quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Apenas mais um dia, na existência de uma indomesticável fera adormecida.


Apenas mais um dia, na existência de uma indomesticável fera adormecida.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Poderíamos ter milhares de dias a mais no calendário; mas, isso não significaria ter de volta o instinto de preservação da espécie. Uma passada de olhos pelas manchetes do dia para perceber o quão a vida humana está sob ameaça. Se não é pela beligerância dos conflitos em curso 1, é pelos eventos extremos do clima 2, a traçar um novo rumo para a população da Terra. De tanto fazer e acontecer, eis aí o resultado!

O triste é chegar a conclusão de que a humanidade perdeu o apreço por si mesma. Matar, morrer, não parece fazer diferença para muita gente, por aí. De modo que os discursos, os gestos, os comportamentos, passam a nítida impressão de uma tentativa desesperada de ocupação do tempo; visto que, estão tomadas de um grau de fastio em relação à vida, tão grande, que lhes consumiu a própria humanidade.

Quem diria, não é mesmo?! O bárbaro, o primitivo ser das cavernas, caminhou para a frente, evoluiu; mas, seu descendente contemporâneo optou por fazer o caminho inverso, involuiu, a olhos vistos. Sem constrangimentos, cerimônias, ele simplesmente abdicou da sua capacidade dialógica, cognitiva, intelectual, para resgatar no fundo do seu inconsciente a sua indomesticável fera adormecida.

Confesso que me espanta ver o ser humano atual, tão cheio de certezas, de razões, como se a vida pudesse ser desfrutada nessa perspectiva. Basta uma espiadinha pela janela ou um acesso rápido às mídias tecnológicas, para descobrir como a contemporaneidade é fluida, instável, mutante. São incertezas por todos os lados, gostem ou não.

Algo que não combina, em nada, com o volume de tensões no horizonte. De modo que enaltecer o fracasso civilizatório, nessas alturas do campeonato, é totalmente antiproducente e inútil. Disputa de egos e gritos não diz nada para coisa nenhuma! Com crises apontando em diversas direções e sentidos, quanto mais equilibrada a humanidade se colocar, melhor. É preciso clareza, lucidez, bom senso, para tomar decisões minimamente satisfatórias.

Mas, lamentavelmente, uma gente embrutecida e raivosa é uma gente que se afastou de princípios éticos e morais. Portanto, ela não pensa em si. Não pensa no outro. Não pensa no planeta.  Não pensa no ontem, no hoje e, muito menos, no amanhã. Está tomada apenas pela desumanidade, pela hostilidade, pelo ódio, pela perversidade, pela irracionalidade...

Aliás, é bom que se diga, que essa irracionalidade é uma manifestação voluntária, decidida, não é fruto do calor das emoções ou dos sentimentos. Afinal de contas, em pleno século XXI, não cabe absolver nenhum vivente das suas responsabilidades, enquanto membro desse coletivo chamado Terra. Ser ou não ser, não é mais uma questão. É só uma decisão, uma escolha.

É nessas horas, então, que eu sempre me lembro das seguintes palavras de Mahatma Gandhi, “Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível”.

Porque elas são fundamentais para desconstruir certos paradigmas, tais como o do herói e o do vilão, tendo em vista que “A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio” (Martin Luther King Jr.).

Desse modo, observando com atenção ao recorte temporal contemporâneo, me vejo tendida a concordar com as seguintes palavras de Friedrich Nietzsche, “Os cumes da civilização e do progresso estão distantes um do outro. Não devemos deixar-nos enganar sobre o antagonismo profundo que separa civilização de progresso”. Afinal, “Só os espíritos fúteis não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, e não o invisível” (Oscar Wilde).

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A imagem diz muito. Mas, certamente, não disse tudo.


A imagem diz muito. Mas, certamente, não disse tudo.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento discordar, de uns e outros; mas, o que levou milhares de pessoas à Av. Paulista, no último domingo, não foi a figura do ex-Presidente da República.

O grande pilar contemporâneo da Direita e seus matizes, mais ou menos radicais, é sem dúvida alguma a religião, na sua vertente mais conservadora.

É ela que consegue persuadir e arrastar multidões, na medida em que legitima crenças, valores e princípios que agradam certos segmentos da sociedade brasileira.

