Sob
a ameaça da poluição invisível
Por
Alessandra Leles Rocha
Em tempos de tanto negacionismo,
de tanto descaso com a Ciência, as respostas contra tudo isso parecem mais e
mais contundentes e irrefutáveis, obrigando as pessoas a reverem seus pontos de
vista. Foi pensando a respeito desse movimento em curso que decidi propor uma
reflexão, tomando como ponto de partida a notícia publicada ontem, pelos veículos
de informação e comunicação, a respeito da contaminação por mercúrio na região Amazônica
brasileira.
Como já era esperado, a
recorrente e extensiva garimpagem ilegal no rio Madeira vem deixando, há mais
de uma década, um rastro de contaminação por mercúrio no local. “Um laudo da Polícia Federal atestou que ribeirinhos
estão consumindo água e/ou alimentos contaminados e concentrando o metal pesado
nos seus tecidos”, o que significa que há “contaminação por mercúrio até 3 vezes superior ao limite máximo
considerado como ‘admissível’ pela Organização Mundial da Saúde (OMS)” 1.
Bem, a questão em torno desses
resultados extrapola a si mesma, porque não se resume aos prejuízos diretos à
saúde pública. Não, ela levanta outras camadas de análise e reflexão que, quase
sempre, passam despercebidas pela sociedade e são responsáveis por explicar uma
série de acontecimentos marcantes no cotidiano de diferentes países.
Quem assistiu ao filme “Erin Brockovich – Uma mulher de talento”
(2000) 2, deve se lembrar de que a história foi
baseada em fatos reais, envolvendo a descoberta de vários casos de contaminação
de água por cromo hexavalente (Cromo VI), o que se transformou em um dos mais
importantes litígios indenizatórios dos EUA. A empresa, que usava o referido
metal no seu processo industrial, omitiu a informação a respeito dessa prática aos
moradores da cidade onde estava localizada e centenas deles não só ficaram
severamente doentes; mas, morreram sem assistência.
Mais recentemente, outra produção
do cinema resgatou o velho problema mundial da contaminação por mercúrio. “Minamata” (2020) 3,
também baseado em fatos reais, conta a história de como o mundo ficou sabendo dos
efeitos do mercúrio, na baía de Minamata, no Japão. Um problema que se
desenvolvia desde 1930, quando uma indústria começou a lançar dejetos
contaminados por esse metal pesado no mar.
Como a maioria das pessoas só
leva em consideração à poluição quando ela é visível e facilmente perceptível no
ambiente, tais como embalagens, restos de alimentos, resíduos industriais, o
pior passa despercebido. O verdadeiro perigo está na poluição invisível, aquela
que transita pela água, pelo ar, pelo solo, sem que ninguém detecte a sua
presença até alcançar os organismos vivos e potencializar prejuízos incalculáveis.
Dessa forma, como exemplificado através desses filmes, o hábito recorrente de
tratar sintomas, muitas vezes comuns a diversas patologias, cria uma abstenção em
torno de investigações mais aprofundadas que sejam realmente capazes de apontar
a verdadeira causa das doenças.
Isso é muito sério porque permite
que o indivíduo permaneça em contato com o gatilho da doença, retroalimentando
o processo patológico, criando um ciclo de agravamento que pode, inclusive,
levar a óbito. Não é à toa, que no campo da Patologia, especialidade médica
dedicada ao estudo das doenças e alterações provocadas por estas em nível macro
e microscópico no organismo, há uma subárea dedicada ao estudo das doenças
causadas pelos contaminantes e/ou poluentes ambientais, denominada Patologia
Ambiental. Aliás, é ela quem traz, por exemplo, as respostas em torno de
situações envolvendo metais pesados, tais como o chumbo (Pb), o mercúrio (Hg), o
cromo (Cr), o cádmio (Cd), o níquel (Ni).
Porém, contrariando a importância
e a necessidade de elucidação completa dos fatos, na maioria das vezes o que
acontece é que uma análise voltada para a Patologia Ambiental não é realizada. Seja
por falta de interesse ou conhecimento do paciente ou, até mesmo, do
profissional de saúde. Seja pela ausência de médicos legistas ou laboratórios especializados
no assunto. Seja por eventuais custos desse tipo de procedimento. Enfim, são
muitas as razões que podem fornecer algum tipo de explicação a respeito dessa
negligência.
O fato é que na rotina do
cotidiano as ocorrências médicas acabam tratadas na perspectiva dos sintomas mais
visíveis, mais comuns, mais frequentes, sem responder objetivamente o que levou
ao surgimento daquele quadro específico. No caso do mercúrio, por exemplo, os sintomas
agudos confundem pela semelhança com diversas causas, pois se referem a falta
de ar, febre e calafrios, tosse, náusea, vômito, diarreia, dor de cabeça,
fraqueza, visão embaçada.
De modo que correm o risco de
serem tratadas de maneira paliativa e sem qualquer contenção de contato com o
agente causador, propiciando o chamado efeito biocumulativo. Isso significa que
as quantidades do contaminante passam a acumular nos tecidos e órgãos de
maneira indiscriminada e contínua sem que haja a possibilidade de metabolização
pelo organismo, provocando efeitos nocivos e potencialmente letais. Nas contaminações
por mercúrio, isso representa a manifestação de alterações graves no sistema
nervoso central, rins e pulmões.
O desconhecimento a respeito conduz
a uma situação que não há melhora dos sintomas clínicos. Muito pelo contrário,
eles só se agravam. Porque as pessoas estão expostas continuamente ao agente
poluidor, através das mais diferentes vias de contaminação. Então, elas acabam
sendo tratadas de doenças, as quais elas não têm, porque o diagnóstico se deu
de maneira incorreta, imprecisa e/ou inconsistente. Tanto os serviços de saúde
pública quanto privada, então, acabam gastando recursos em tratamentos
erráticos e não cumprindo o seu papel efetivo.
Nesse caso, por exemplo, esses
ribeirinhos dependem da água dos rios e da Floresta Amazônica para o
desenvolvimento de suas atividades laborais e de sobrevivência; mas, diante da
gravidade da contaminação é fundamental e urgente a criação de alternativas
para atendê-los nas suas demandas. Dentro desse contexto, não basta romper o
efeito biocumulativo, sem oferecer-lhes atendimento médico específico, a fim de
tratar-lhes as sequelas e intercorrências já constituídas. Isso impõe, também,
a necessidade de instituir uma rede de apoio, no que diz respeito a uma
educação sanitária e ambiental, que se não for adequadamente contemplada pode
não repercutir satisfatoriamente nos demais resultados esperados. Isso quer
dizer que são muitos os vieses a serem considerados nesse tipo de situação.
Portanto, preste atenção: “Uma vez é acidente, duas é coincidência, e três
é ação do inimigo” (Ian Fleming –
escritor inglês). Isso explica que não é à toa que “A mais perigosa criação no mundo, em qualquer sociedade, é um homem
sem nada a perder” (Malcom X – político norte-americano). Por trás das
violações ao meio ambiente, que comprometem a sustentabilidade e o equilíbrio global,
estão sim, inimigos que acreditam não terem nada a perder, porque têm aquilo
que julgam ser essencial, o dinheiro, o poder. Eles se abstêm de pensar que “Você é livre para fazer suas escolhas, mas
é prisioneiro das consequências” (Pablo Neruda – Prêmio Nobel de Literatura de
1971) e por isso, levam a vida repetindo e perpetuando erros imperdoáveis
e, muitas vezes, incorrigíveis. Infelizmente, inimigos não
entendem que têm a própria vida a perder.