Enfim
2022!
Por
Alessandra Leles Rocha
Queiram ou não admitir, 2020 e
2021 ofereceram ao mundo um lastro de aprendizado e de conhecimento, o qual jamais
se poderia supor alcançar algum dia. Particularmente, não me congrego aos que
creditam todos os desafios enfrentados até aqui à Pandemia, porque vejo nela
uma ferramenta do inusitado para delimitar um marco de transformação humana, algo
que não pudesse ser questionado ou confrontado por ninguém. De modo que tudo aquilo
que a humanidade se esquivava de refletir, de analisar, de discutir, de
elaborar, foi colocado diante dos olhos de maneira incisiva e, de alguma forma,
duramente definitiva.
Então, chegamos em 2022 muito
diferentes porque fomos forjados ao longo desses dois últimos anos, ainda que a
nossa revelia, por essas experiências. Aquela ilusão de retornar ao ponto de
partida da “normalidade contemporânea”
se esvaiu. Nada será como antes, o que não significa que não possa ser bom,
produtivo, interessante, ... A questão é
que diante da reconstrução o esforço é sempre inevitável. Afinal, reconstruir é
dar forma a uma nova ordem existencial, com novos paradigmas, novas
prioridades, novas perspectivas, novas expectativas, novas relações. É se
despojar das velhas molduras, das velhas amarras, dos velhos casulos, para dar
vazão a um renascimento. Seria, simplesmente, metamorfosear.
Considerando os prognósticos dos
especialistas, 2022 será para o Brasil um ano particularmente difícil. Não só
pelos seus desarranjos e desorganizações no campo das gestões internas; mas,
pelo modo com o qual tudo isso tem repercutido negativamente para sua inserção no
cenário mundial. Os desdobramentos das desigualdades tendem a se tornar mais
acentuados, mais severos, impondo uma reflexão cada vez mais realista e responsável
em relação ao papel dos direitos humanos no equilíbrio da ordem e do
desenvolvimento social, contrapondo a ideia da polarização, da fragmentação e
da estratificação da sociedade, a qual veio se arrastando até aqui.
Não é à toa que basta uma breve
retrospectiva da atual gestão para entender que os obstáculos enfrentados, de
um jeito ou de outro, convergiram para o mesmo ponto, ou seja, os abismos sociais
do país. A ocorrência, portanto, da Pandemia só fez lançar luz sobre nossas
mazelas sociais crônicas e tóxicas. O imponderável nos obrigou a ver, o que por
consequência exigiu uma ação. De repente não foi mais possível desviar o
assunto, ou contemporizar, ou postergar. O Senhor das Horas não nos deixou
escolha, ele foi implacavelmente imediatista. Mesmo assim, quantas vidas
perdidas? Vidas humanas. Vidas animais. Vidas vegetais. Quantas ao longo de três
anos?
Pois é, o modo como o desmantelamento
da máquina pública, nos mais diferentes setores, a fim de atender aos
interesses de certos grupos dominantes e/ou influentes, não foi um mero equívoco.
Teve método. Teve objetivo. Infelizmente, resultaria, como a prática demonstrou,
em prejuízos incomensuráveis para as parcelas mais vulneráveis e desassistidas,
lançando-as aos braços da penúria e do morticínio. Haja vista as inúmeras tentativas
de invisibilizar a realidade escancarada pelos estudos estatísticos desenvolvidos
por importantes centros de pesquisa, incluindo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto do Homem e Meio Ambiente da
Amazônia (Imazon), o Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, dentre outros.
Mas, eis que apesar de todos
esses pesares, ainda em meio as eventuais surpresas que a COVID-19 possa vir apresentar
ao Brasil e ao mundo, a atmosfera desse primeiro dia do ano surpreende, de
algum modo, por certo ar de leveza, de esperança, de alegria, de frescor, de resistência.
Nos noticiários, as palavras não parecem mais presas ao ontem, sufocadas pela
incompreensão e pelo desalinho. Todos parecem ter enxergado, cada qual ao seu
modo, a beleza na queima de fogos desta madrugada. Seus olhos parecem ter
testemunhado, diante de cada explosão colorida, o aviso retumbante da chegada de
grandes e boas novidades. Como se no fundo de suas almas, soasse a canção “[...] Há um menino, há um moleque morando
sempre no meu coração / Toda vez que o adulto fraqueja ele vem para me dar a
mão” 1.
Afinal, como dizia William
Shakespeare, “Há mais mistérios entre o
céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”. Não somos mudados,
transformados, metamorfoseados, somente pelo o que está materializado no mundo,
visível diante de nossos olhos e demais sentidos. Na subjetividade das
conjunturas, dos acontecimentos, do dia a dia, há elementos terrivelmente
poderosos mergulhados nas entrelinhas; mas, que, sutilmente, dialogam com esse “menino”, esse “moleque”, que mora em nossos corações. Na verdade, elementos capazes
de ressignificar, de redefinir o curso da história.
Todo novo ciclo é, portanto, um
livro em branco; mesmo que, eventualmente, possa se abrir com alguns rascunhos,
alguns rabiscos, ele está pronto para ser escrito. A questão é que as palavras
não vêm só das mãos ou só do pensamento. Elas vêm, especialmente, da alma, daquilo
que sentimos, que experimentamos, que transcendemos. É da leveza, da sutileza
da observação, que somos capazes de traduzi-las e nos expressarmos diante da
vida. Como diz o Padre Fábio de Melo, “Deixa
partir o que não te pertence mais, deixa seguir o que não poderá voltar, deixa
morrer o que a vida já despediu... O que foi já não serve... é passado, e o
futuro ainda está do outro lado, e o presente é o presente que o tempo quer te
entregar”.
Então, nesse 2022, esteja atento
(a) o suficiente para ouvir o que emana desse “menino”, desse “moleque”,
que mora em seu coração, ou seja, “[...]
Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente,
consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”
(Carlos Drummond de Andrade – poema Receita de Ano Novo)2.
Afinal de contas, “Não existem sonhos impossíveis para aqueles que realmente acreditam
que o poder realizador reside no interior de cada ser humano. Sempre que alguém
descobre esse poder, algo antes considerado impossível, se torna realidade “
(Albert Einstein – físico alemão).
1 Bola de Meia,
Bola de Gude (Milton Nascimento / Fernando Brant) - https://www.youtube.com/watch?v=fIhyknTQvvc