Espelho
da alma...
Por
Alessandra Leles Rocha
Dizem por aí que os olhos são o
espelho da alma. Não creio que seja somente pela expressão de emoções e
sentimentos que emergem da retina, porque isso me parece insuficiente para
explicar com precisão a linguagem do olhar. Observando aqui e ali a partir do
trânsito frenético dos passantes, da maneira como utilizam sua habilidade
visual no contato uns com os outros é possível sim, extrair algumas impressões;
porém, nada definitivo e completo a respeito.
Essa história de “espelho da alma” é realmente algo muito
mais profundo. Não se trata da clareza e da objetividade da expressão reflexiva;
mas, da decodificação dos elementos da alma pela junção ao que se vê,
traduzindo na manifestação prática dos gestos, dos comportamentos, das ações. Esses
olhos sintetizam de maneira única e, particularmente, especial aquela
determinada existência humana.
Já colocou reparo nos olhos de
John Lennon? Da Santa Dulce dos pobres? De Mahatma Gandhi? De Herbert de Souza,
o “Betinho”? Da Madre Teresa de Calcutá? De Martin Luther King? Do Dalai Lama? Da
médica Zilda Arns? De Dom Hélder Câmara? ... Embora essas sejam personalidades
conhecidas nacional e internacionalmente, a grande verdade é que os “olhos espelhos da alma” não são privilégio ou regalia de uns e outros. Quantos anônimos,
desconhecidos, são dotados desses olhos, hein?
Por isso, pode parecer difícil e
complicado de entender o que isso significa; sobretudo, em tempos contemporâneos
tão caóticos, tão fugazes, tão superficiais. Ora, tem havido um movimento de
desaprendizagem contemplativa, aquele velho e bom hábito de olhar “olhos nos olhos”, de observar com
atenção aquele silêncio que diz tanto, em forma de luz saída do campo de visão.
O ser humano está cada vez mais apressado, mais ansioso, mais desfocado e
distante do essencial. Por isso olha, mas não vê, não enxerga, não percebe.
Para se ter olhos que sejam espelhos
da alma é fundamental aguçar não apenas um sentido; mas, todos os sentidos ao
mesmo tempo, dissecando a vida camada por camada, extraindo dela o que há de
melhor. O que me faz pensar que, talvez, sejam eles a chave mestra para abrir
as portas da nossa evolução, do nosso conhecimento. Sim, porque há nesses olhos
tanto despojamento que eles são livres para nos transportar para outras
dimensões, outras perspectivas, outras consciências.
De repente, se percebe que esses
olhos imprimem uma identidade. Quem tem “olhos
espelhos da alma” não sofrem rompantes,
não mudam da água para o vinho, são sempre os mesmos, porque já sabem o que
esperam da vida e o que ela espera deles. “Olhos
espelhos da alma” têm um quê de missão, de compromisso, de tarefa intransferível;
mas, sem todo aquele peso da obrigação, do dever, que retira o brilho e a
naturalidade da existência humana. O que tem de ser flui, brota, exala sem
esforço, pelo simples prazer de ser. Pois é, eles estão presentes naquele contingente
que já se sabe ser maioria no mundo. Os bons,
é claro!
Clarice Lispector escreveu: “Quem eu sou, você só vai perceber quando
olhar nos meus olhos, ou melhor, além deles”, porque “Quando a gente abre os olhos, abrem-se as janelas do corpo, e o mundo
aparece refletido dentro da gente” (Rubem Alves – psicanalista, educador e
teólogo brasileiro). É verdade. Muitas vezes nos surpreendemos
negativamente uns com os outros, porque negligenciamos o olhar. Antes dos
resultados práticos das ações, aqueles olhos poderiam ter nos dito exatamente
que tipo de gente havia ali.
Isso não quer dizer que a
humanidade deva se deixar guiar por quaisquer esterotipizações ou idealizações perfeccionistas,
porque o ser humano é incompleto, é falível, é controverso. Mas, quando se
trata de entender a significância da expressão “olhos espelhos da alma”
não há erro, porque se trata da essência e essa é o que é. Daí a importância desse
olhar. Reside nisso a oportunidade em se errar menos, em se frustrar menos, em
se decepcionar menos, em sofrer menos.
Como escreveu José Saramago, “Fizemos dos olhos uma espécie de espelhos
virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem
reserva o que estávamos tratando de negar com a boca”, ou seja, “Todas as nossas almas estão escritas nos
nossos olhos” (Edmond Rostand – poeta e dramaturgo francês). Diante disso,
queiramos ou não aceitar, o fato é que “Nós
lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão,
lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende da intenção da
descoberta do nosso olhar” (Mia Couto – “E se Obama fosse Africano? ”). Por
isso, olhe mais, olhe sempre, olhe com atenção, olhe com isenção, ... olhe.