Afinal de contas, baseando-se em possíveis riscos ou ameaças, os direitistas sempre se apegaram ao discurso das crises econômicas, dos desastres naturais, das guerras, dos ataques terroristas e das investidas progressistas, para justificar a necessidade de mobilização e de coesão dos seus seguidores e simpatizantes.

No entanto, dessa vez, tendo em vista o crescimento exacerbado dessas correntes, no país, os discursos apontam diretamente para a necessidade de cerrar fileiras com um modelo de governança fundamentado no poder da religião. É a teocracia em curso!

Para quem não sabe ou nunca ouviu falar a respeito, teocracia significa uma forma de governança em que a autoridade governamental é apresentada como expressão direta da vontade divina, ou seja, só Deus poderia destitui-la.

De certa forma, algo impregnado historicamente no Brasil, por conta da sua experiência colonial, a qual encontrava respaldo da Metrópole, no Absolutismo garantido pela teoria do Direito Divino dos Reis.

Mas, que é extremamente importante de se discutir, porque essa ideia de unção divina é um artifício para a legitimação das ações dos escolhidos por Deus, inclusive, aquelas que ferem todos os princípios éticos e morais e configuram atos claramente delituosos.

Ao colocar essas milhares de pessoas sob o guarda-chuva teocrático, os direitistas lustram a vaidade delas. As colocam em um patamar distinto daqueles que não seguem as mesmas crenças, valores e princípios, ou seja, os outros são verdadeiros hereges.

Então, essa diferenciação oportunista fortalece não só a agregação dessas pessoas em torno dessa mesma base ideológica; mas, a sua defesa radical e extremista.

Como manifestou Umberto Eco, em 2015, “Todo tipo de racismo, fundamentalismo, quase sempre, se baseia em afirmações falsas. [...] É natural que toda forma de crime na história nasce da desinformação orientada” 1.

Entretanto, o fundamentalismo emerge porque é preciso ajustar as palavras, as ideias, para que caibam na missão de legitimar os interesses de quem as manifesta e de quem as ouve ou lê.

Acontece que isso se expressa principalmente pelo princípio do medo, que amplifica, por exemplo, o discurso das crises econômicas, das guerras, dos ataques terroristas e das investidas progressistas, de uma maneira totalmente tendenciosa e equivocada. O que significa que se retroalimenta através do discurso de ódio, da discriminação e do preconceito.

A grande questão é que, enquanto esse movimento fomentado pelo fundamentalismo religioso aglutina seus seguidores e simpatizantes, ele fratura a sociedade, o ideal coletivo. Ele gera tensões desnecessárias. Ele obstaculiza o desenvolvimento, o progresso e a paz social.

De tal forma que olhando para essa iniciativa teocrática, a qual, no Brasil, é liderada por elementos da direita e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, o que se tem, de maneira bastante objetiva, é um compromisso puramente corporativista.

Então, quando se tem a imagem daquelas milhares de pessoas e se observa suas falas, seus adereços, seus comportamentos, torna-se possível dissecar as camadas que revestem a sua presença no evento.

Esse é o ponto de análise, de reflexão, de compreensão do que se revela e sinaliza, como desdobramentos futuros, para a direita brasileira e internacional. Mesmo não havendo uma homogeneização religiosa, já que cada país tem uma vertente religiosa diferente; mas, o princípio em si pode ser usado da mesma maneira.

Portanto, do mesmo modo com que a ultradireita vem se disseminando pelo planeta, a teocracia parece seguir o mesmo caminho. Algo para não se negligenciar. Afinal, ambos convergem para um mesmo ponto, ou seja, “Fundamentalistas dão um toque de arrogante intolerância e rígida indiferença para com aqueles que não compartilham suas visões de mundo” (Umberto Eco).

O que tende a nos levar a um caminho que pode fazer com que as crenças e as convicções sejam continuamente repassadas, de uns para os outros, sem qualquer escrutínio ou análise técnica competente, até provocarem efeitos nocivos e devastadores sobre a sociedade.   

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Uma linha do tempo tem sempre algo a nos dizer


Uma linha do tempo tem sempre algo a nos dizer

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais cansativo que seja viver o cotidiano contemporâneo, este é um tempo que não permite descuidos e desatenções. Nada é por acaso. Nada é revestido de ingenuidade. Nada. O que parece ser obra do agora, na verdade, vem sendo urdido há séculos, em sucessivos movimentos de ajuste e reenquadramento de ações. De modo que, contrariando as expectativas de muita gente, por aí, os espaços para o delírio idealizante estão cada vez mais restritos.

