terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A chuva que chora...


A chuva que chora...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A natureza chora, em forma de chuva, a sua indignação diante de todas as investidas perversas e brutais que vem sofrendo. Mas, e nós, a sociedade brasileira? Será que ainda podemos continuar fingindo que não estamos entendendo o que está bem a luz da nossa retina? Penso que não. Não cabe mais apatia, nem descaso, nem postergação. É hora de arregaçar as mangas, de assumir o protagonismo em nome da própria sobrevivência; visto que, as catástrofes não são seletivas, não fazem discriminação deste ou daquele. É tudo junto e misturado. Quem assistiu ao filme “O impossível” (The impossible)1, de 2012, entende bem o que isso significa.

No caso específico das enchentes que são, no momento, a bola da vez, o significado do desmatamento para esse processo é incontestável. A retirada da cobertura vegetal, seja qual for o mecanismo – fogo, motosserra, machado, veneno, ... -, é determinante para a construção desse cenário devastador. Primeiro, porque não se trata de um acontecimento de natureza homogênea, na medida em que ela é impactada de maneira totalmente irregular. Portanto, a formação de chuvas acompanha essa heterogeneidade, a qual somada a outros fatores climáticos, condiciona a ocorrência de episódios fora da previsibilidade.

Segundo, porque as chuvas passam a não obter resistência no encontro com o solo, não há uma camada de proteção, uma barreira de contenção, o que amplia a intensidade com a qual ela golpeia a superfície e amplia a sua aceleração durante o deslocamento, carregando tudo o que há pela frente. De modo que grande parte do que as chuvas arrastam acaba dentro dos cursos d’água – nascentes, córregos, rios, ... -, tornando-os demasiadamente assoreados, ou seja, diminuindo a capacidade deles em reter o volume de água, causando transbordamentos; sobretudo, em casos de enchentes.

Por fim, o mau uso e ocupação do solo pelos seres humanos, representado pela expansão das fronteiras agrícolas e urbanoindustriais, não pode permanecer invisibilizado e desconsiderado nessa exacerbação de recorrência dos desastres ambientais. Há um visível estreitamento entre essas fronteiras em decorrência do desmatamento realizado de maneira insustentável e muito mal planejado. Estamos, portanto, perdendo vastas extensões de matas ciliares e demais organizações de cobertura vegetal, desconfigurando completamente os biomas nos quais elas estão inseridas e possibilitando o surgimento de uma nova ordem geográfica em total desequilíbrio.

Não, não adianta negar. Temos culpa por tudo o que está acontecendo. Enquanto prioriza a sua sobrevivência, o seu bem-estar, as suas demandas e desejos, a humanidade apaga da própria consciência o fato de que o planeta tem limites, tem uma organização própria. É um tal de desmatar aqui, alterar curso de rio ali, passar uma estrada acolá, ... sem pesar os prós e os contras, sem respeitar os estudos de impacto ambiental que fundamentam a legislação vigente, sem considerar os riscos e as inseguranças, sem pensar em nada. Ela simplesmente subjuga o meio ambiente à revelia de quaisquer consequências e desdobramentos. Ela se expõe de maneira desnecessária, pagando um preço alto demais, ou seja, com a própria vida.

Ano após ano, o perfil pluviométrico brasileiro tem, portanto, sofrido mudanças abruptas. As previsões para o verão, comumente chuvoso no hemisfério sul do planeta, têm se mostrado permeada de irregularidade, especialmente, nas regiões mais atingidas pelas ações antrópicas devastadoras. Há uma visível impossibilidade de continuarmos nos guiando por patamares estatísticos, porque eles estão sendo desconstruídos pelas conjunturas. Não é à toa, que as cidades estão sendo surpreendidas pela incapacidade de resistência da sua infraestrutura. Redes pluviométricas e de esgoto, barragens, reservatórios, pontes, vias urbanas e rurais, ... não há dimensionamento de engenharia que consiga antever e suportar as tragédias.

O mundo não é mais o mesmo. É isso que precisa ser compreendido de uma vez por todas. Não dá para ficar nesse destrói, reconstrói, destrói de novo, reconstrói de novo, ... ad aeternum. Porque não se trata somente de um processo material, de ter ou não recurso financeiro para fazer. É no componente subjetivo que reside o maior desafio. Seres humanos. Sua identidade. Suas crenças. Seus valores. Suas emoções. Seus sentimentos. Elementos muito singulares, muito particularizados, muito próprios, que não têm dia, não têm hora, para serem reconstituídos. Cada um sente de um jeito.

Por isso, em comum, apenas a certeza de que nada será como antes. Afinal, se alguns nessa vida são marcados a ferro, há milhares de outros que são marcados pela chuva, pelos ventos, pelos raios, pela fúria indomável da natureza. Quem vai dizer que não? Quem vai dizer que está acima das catástrofes, imune a isso ou aquilo? Quem vai? Nos últimos dias, olhando para as chuvas que assolaram regiões em Minas Gerais, Bahia, Goiás, Tocantins e Piauí, vi um pedaço do Brasil homogeneizado pelo imponderável. Pobres, ricos, desempregados, comerciantes, ... Gente de todas as idades, gêneros, credos, raças, anestesiada pela perplexidade, como se o jogo da vida tivesse zerado para elas, antes de oferecer-lhes quaisquer oportunidades.

Daí lembrei-me das seguintes palavras de Hannah Arendt, “Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-las e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para recomeçar” (A condição humana). Talvez, seja exatamente isso que a natureza esteja tentando nos relembrar através da sua ação avassaladora. Precisamos despertar do torpor que se reflete por tantas atitudes arraigadas e irrefletidas, em nome do próprio instinto de sobrevivência. Sim, precisamos. Sim, isso é urgente.