-as, assim mesmo. Se você é gentil, as pessoas podem acusá-lo de egoísta, interesseiro. Seja gentil assim mesmo. Se você é um vencedor, terá alguns falsos amigos e inimigos verdadeiros. Vença, assim mesmo. Se você é honesto e franco, as pessoas podem enganá-lo. Seja honesto e franco, assim mesmo. Se você tem paz e é feliz, as pessoas podem sentir inveja. Seja feliz, assim mesmo. O bem que você faz hoje pode ser esquecido amanhã. Faça o bem, mesmo assim. Dê ao mundo o melhor de você, mas isso pode nunca ser o bastante. Dê o melhor de você, assim mesmo. Veja você, que no final das contas é entre você e Deus. Nunca foi entre você e os outros” (Madre Teresa de Calcutá).

domingo, 19 de dezembro de 2021

A Economia explica ..., mas não explica tudo!


A Economia explica ..., mas não explica tudo!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma das manchetes desse domingo traz “Número de trabalhadores subocupados cresce e trava consumo no Brasil” 1. Mas, qual a surpresa? Essa mania de querer que o fim do filme seja diferente, ou o final do livro, ou da novela, já deu. A realidade é o que é, meus caros. E como diz um velho ditado, “a gente colhe o que planta”, apesar de que, de vez em quando, a colheita é surpreendida por razões alheias à nossa vontade.

Bem, para melhor entender o assunto, os “trabalhadores subocupados são os profissionais que trabalham menos de 40 horas semanais e gostariam de atuar por mais tempo, conforme a definição do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). E esse tipo de trabalhador está em crescimento no país”, ou seja, “no terceiro trimestre de 2021, o número de subocupados chegou a 7,771 milhões no país. Esse resultado significa alta de 9,4% frente a igual trimestre de 2019 (7,102 milhões), no pré-pandemia. Em termos absolutos isso quer dizer que, ao longo de dois anos, o grupo teve acréscimo de 669 mil pessoas” 2.

Por mais que esse seja apenas um aspecto dentro dos milhares que constituem a Economia e sua relação com o mercado de trabalho, ele escancara de maneira irrefutável os erros e as incapacidades da atual gestão. Nem antes e nem depois do início da Pandemia, o Brasil se mostrou consistente e responsável diante das demandas socioeconômicas. O país patinou sobre os problemas e não saiu do lugar, não apresentou resultados mínimos satisfatórios e quis, a todo custo, impor ao longo da Pandemia uma retomada das atividades econômicas totalmente mal planejada e desorganizada. Daí mais um dado pífio para somar ao desastre anunciado.

É incrível, como o Brasil não enxerga nem dentro e nem fora dos seus limites geográficos! Realmente, essa gestão vive em uma realidade paralela, em um mundo à parte. Nós não somos autossuficientes para agir dessa maneira imprevidente, irresponsável. A suficiência e a eficiência brasileira dependem dos arranjos estabelecidos de acordo com o cenário global. Por isso é necessária uma análise contínua dos panoramas de nossos importadores e exportadores para traçarmos os planejamentos internos. O que advém positivamente desses contextos é que poderia resultar na mitigação dos impactos socioeconômicos, tais como redução nos níveis de desemprego, desalento, subocupação, informalidade etc.  

Mas, considerando que “a economia brasileira deverá crescer 5% em 2021, mas em 2022 há riscos de forte desaceleração e o PIB do país deve aumentar apenas 1,4%, segundo previsões da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)”3, as perspectivas de melhoria se esvaem como fumaça. Mesmo porque, não se trata só dos desacertos, equívocos e tropeços das políticas econômicas nacionais. Quando se acreditava no arrefecimento da Pandemia em razão da imunização, a variante Ômicron surgiu e tensionou as expectativas no contexto mundial, sinalizando uma condição crítica para a dinâmica cotidiana, dado o seu alto poder de disseminação e contaminação.

À revelia de um mundo acostumado a viver dentro de um certo parâmetro socioeconômico, ao longo de décadas, a conjuntura atual aponta para uma mudança de direção rumo ao empobrecimento generalizado. Ainda que isso afete mais alguns do que outros, em razão dos já existentes abismos profundos das desigualdades, todos irão sofrer impactos negativos nesse sentido. E será preciso unir forças e esforços para atenuar os efeitos desse processo.

