quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Temos sim, que pensar a respeito...


Temos sim, que pensar a respeito...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não há o que questionar em relação ao papel da economia nas dinâmicas políticas das sociedades, principalmente, quando os impactos negativos oriundos dos maus processos de gestão afetam diretamente à vida da população, com destaque para as camadas menos favorecidas. Mas, para os governos de extrema-direita contemporâneos, isso pode representar mais significativamente o início do seu fim.

Ensimesmados na sua visão distorcida de sociedade, que bane sumariamente segmentos inteiros para privilegiar o topo da sua pirâmide elitista, a sua quase histérica defesa em favor das desigualdades sociais se mostra cada vez mais desalinhada com a sua própria sobrevivência política. É  o que se consegue extrair do texto publicado hoje pelo The New York Times 1.

Mas, me entristece saber que acaba sendo o mau desempenho da economia o fiel da balança das escolhas políticas pela população, porque há bem mais de “podre” nos “reinos” onde a extrema-direita tenta se reafirmar. Sim, as desigualdades não são erguidas apenas pelo sistema econômico, mas por valores, crenças e princípios que estabelecem apartações cruéis e perversas entre os seres humanos. No entanto, poucos dão a elas a atenção necessária o que acaba favorecendo o crescimento fortalecido de suas raízes ao longo do tempo.

Acontece que tem se estabelecido um fenômeno social bastante curioso que diz respeito a uma dificuldade de tratar os assuntos cotidianos com a clareza e objetividade que lhes são pertinentes. Os fatos não são denominados corretamente. Tudo parece transitar em uma superficialidade irritante que impede de pensar e analisar a vida com a profundidade devida, deixando de ir ao cerne gerador dos problemas a fim de efetivamente resolvê-los.

Ora, no caso brasileiro, por exemplo, o último pleito eleitoral deu vitória à extrema-direita. Nem adianta dizer que não sabia, que não estava claro, que não é bem assim ... porque isso só faz demonstrar o grau de desinformação que a sociedade se permite no ato das suas escolhas. Nossa ignorância, no sentido da total ausência de conhecimento sobre assuntos fundamentais, é cada vez mais assustadora e tem sim, um alto grau de voluntariedade.  

Afinal, saber exatamente o que sustentam as propostas desse ou daquele cidadão é essencial na medida em que essa corrente de pensamentos será decisiva na construção dos planos e políticas que afetarão as vidas de milhares de pessoas durante, pelo menos, 4 anos. Mas, por aqui, ainda se acredita que as tais “promessas de campanha” surgem do acaso, ou de uma pseudo boa vontade altruísta, ou de sugestões colhidas aqui e ali, enfim... Então, ninguém se preocupa em dissecar os discursos e as narrativas. Engole-se “o caldo de palavras” e pronto.

Então, quando se olha diretamente para o significado de extrema-direita se tem a dimensão da realidade atual no país, com todos os seus traços anticomunistas, autoritários, nacionalistas, teocráticos, racistas, homofóbicos, aporofóbicos, reacionários, conservadores; indo, portanto, em uma direção muito além das bases liberais econômicas, que tanto vem afligindo à grande massa da população. E esse é o ponto. Porque a gravidade das conjunturas é o que é pela fusão de todos esses elementos.

Quando as pessoas lançam sob o tapete da história o anticomunismo, o autoritarismo, o nacionalismo exacerbado, a teocracia, o racismo, a homofobia, a aporofobia, o reacionarismo e o conservadorismo, elas o fazem por comodismo, ou por alienação, ou por defesa de interesses próprios ou por quaisquer outros motivos. O que não significa que não haja consequências a respeito. Ao levar a sociedade a um movimento de desagregação e fragmentação se oportuniza o acirramento das desigualdades que é totalmente antiproducente ao país, como estamos assistindo nesse exato momento, no Brasil.

Ora, a desigualdade diminui o consumo, a produção, os investimentos, os postos de trabalho, os lucros, ... é uma reação em cadeia que vai paralisando lenta e gradualmente as estruturas do país. E se o cenário internacional globalizado se encontra em situações também tensionadas, o agravamento dos panoramas pontuais, ou seja, de cada país, explode em consequências ainda mais drásticas. Isso significa que em cada linha traçada por uma ideologia de exclusão há um predomínio maior ou menor de resultados negativos.

É o caso, por exemplo, de que “negros têm 4 vezes mais chance de sofrer violência policial do que brancos nas abordagens” 2 ou que “54% (dos LGBTQIA+) não sentem segurança no ambiente de trabalho” 3. Simplesmente, porque uma expressiva parcela da população vive imersa em padrões construídos para manipular e controlar o inconsciente coletivo da sociedade brasileira. De certo modo, frutos amargos e nocivos da sua herança colonialista.

O antropólogo e sociólogo Darcy Ribeiro dizia que “A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”. Porque o grande problema da nossa “doutrinação” secular pode se dizer inscrita no fato de que “Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros”.

Então, não me parece suficiente a manifestação dessa torrente de indignação econômica. Ela é importante, é legítima; mas, ela não é tudo. Se não houver uma ruptura com os diversos padrões retrógrados de pensamento, existentes e persistentes, no país, não haverá avanços. O status quo brasileiro permanecerá o mesmo, impossibilitando o desenvolvimento, o progresso e, particularmente, a reconstrução pós-pandemia a qual fomos submetidos e temos sim, que pensar a respeito.

É preciso entender que a sociedade é um todo indivisível. Precisamos nos perguntar abertamente “Quem somos nós? Existimos, para quê? Por quê? Para nada? ” (Darcy Ribeiro). Enquanto nos mantivermos apenas aceitando que “Nós temos uma das elites mais opulentas, antissociais e conservadoras do mundo” (Darcy Ribeiro), jamais iremos conseguir enxergar a pluralidade, a diversidade em si.  

Assim, sem essa compreensão exata e objetiva desrespeitamos diariamente o fato de que não é à toa que todos os cidadãos nascidos, ou naturalizados brasileiros, estão obrigatoriamente submetidos à mesma Constituição Federal, ao mesmo arcabouço jurídico. Nos permitimos resistir e deturpar a obviedade natural da vida, fazendo da condição humana uma prerrogativa para estabelecer importâncias e desimportâncias sociais, que levam nada a lugar nenhum.  E desconsideramos, ou ao menos tentamos, que “Dinheiro na mão é vendaval / é vendaval...” 4.