Então, olhando para o mundo, observando os acontecimentos, como quem monta um quebra-cabeça, resolvi organizar os pensamentos em uma breve reflexão. Começando pelo fato de que nada foi tão surpreendente para a humanidade do que a Revolução Francesa, no século XVIII.

Até a sua deflagração, a monarquia europeia sentia-se plena pela segurança produzida por sua organização política – o Absolutismo – e econômica – o Mercantilismo. O que não é de se espantar!

Ora, o Absolutismo, que traduzia a concentração de poderes nas mãos dos monarcas, tinha como fundamentação a chamada teoria do Direito Divino dos Reis.

Trata-se de uma doutrina político-religiosa defensora da ideia de que a autoridade do rei emana diretamente da vontade de Deus e só por Ele poderia ser destituída.

De modo que para fortalecer ainda mais esse poder, os monarcas contavam com um conjunto de práticas econômicas, vigentes entre os séculos XV e XVIII, voltadas para a acumulação de riquezas, ou seja, o Mercantilismo.

Dentre elas pode-se citar o Colonialismo, o Metalismo, o incentivo à manufatura, a intervenção do Estado na economia, a balança comercial favorável e o protecionismo alfandegário.

Bem, mas o que era maravilhoso para a monarquia era péssimo para o restante da população, que vivia de migalhas e restos. Alguns, inclusive, tendo a sua indignação silenciada nas masmorras reais da época. O que significa que havia um nível de tensão social, em tese, mais ou menos controlado pelo Estado.

Até que, em 14 de julho de 1789, a Monarquia francesa viu seu controle desaparecer diante da Tomada da Bastilha, a antiga prisão, símbolo maior da opressão tirânica do Antigo Regime francês.

A Revolução Francesa promoveu a mais profunda ruptura paradigmática da história, tendo como princípios a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade (Liberté, Égalité, Fraternité), as camadas populares tomaram o poder, com a ajuda de rebeldes revolucionários.

E se o improvável aconteceu na França, poderia acontecer em qualquer outra monarquia da Europa, pensavam aterrorizadas as demais casas reais. Era preciso, então, conter a fúria das massas populares. Era preciso impedi-los de se organizarem, de planejarem novas ações. Medidas que arrefecessem os movimentos eram imprescindíveis.

Eis, então, que na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, custeada a partir de todo o capital oriundo do Mercantilismo inglês, surge a Revolução Industrial. Inicialmente iludida, de que a produção em série poderia gerar melhores condições socioeconômicas, a grande massa se deixou absorver como mão de obra da nova empreitada.

Agora, não mais os reis; mas, uma burguesia, tão cruel e perversa, passou a deter o controle social nas mãos. Porque além de controlar os meios de produção, o capital e o poder político, ela influenciava modos e costumes da época, a partir da aprovação de leis e decretos a respeito. Sem contar, os pitacos no ideário religioso vigente.

Em suma, essa recém-formada burguesia industrial é, portanto, o embrião clássico da Direita e seus matizes, mais ou menos radicais. De modo que, passados alguns séculos, esse restrito nicho social não perdeu a capacidade organizacional para manter seus interesses, crenças e valores; embora, sempre os ajustando aos genuínos processos de transformação da sociedade.

No entanto, o velho temor da ascensão das massas populares jamais saiu do seu radar de observação, depois do ocorrido na Revolução Francesa. Haja vista o ódio que vem, desde então, sendo destilado por essas pessoas às camadas mais vulneráveis e desassistidas da população; bem como, aos seus defensores e simpatizantes.

Ao menor sinal de abalo às suas regalias e privilégios, eles entram em cena estridentes e ferozes para defenderem seus interesses contra uma eventual ação opositora. Acontece que, hoje, em pleno século XXI, eles dispõem para tal, um verdadeiro arsenal tecnológico de aglutinação social e ideológica.

Queiram ou não admitir, as chamadas Big Techs são crias das gerações que sucederam aquela burguesia emergente da 1ª Revolução Industrial. Gente que criou esse aparato midiático em benefício próprio, em defesa de seus interesses maiores e contra qualquer vestígio de ascensão popular.