Algo que já se iniciou pelo entendimento de que quanto mais heterogênea é a imunização no planeta, mais riscos de cronificação da Pandemia e surgimento de novas variantes do vírus Sars-Cov-2 existem. De modo que o desequilíbrio de poder econômico, tão arraigadamente defendido por muitos, nesse caso, precisa ser repensado rapidamente, ou a humanidade arrastará a Pandemia por tempo indeterminado, ocasionando consequências socioeconômicas imprevisíveis e potencialmente devastadoras.

As aparências enganam. Durante séculos a humanidade vem se permitindo viver e governar sem pesar sobre a balança os prós e os contras de suas decisões. Vem postergando o futuro ou estabelecendo subterfúgios, em formas de placebos inócuos, para lidar com os problemas cristalizados pela ação do tempo. Como se “mitigar” fosse a palavra de ordem capaz de substituir satisfatoriamente o “resolver”.  Por isso, a vida veio seguindo tão temerariamente cambaleante, dando passos à frente e atrás sem saber exatamente onde firmava os pés.

Agora, a conjuntura atual, impôs um certo tipo de reset a essa situação, ou seja,  “Nada do que foi será / De novo do jeito que já foi um dia [...]” 4. Em meio ao Sars-COV-2 e suas variantes, eis que surge o H3N2 (o vírus da Influenza), se espalhando pelo Brasil como rastilho de pólvora. Gente doente. Gente contaminando gente por ande passa. Hospitais e serviços de saúde lotados. Pouca vacina para atender a demanda súbita. ...

Ah, e não se pode esquecer das chuvas torrenciais que afetaram regiões de Minas Gerais e Bahia, nos últimos dias. Gente desabrigada. Gente que perdeu o pouco que tinha. Cidades tomadas pelas águas. Redes de água e esgoto destruídas. Rede elétrica comprometida. ...  A pergunta que não quer calar, então, é: qual será a próxima surpresa? Um novo vírus? Uma nova intempérie? Ou somente mais um erro de cálculo da Economia?  

Talvez, seja hora de colocar a bola no chão, raciocinar calmamente sobre os fatos. Interromper o curso desse imbróglio gratuito que vem girando como uma bola de neve, avassalador, arrastando tudo o que há pelo caminho. Nunca presenciei um final de ano tão chocho, tão baixo-astral, tão infeliz. A motivação, o entusiasmo, a alegria, que sempre foram a marca registrada desse período anual, parece que foram reduzidos à pó frente a tantas adversidades. As pessoas foram tão massacradas pelas contingências da vida que não há realmente o que comemorar, o que celebrar em relação ao amanhã.  

Albert Einstein dizia que “Não se deve ir atrás de objetivos fáceis, é preciso buscar o que só pode ser alcançado por meio dos maiores esforços” e o momento atual nos pede exatamente isso. Na verdade, o que nos falta é a consciência pulsante para que “Não confundamos esperança do verbo esperançar com esperança do verbo esperar. Violência? O que posso fazer? Espero que termine... Desemprego? O que posso fazer? Espero que resolvam... Fome? O que posso fazer? Espero que impeçam... Corrupção? O que posso fazer? Espero que liquidem... Isso não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com os outros para fazer de outro modo” (Mario Sergio Cortella – filósofo, escritor e professor brasileiro). E aí, entendeu?!

sábado, 18 de dezembro de 2021

A contemporaneidade e o extremismo


A contemporaneidade e o extremismo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muita gente espantada com a recente notícia de que a “Polícia Civil e MPRJ prenderam 4 em operação em 7 estados contra suspeitos de apologia ao nazismo” 1. Bem, como dizem por aí, “velhos hábitos nunca morrem” e a história brasileira tem sim, nas suas páginas, registros importantes a respeito de uma certa “simpatia” as ideologias que sustentam a extrema-direita e o extremismo. Afinal de contas, elas encontraram nas raízes do colonialismo, o qual o Brasil foi submetido durante séculos, elementos em comum. Xenofobia. Racismo. Sexismo. Fundamentalismo religioso. Populismo. Conservadorismo. Autoritarismo. ...