Eles dão meio de ação às suas bolhas sociais. Possibilitam os recortes. Favorecem o jogo da pós-verdade, através das Fake News. E se colocam abertamente partidários nos cenários eleitorais que lhes favorecem.

É aí que se chega ao ponto mais importante dessa reflexão, a expansão global da ultradireita. Conectados além das ideias, das propostas, das práxis, os movimentos de ultradireita demonstram uma capacidade de mobilização, que beira à perfeição.  

Acontece que isso não diz respeito apenas às ambições políticas e de poder, existentes na ultradireita contemporânea. Vigiar, manipular e controlar seus seguidores e simpatizantes é um exercício que precisa ser lapidado, considerando o que se acena no horizonte próximo.

Uma retomada global da ultradireita poderá vir acompanhada de um cenário socioeconômico devastador para uma gigantesca maioria da população, a qual inclui os seus próprios seguidores e simpatizantes. O avanço da tecnização, fomentada pela própria elite direitista, visa reduzir drasticamente o papel dos seres humanos nos mais diversos tipos de meios de produção.

Considerando que o planeta possui uma população atual em torno de 8 bilhões de indivíduos, não será possível que todos aqueles pertencentes às parcelas economicamente ativas consigam ser realocados nesse novo cenário.

Portanto, haverá demissões em massa. Haverá empobrecimento. Haverá agravamento da precarização trabalhista. Haverá tensão circulando em todos os lugares. Tudo o que a Direita e seus matizes, mais ou menos radicais, não querem em hipótese alguma. Há um trauma histórico que lhes assombra o imaginário!

Daí eles estarem trabalhando tão ativamente nesse conceito organizacional, quase como uma seita. Afinal é fundamental vender ilusões nesse caso. Promessas. Esperanças. Felicidade em gotas homeopáticas. Enquanto se omite as verdades mais difíceis e indigestas.

E para isso eles apostam em figuras emblemáticas, com alto poder persuasivo, para arrefecer eventuais ímpetos de rebeldia, indisciplina, desobediência ou insurreição, utilizando argumentos retóricos inconsistentes; mas, ao mesmo tempo, eficientes para modelar a opinião pública através do apelo às emoções e às crenças pessoais.

Portanto, só o tempo dirá o resultado dessa empreitada, o curso que seguirá mais esse pedaço da história. Ao redor do planeta batem, a todo instante, milhões de asas de borboletas. Nunca se sabe o que pode acontecer daqui a um minuto.

A vida humana sobre a Terra é totalmente permeada de incertezas, o insólito está sempre à espreita, aguardando por uma oportunidade. Tanto, que raios caem sim, mais de um, em um mesmo lugar. Prestemos atenção a isso!   

A violência. A escola. A contemporaneidade.


A violência. A escola. A contemporaneidade.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O artigo Agressão a aluna brasileira na porta de escola choca Portugal 1, publicado hoje, no blog de O Globo / Portugal Giro, possibilita um conjunto de reflexões em torno da violência contemporânea, que ultrapassa os limites da xenofobia e outras formas de preconceito.

Não é de hoje que a violência está presente dentro e fora dos muros da escola. O que não causa surpresa e nem estranheza, considerando que a escola é um espaço de representatividade da própria realidade social. No entanto, isso não faz com que as manifestações da violência possam ser banalizadas ou trivializadas. Elas continuam sendo o que são, ou seja, expressões que ferem o respeito, a dignidade, a civilidade humana.

Venho pensando sobre esse movimento há bastante tempo. Embora não tenha dados estatísticos ou científicos que esclareçam os caminhos pelos quais a violência nas escolas se deu, se de dentro para fora ou de fora para dentro; mas, fato é, que essa via de mão dupla acabou se convergindo para um resultado social deletério.

 Me parece existir um franco processo de deterioração da figura da escola. O princípio básico de ser um espaço de construção do conhecimento, uma extensão social importante para a formação identitária dos indivíduos, de repente, foi relegada a uma condição de espaço de reafirmação dos desvirtuamentos de crenças, valores e princípios, a partir de práxis desumanizadas e desqualificantes.