De modo que, o fato do país ter se colocado ao lado dos Aliados – Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos -, na Segunda Guerra Mundial, não significa que seus pontos de vista foram plenamente homogeneizados nesse contexto. Infelizmente, como em outros lugares, muita brasa foi encoberta por cinzas e esse ideário permaneceu aguardando o momento de reemergir, apesar de todos os pesares advindos da experiência brutal da grande guerra.

E o que poderia ser mais oportuno para reacender a chama do que o próprio contexto da contemporaneidade. O predomínio da efemeridade, da desconstrução das fronteiras e dos protocolos, estabeleceu um relativismo descomunal sobre a configuração social, ao ponto de as pessoas perderem a sua capacidade de vínculo, diante de um mundo regido pela imprevisibilidade. Isso significa que elas estão desesperançadas; sobretudo, em relação ao futuro. Aquela velha ideia, por exemplo, de que o estudo era uma garantia de longo prazo se esvaiu como fumaça; pois, foi confrontada diretamente pelos altos índices de desemprego e empobrecimento.

Esse cenário, então, se torna um terreno fértil para a disseminação dessas ideologias extremistas, na medida em que funcionam como pseudoarautos de esperança em meio ao caos. Ela chega para criar a ilusão capaz de transformar medíocres em gigantes, frustrados em heróis, inúteis em valentes, incapazes em gênios. Ela traz os tão sonhados “15 minutos de fama” prometidos pela Pós-Modernidade.

Sim, porque não passa disso. A tendência natural do extremismo é se perder em si mesmo, no frenesi de suas próprias agitações. E tudo isso acontece porque ele manipula os desejos, seduz, espetaculariza o cotidiano, inverte e ressignifica os valores, as crenças, os princípios. No fim das contas, pessoas e coisas acabam sendo mercadificadas, ou seja, tornam-se mercadorias à disposição nas prateleiras dos interesses. Eles, então, vão se revezando e se perpetuando ao longo do tempo, sem, na verdade, se estabelecerem ampla e definitivamente no poder.

Mesmo assim, isso não é de se menosprezar. Embora, pontuais e eventuais, as manifestações extremistas têm sim, potencial desestabilizador na sociedade. Eles não medem esforços e violência para constituírem a sua visibilidade, porque fazem questão de desconsiderar e não reconhecer a importância dialógica nos sistemas de poder e governança. A manutenção das suas ideologias se dá pela imposição, pela força, pela arbitrariedade, pela construção da instabilidade e do medo.

E depois de duas Grandes Guerras, de um mundo bipolarizado pela Guerra Fria, do 11 de Setembro e de tantos outros conflitos bélicos de proporção impactante, quando se olha para o mundo em pleno século XXI, não é difícil perceber que esse tipo de processo é totalmente antiproducente. O extremismo não leva nada a lugar algum. Ele se alimenta de si mesmo, de modo que não transforma, não evolui, não agrega o novo. Ele é a materialização da estagnação, da vaidade ensandecida, da exacerbação individualista. Como dizia Franklin Delano Roosevelt, “Um radical é um homem com os pés firmemente plantados no ar”.

Além disso, tendo em vista os pilares mercantis e diplomáticos sobre os quais o mundo está apoiado, globalizada e globalizante, a Terra convive sob a dinâmica das conexões de interesses e demandas, os quais são favorecidos, principalmente, pelos arranjos democráticos existentes. Os extremismos, sejam eles de que natureza forem, apontam, portanto, para perdas significativas nesse cenário; pois, eles se colocam em posições de desequilíbrio e acirram as fronteiras das desigualdades, gerando o isolamento, mesmo que parcial, das nações com esse perfil.

Entretanto, como é possível perceber, as células extremistas estão por aí se multiplicando. Simplesmente, porque “em quase todos os casos de colapso democrático que nós estudamos, autoritários potenciais – de Franco, Hitler, Mussolini na Europa entre guerras a Marcos, Castro e Pinochet, durante a Guerra Fria, e Putin, Chávez e Erdogan mais recentemente – justificaram a sua consolidação de poder rotulando os oponentes como uma ameaça à sua existência” (Steven Levitsky – professor de ciência política e escritor norte-americano).

Afinal, “uma das grandes ironias de como as democracias morrem é que a própria defesa da democracia é muitas vezes usada como pretexto para a sua subversão. Aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança – guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas – para justificar medidas antidemocráticas”; pois, “os cidadãos muitas vezes demoram a compreender que sua democracia está sendo desmantelada – mesmo que isso esteja acontecendo bem debaixo do seu nariz” (Steven Levitsky).

Como escreveu o escritor e jornalista uruguaio, Eduardo Galeano, “No manicômio global, entre um senhor que julga ser Maomé e outro que acredita ser Buffalo Bill, entre o terrorismo dos atentados e o terrorismo da guerra, a violência está nos arruinando”. A expansão do extremismo demonstra, então, uma reafirmação absurda dessa ideia, ou seja, “Somos porque ganhamos. Se perdemos, deixamos de ser”; assim, “na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre” (Eduardo Galeano). Perdem-se, portanto, legiões de incautos, de crédulos adoradores de promessas vãs, gente rendida pelas artimanhas da própria ignorância, seja ela voluntária ou não.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Espelho da alma...


Espelho da alma...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dizem por aí que os olhos são o espelho da alma. Não creio que seja somente pela expressão de emoções e sentimentos que emergem da retina, porque isso me parece insuficiente para explicar com precisão a linguagem do olhar. Observando aqui e ali a partir do trânsito frenético dos passantes, da maneira como utilizam sua habilidade visual no contato uns com os outros é possível sim, extrair algumas impressões; porém, nada definitivo e completo a respeito.

Essa história de “espelho da alma” é realmente algo muito mais profundo. Não se trata da clareza e da objetividade da expressão reflexiva; mas, da decodificação dos elementos da alma pela junção ao que se vê, traduzindo na manifestação prática dos gestos, dos comportamentos, das ações. Esses olhos sintetizam de maneira única e, particularmente, especial aquela determinada existência humana.

Já colocou reparo nos olhos de John Lennon? Da Santa Dulce dos pobres? De Mahatma Gandhi? De Herbert de Souza, o “Betinho”? Da Madre Teresa de Calcutá? De Martin Luther King? Do Dalai Lama? Da médica Zilda Arns? De Dom Hélder Câmara? ... Embora essas sejam personalidades conhecidas nacional e internacionalmente, a grande verdade é que os “olhos espelhos da alma” não são privilégio ou regalia de uns e outros. Quantos anônimos, desconhecidos, são dotados desses olhos, hein?

Por isso, pode parecer difícil e complicado de entender o que isso significa; sobretudo, em tempos contemporâneos tão caóticos, tão fugazes, tão superficiais. Ora, tem havido um movimento de desaprendizagem contemplativa, aquele velho e bom hábito de olhar “olhos nos olhos”, de observar com atenção aquele silêncio que diz tanto, em forma de luz saída do campo de visão. O ser humano está cada vez mais apressado, mais ansioso, mais desfocado e distante do essencial. Por isso olha, mas não vê, não enxerga, não percebe.

Para se ter olhos que sejam espelhos da alma é fundamental aguçar não apenas um sentido; mas, todos os sentidos ao mesmo tempo, dissecando a vida camada por camada, extraindo dela o que há de melhor. O que me faz pensar que, talvez, sejam eles a chave mestra para abrir as portas da nossa evolução, do nosso conhecimento. Sim, porque há nesses olhos tanto despojamento que eles são livres para nos transportar para outras dimensões, outras perspectivas, outras consciências.

De repente, se percebe que esses olhos imprimem uma identidade. Quem tem “olhos espelhos da alma” não sofrem rompantes, não mudam da água para o vinho, são sempre os mesmos, porque já sabem o que esperam da vida e o que ela espera deles. “Olhos espelhos da alma” têm um quê de missão, de compromisso, de tarefa intransferível; mas, sem todo aquele peso da obrigação, do dever, que retira o brilho e a naturalidade da existência humana. O que tem de ser flui, brota, exala sem esforço, pelo simples prazer de ser. Pois é, eles estão presentes naquele contingente que já se sabe ser maioria no mundo.  Os bons, é claro!

Clarice Lispector escreveu: “Quem eu sou, você só vai perceber quando olhar nos meus olhos, ou melhor, além deles”, porque “Quando a gente abre os olhos, abrem-se as janelas do corpo, e o mundo aparece refletido dentro da gente” (Rubem Alves – psicanalista, educador e teólogo brasileiro). É verdade. Muitas vezes nos surpreendemos negativamente uns com os outros, porque negligenciamos o olhar. Antes dos resultados práticos das ações, aqueles olhos poderiam ter nos dito exatamente que tipo de gente havia ali.