O saber, o aprender, o entender o mundo, foi parar no fim da fila das prioridades. As escolas tornaram-se palcos da exibição dos modismos, dos consumismos, das desigualdades, permitindo a exacerbação das rivalidades, das competitividades e das violências. O que era para ser um espaço equilibrado, respeitoso, pacífico e altruísta, se viu mergulhado nesse lodo tóxico que já se encontra disseminado por outros setores da sociedade.

Ora, se dentro do ambiente escolar é assim, quem está de fora, também, não vê razões para pisar em ovos e conter seus arroubos. Daí a beligerância ter se instalado de maneira tão concreta nas escolas e em suas imediações. Brigas de rua. Balas perdidas. Violências sob diferentes formas, em qualquer hora do dia ou da noite. Basta que qualquer estopim ideológico seja voluntariamente deflagrado.

O que significa, objetivamente, o desprezo total pelo conhecimento, pela formação cognitiva e intelectual, pelo desenvolvimento dos princípios éticos e morais, pela consolidação de uma identidade cidadã. A escola, caro (a) leitor (a), perdeu o seu valor social! Durante algum tempo, acreditava-se que essa perda estava relacionada apenas à carreira docente. Agora, vemos que não.

Cada vez mais, os alunos vão à escola por outros motivos. Para não ficar sozinho em casa. Para preencher o tempo. Para socializar. Pela merenda. Pelos conflitos familiares. Pela violência doméstica. ... Menos, pelo ensino-aprendizado.  Há quem acredite, inclusive, que o aprendizado derivado de outras fontes – família, amigos, mídias sociais etc. – já é o suficiente e que a escola teria pouco a oferecer. Ou, talvez, a rudeza do cotidiano seja tamanha, que não há disposição para ouvir mais nada, ler mais nada, saber mais nada.

Acontece que esse sentimento de autossuficiência é extremamente nocivo, porque desperta nos indivíduos uma pseudossensação supremacista, a qual pode, muitas vezes, expressar-se em violência. Se estabelece uma crença narcísica de que já se sabe tudo e não precisa da escola, do professor, dos livros, do conhecimento técnico-científico. Em caso de dúvida, especialmente as atuais gerações, eles (as) simplesmente recorrem, sem constrangimento, à internet, e tudo resolvido!

Percebem, então, quantos desafios estão impostos à escola contemporânea?! Estamos diante de um verdadeiro balaio de gatos, em que a violência é só um dos elementos presentes. Acontece que a sua capacidade de transbordamento social exige esforços profundamente intensos e multidisciplinares.

Lamento, mas a segurança na porta da escola não é a solução plena dos problemas! A escola contemporânea precisa de psicólogos, de assistente social, de terapeuta ocupacional, para trabalhar em conjunto com o corpo docente e diretivo da escola, oferecendo o suporte necessário para o enfrentamento das demandas emergentes.

É preciso lembrar que a escola é um espaço da pluralidade, da diversidade. Não há um modelo padrão de aluno (a). Cada indivíduo é único! Assim, esses profissionais dispõem das condições necessárias para atender às especificidades que se apresentam na realidade cotidiana escolar.  Seja construindo pontes de diálogo, de afeto, de acolhimento, de compreensão e/ou de orientação.

Por essa perspectiva é que se começa a vislumbrar um sentimento de segurança social, ou seja, permitindo que de dentro para fora dos muros da escola, todos os atores envolvidos no processo educacional sintam-se seguros, amparados, visíveis, nas suas necessidades humanas.

E essa dinâmica tem sim, um potencial multiplicador extraordinário. Como escreveu Maria Montessori, “As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e sermos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos a educar para a paz” 2.

Assim, só a título de complementar essa breve reflexão, sugiro que o (a) leitor (a) assista aos seguintes filmes: Escritores da Liberdade (Freedom Writers), de 2007, e Entre os Muros da Escola (Entre les murs), de 2008. Afinal de contas, por pior que seja a realidade, os problemas do mundo, “O cinema é um modo divino de contar a vida” (Federico Fellini) e nos fazer compreendê-la com mais exatidão e fluidez.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

É preciso discutir Saúde Ambiental


É preciso discutir Saúde Ambiental

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há tempos venho escrevendo a respeito da importância de analisar as doenças, no mundo, além da sua própria manifestação. Hoje, me deparei com a matéria Por que alto nível de mercúrio nos atuns persiste há décadas e intriga cientistas 1,  publicada pela BBC News Brasil, que exemplifica muito bem as minhas considerações sobre o assunto.

Gostando ou não, se interessando ou não, fato é que a relação entre o adoecimento populacional e as diferentes formas de poluição ambiental existe e é cada vez mais preocupante. Seja no ar, na água, no solo, contaminantes diversos têm sido absorvidos pelos seres humanos. Lamentavelmente, a raça humana vive sob a ameaça invisível dos poluentes.

Algo que é extremamente grave, pelo fato de que estes agem sob efeito bioacumulativo nos organismos. De modo que, dependendo da condição orgânica dos indivíduos, ou seja, mais ou menos salubres, a reverberação negativa desses contaminantes pode ser acelerada e intensificada, tendo em vista que o grau de imunidade corporal é insuficiente para cumprir seu papel.

Mas, não para por aí. Quando o sistema de saúde abdica, voluntariamente ou não, do aprofundamento da investigação de uma doença, a fim de determinar exatamente a origem da sua manifestação, o papel da poluição ambiental nesse processo passa invisibilizado. O que permite que muitas doenças não recebam efetivamente o tratamento necessário. Ora, muitas doenças se confundem pelas manifestações clínicas e o que as diferenciaria, com a devida exatidão, é o conhecimento sobre a sua gênese.

Somente depois que as notícias sobre o que acontecia na baía de Minamata, no Japão, ganharam repercussão internacional, por exemplo, é que a humanidade pode compreender que certos sintomas, tais como convulsão, surtos psicóticos, perda de consciência e febre, semelhantes ao quadro de inúmeras doenças, apresentados por diversos moradores, que haviam consumido peixes provenientes daquela cidade, eram resultado da contaminação por mercúrio, descartado por um empresa, na água do mar 2.

A grande questão é que esse é um caso entre milhares de outros. Diariamente o ser humano é exposto, à revelia de seu conhecimento, a certos produtos tais como chumbo, arsênio, cromo, níquel, benzopireno, cádmio, formaldeído, acetaldeído, agrotóxicos, asbesto, bisfenol A, substâncias alquiladas per e poli-fluoradas, presentes na composição ou na fabricação de diversos produtos do cotidiano.

Quase sempre, a justificativa que se tem, em relação aos mesmos, decorre de parâmetros governamentais de tolerabilidade humana, os quais desconsideram visivelmente as especificidades que envolvem os efeitos bioacumulativos nos organismos. De modo que as fiscalizações buscam apenas encontrar concordância numérica para legitimar a legalidade desses produtos.

Enquanto isso, milhares de pessoas são afetadas pelas consequências deles e, muitas vezes, não encontram respaldo governamental para receberem o tratamento necessário. Inclusive, dentro de um outro recorte de saúde pública, os milhares de casos de bebês afetados pelo Zika vírus, no Brasil, traz a devida dimensão dessa negligência socioambiental 3. Quase sempre essas ocorrências epidemiológicas demandam um quadro de assistência médico-hospitalar multidisciplinar, o qual nem todos os Estados e Municípios estão preparados para oferecer, seja por razões logísticas e de infraestrutura ou por razões orçamentárias.

Daí a necessidade de que os cidadãos se atentem para a saúde ambiental. É preciso entender que não basta apenas ao Estado esse papel de agente detentor de conhecimento, detector de fatores determinantes e condicionantes às alterações de saúde, e promotor da prevenção de doenças e agravos. Afinal de contas, tanto a industrialização quanto a antropização, tornaram sim, todos os seres humanos mais frágeis e vulneráveis aos diversos fatores de risco à saúde.

Lembre-se de que o invisível existe. Não o ver, não o perceber, na sua forma, na sua cor, na sua textura, não significa que ele não está ali, presente, pronto para atuar. Vejo, com muita clareza, que a maioria das pessoas se incomoda ou se preocupa com o lixo nas ruas, nos mares, nos rios, nas florestas, por conta da sua materialidade; mas, se esquecem completamente do lado invisível dos resíduos.