Isso não quer dizer que a humanidade deva se deixar guiar por quaisquer esterotipizações ou idealizações perfeccionistas, porque o ser humano é incompleto, é falível, é controverso. Mas, quando se trata de entender a significância da expressão “olhos espelhos da alma” não há erro, porque se trata da essência e essa é o que é. Daí a importância desse olhar. Reside nisso a oportunidade em se errar menos, em se frustrar menos, em se decepcionar menos, em sofrer menos.

Como escreveu José Saramago, “Fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca”, ou seja, “Todas as nossas almas estão escritas nos nossos olhos” (Edmond Rostand – poeta e dramaturgo francês). Diante disso, queiramos ou não aceitar, o fato é que “Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende da intenção da descoberta do nosso olhar” (Mia Couto – “E se Obama fosse Africano? ”). Por isso, olhe mais, olhe sempre, olhe com atenção, olhe com isenção, ... olhe.


quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Sob a ameaça da poluição invisível


Sob a ameaça da poluição invisível

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em tempos de tanto negacionismo, de tanto descaso com a Ciência, as respostas contra tudo isso parecem mais e mais contundentes e irrefutáveis, obrigando as pessoas a reverem seus pontos de vista. Foi pensando a respeito desse movimento em curso que decidi propor uma reflexão, tomando como ponto de partida a notícia publicada ontem, pelos veículos de informação e comunicação, a respeito da contaminação por mercúrio na região Amazônica brasileira.

Como já era esperado, a recorrente e extensiva garimpagem ilegal no rio Madeira vem deixando, há mais de uma década, um rastro de contaminação por mercúrio no local. “Um laudo da Polícia Federal atestou que ribeirinhos estão consumindo água e/ou alimentos contaminados e concentrando o metal pesado nos seus tecidos”, o que significa que há “contaminação por mercúrio até 3 vezes superior ao limite máximo considerado como ‘admissível’ pela Organização Mundial da Saúde (OMS)” 1.

Bem, a questão em torno desses resultados extrapola a si mesma, porque não se resume aos prejuízos diretos à saúde pública. Não, ela levanta outras camadas de análise e reflexão que, quase sempre, passam despercebidas pela sociedade e são responsáveis por explicar uma série de acontecimentos marcantes no cotidiano de diferentes países.

Quem assistiu ao filme “Erin Brockovich – Uma mulher de talento” (2000) 2, deve se lembrar de que a história foi baseada em fatos reais, envolvendo a descoberta de vários casos de contaminação de água por cromo hexavalente (Cromo VI), o que se transformou em um dos mais importantes litígios indenizatórios dos EUA. A empresa, que usava o referido metal no seu processo industrial, omitiu a informação a respeito dessa prática aos moradores da cidade onde estava localizada e centenas deles não só ficaram severamente doentes; mas, morreram sem assistência.

Mais recentemente, outra produção do cinema resgatou o velho problema mundial da contaminação por mercúrio. “Minamata” (2020) 3, também baseado em fatos reais, conta a história de como o mundo ficou sabendo dos efeitos do mercúrio, na baía de Minamata, no Japão. Um problema que se desenvolvia desde 1930, quando uma indústria começou a lançar dejetos contaminados por esse metal pesado no mar.

Como a maioria das pessoas só leva em consideração à poluição quando ela é visível e facilmente perceptível no ambiente, tais como embalagens, restos de alimentos, resíduos industriais, o pior passa despercebido. O verdadeiro perigo está na poluição invisível, aquela que transita pela água, pelo ar, pelo solo, sem que ninguém detecte a sua presença até alcançar os organismos vivos e potencializar prejuízos incalculáveis. Dessa forma, como exemplificado através desses filmes, o hábito recorrente de tratar sintomas, muitas vezes comuns a diversas patologias, cria uma abstenção em torno de investigações mais aprofundadas que sejam realmente capazes de apontar a verdadeira causa das doenças.

Isso é muito sério porque permite que o indivíduo permaneça em contato com o gatilho da doença, retroalimentando o processo patológico, criando um ciclo de agravamento que pode, inclusive, levar a óbito. Não é à toa, que no campo da Patologia, especialidade médica dedicada ao estudo das doenças e alterações provocadas por estas em nível macro e microscópico no organismo, há uma subárea dedicada ao estudo das doenças causadas pelos contaminantes e/ou poluentes ambientais, denominada Patologia Ambiental. Aliás, é ela quem traz, por exemplo, as respostas em torno de situações envolvendo metais pesados, tais como o chumbo (Pb), o mercúrio (Hg), o cromo (Cr), o cádmio (Cd), o níquel (Ni).

Porém, contrariando a importância e a necessidade de elucidação completa dos fatos, na maioria das vezes o que acontece é que uma análise voltada para a Patologia Ambiental não é realizada. Seja por falta de interesse ou conhecimento do paciente ou, até mesmo, do profissional de saúde. Seja pela ausência de médicos legistas ou laboratórios especializados no assunto. Seja por eventuais custos desse tipo de procedimento. Enfim, são muitas as razões que podem fornecer algum tipo de explicação a respeito dessa negligência.

O fato é que na rotina do cotidiano as ocorrências médicas acabam tratadas na perspectiva dos sintomas mais visíveis, mais comuns, mais frequentes, sem responder objetivamente o que levou ao surgimento daquele quadro específico.  No caso do mercúrio, por exemplo, os sintomas agudos confundem pela semelhança com diversas causas, pois se referem a falta de ar, febre e calafrios, tosse, náusea, vômito, diarreia, dor de cabeça, fraqueza, visão embaçada.

De modo que correm o risco de serem tratadas de maneira paliativa e sem qualquer contenção de contato com o agente causador, propiciando o chamado efeito biocumulativo. Isso significa que as quantidades do contaminante passam a acumular nos tecidos e órgãos de maneira indiscriminada e contínua sem que haja a possibilidade de metabolização pelo organismo, provocando efeitos nocivos e potencialmente letais. Nas contaminações por mercúrio, isso representa a manifestação de alterações graves no sistema nervoso central, rins e pulmões.

O desconhecimento a respeito conduz a uma situação que não há melhora dos sintomas clínicos. Muito pelo contrário, eles só se agravam. Porque as pessoas estão expostas continuamente ao agente poluidor, através das mais diferentes vias de contaminação. Então, elas acabam sendo tratadas de doenças, as quais elas não têm, porque o diagnóstico se deu de maneira incorreta, imprecisa e/ou inconsistente. Tanto os serviços de saúde pública quanto privada, então, acabam gastando recursos em tratamentos erráticos e não cumprindo o seu papel efetivo.

Nesse caso, por exemplo, esses ribeirinhos dependem da água dos rios e da Floresta Amazônica para o desenvolvimento de suas atividades laborais e de sobrevivência; mas, diante da gravidade da contaminação é fundamental e urgente a criação de alternativas para atendê-los nas suas demandas. Dentro desse contexto, não basta romper o efeito biocumulativo, sem oferecer-lhes atendimento médico específico, a fim de tratar-lhes as sequelas e intercorrências já constituídas. Isso impõe, também, a necessidade de instituir uma rede de apoio, no que diz respeito a uma educação sanitária e ambiental, que se não for adequadamente contemplada pode não repercutir satisfatoriamente nos demais resultados esperados. Isso quer dizer que são muitos os vieses a serem considerados nesse tipo de situação.

Portanto, preste atenção: “Uma vez é acidente, duas é coincidência, e três é ação do inimigo” (Ian Fleming – escritor inglês). Isso explica que não é à toa que “A mais perigosa criação no mundo, em qualquer sociedade, é um homem sem nada a perder” (Malcom X – político norte-americano). Por trás das violações ao meio ambiente, que comprometem a sustentabilidade e o equilíbrio global, estão sim, inimigos que acreditam não terem nada a perder, porque têm aquilo que julgam ser essencial, o dinheiro, o poder. Eles se abstêm de pensar que “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências” (Pablo Neruda – Prêmio Nobel de Literatura de 1971) e por isso, levam a vida repetindo e perpetuando erros imperdoáveis e, muitas vezes, incorrigíveis. Infelizmente, inimigos não entendem que têm a própria vida a perder.