Nossos maiores inimigos e ameaças não estão ao alcance da nossa visão. Só nos damos conta da sua realidade, quando nossos corpos já sucumbem à sua afronta. Quando já fomos brutalmente atacados e os sinais da nossa falência humana já começam a aparecer. O mundo está adoecendo rapidamente. O que dizem ser novas patologias são apenas o reflexo desse desconhecimento sobre a origem das próprias doenças.  Talvez, já seja tarde demais para reverter esse quadro; mas, se conseguirmos ao menos estancá-lo, já teremos produzido algo de bom.  

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Escolha melhor os seus argumentos


Escolha melhor os seus argumentos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O problema não é a pós-verdade. Nem as Fake News. Nem o efeito manada. O ponto nevrálgico dessa discussão é a terrível predisposição contemporânea do ser humano em exercer a sua liberdade de maneira plena e irrestrita, abdicando de uma construção argumentativa consistente. Daí para defenderem o estapafúrdio, com unhas e dentes, é um pulo!

Desse modo, queiram ou não admitir, o campo cognitivo e intelectual se transformou em arena de vale-tudo. O pior é que o vale-tudo é sempre raso, sempre enviesado, sempre distorcido, sempre tendencioso e manipulador, ou seja, não transita acompanhado pela robustez da verdade dos fatos em si. O que o torna, quase sempre, modelado por ideias de efeito chiclete, as quais se impregnam no inconsciente à revelia do cérebro, no intuito de se tornarem realidade.

E isso, caro (a) leitor (a), está muito associado à carência ou à fragilidade argumentativa, que o tempo da pressa e do imediatismo contemporâneo favoreceu. Diante de uma tendência natural de não se ater aos fatos, de não aprofundar a atenção às palavras, de não gastar o tempo na leitura das ideias, uma legião acredita, oportunística e intencionalmente, na aplicação da máxima de que “quem conta um conto aumenta um ponto”, para satisfazer interesses nem sempre éticos e morais.

Então, de repente, o que cai no espectro do falatório, do disse me disse, do devaneio popular, está distante anos-luz da realidade factual. Algo que possibilita desdobramentos bastante perniciosos e beligerantes à dinâmica social, tendo em vista, o grau de contaminação presente na construção da coerência textual. Ora, vive-se tempos de uma flagrante deturpação alienante do pensamento humano, que compromete, inúmeras vezes, o exercício reflexivo isento, conforme pede a coerência textual.

Como se toda a expressão da linguagem já fosse recebida com ressalvas inflexíveis, com preconceitos estereotipados, com limitações condicionantes, enfim. Daí, quando se vê, o que era só uma palavra, se transformou em outra, ou em um conceito, ou em uma expressão, desalinhando e desconstruindo a ideia inicial para substituí-la a favor dos interesses alheios. Aliás é curioso que, em tempos de tanto silenciamento, uns e outros, por aí, andem colocando palavras na boca dos semelhantes!

Inclusive, isso me fez lembrar de Mário Juruna, primeiro deputado federal indígena do Brasil, na década de 1980, que ficou conhecido por carregar um gravador e registrar as conversas e promessas dos políticos. Uma sábia tentativa de evitar, já naquela época, que as ideias fossem desidratadas, enviesadas, distorcidas, ou caíssem nas garras da tendenciosidade político-ideológica. Algo que, hoje, nem gravando em áudio e em vídeo, se consegue preservar, tamanha a fúria dessa predisposição libertária para defesas discursivas sem pés e nem cabeça.

Ter opinião, manifestá-la, é direito e dever de todo o cidadão. Não há o que se questionar nesse sentido. O que estou trazendo à luz da reflexão, nesse breve texto, é a carência genuína de fundamentação da prática discursiva. Infelizmente, estamos sob uma torrente de pura verborragia. Como se a prática discursiva pudesse acontecer sem escrutínio, sem filtros, sem compromisso com a realidade factual.

Assim, da tribuna das mídias sociais para os espaços institucionais, a verborragia contemporânea é um fenômeno de assombro e constrangimento. A efervescência atual tem sim, limitado a capacidade humana de ler e ouvir, dada a quantidade de ruídos que se estabelecem e impossibilitam a compreensão das ideias. Nenhum juízo de valor sobre uma fala, ou um texto, pode acontecer num piscar de olhos! É preciso não queimar as etapas da assimilação e da compreensão, para se emitir alguma opinião.

Nesse sentido, vale ressaltar a lamentável conduta de alguns veículos de comunicação, que se permitem contribuir na desinformação verborrágica, quando interferem tendenciosamente nessa leitura dinâmica, tão frequente na contemporaneidade. Ora, há pesquisas que demonstram como a leitura vem se resumindo às manchetes ao invés dos artigos, por exemplo.

Então, basta que elas sejam construídas de uma certa maneira para induzirem à produção de uma coerência textual enviesada ou deformada, empobrecendo e ludibriando a capacidade intelectual do leitor. Porque, nesse caso, se um fulano não gosta de um determinado beltrano, fica legitimada que qualquer ideia, por ele manifesta, seja esculachada de maneira veemente, embora, sem qualquer fundamentação que sustente a tal depreciação.

Em linhas gerais, deixando correr frouxo assim, tudo se transforma em briga de moleques na rua, em picuinha de aluno do primário, contradizendo que o ser humano é dotado de capacidade intelectual. Faça-me o favor! O que a realidade nos mostra é que o ser humano está cada vez mais passional do que racional! Suas vontades, seus quereres, suas simpatias, suas antipatias, ... Êpa, pera lá, como assim?! Nenhuma argumentação discursiva que se preze pode se fiar nesses termos!

Concordo que nem sempre é possível uma isenção plena, um posicionamento imune à contaminação alheia; mas, sem argumentos robustos e consistentes, não dá para abrir a boca. Aliás, só dá para passar vergonha, constrangimento, humilhação! E como já dizia o poeta e filósofo francês Paul Valéry, “Quem não pode atacar o argumento ataca o argumentador”. O que mais se tem visto acontecer na contemporaneidade. Por isso, lembremo-nos das palavras de Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz, em 1984, “não levante a sua voz, melhore os seus argumentos”. 

Uma viagem à Lua. Uma viagem ao ego.


Uma viagem à Lua. Uma viagem ao ego.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nada mais simbólico para a hipocrisia contemporânea, do que os aplausos e ovações ao pouso de uma nave, construída pela iniciativa privada norte-americana, na Lua. Em 2019, eu escrevi o texto Fomos à Lua, e daí? 1, por conta das manifestações em torno dos 50 anos da missão espacial, na qual um ser humano pisou no solo lunar pela primeira vez. Todas as minhas considerações, naquela ocasião, não diferem do meu pensamento atual.

Seres humanos; sobretudo, aqueles pertencentes às camadas mais privilegiadas, não estão nem aí para sua espécie e todas as mazelas que podem afetá-la. Seres humanos são narcísicos e terrivelmente individualistas. O que explica porque demandas históricas não são resolvidas e sim, postergadas ad aeternum. Trazendo a sensação de que a espécie humana está burlando as regras do jogo da vida, avançando as casas sem poder.

Ora, não haveria nada de mal ou de terrível se todos os avanços científicos e tecnológicos, os quais permitem inclusive as viagens interplanetárias, acontecessem no contexto de um mundo em que tudo estivesse na mais perfeita ordem. Acontece que não está! A Terra está imersa em desafios estruturais históricos, tais como a fome, a miséria, as epidemias, as desigualdades, as violências, os preconceitos, enfim. Vivemos sob contínua tensão.

Além disso, pela perspectiva de uma ótica humanista e empática, não há razões para se comemorar uma viagem espacial, quando o planeta Terra padece a tragicidade de conflitos bélicos em curso. Isso pode sim, ser considerada hipocrisia em estado bruto! Olha-se para o céu porque se tem medo de olhar para o que acontece no horizonte dos seus próprios olhos. Acontece que a realidade é tão avassaladora que, por mais que se tente fingir não a ver, ela não desaparece pela força da artificialidade hipócrita.

Vejam que essa mesma ciência e tecnologia contemporânea, em breve, produzirá o aumento descompensado do empobrecimento no planeta, em razão da expansão da tecnização. Estamos à beira de uma desocupação laboral em massa, porque construções, tais como a Inteligência Artificial (I.A.), não dependerão mais de mão de obra humana. O que significa que haverá o acirramento das mazelas históricas que não foram resolvidas.

Pois é, enquanto se entoa essa ode hipócrita à tecnologia, que se gastam bilhões para materializar seus delírios, a raça humana sucumbe a concretude de problemas reais. Ah, se tivéssemos dado atenção às palavras de Charles Chaplin, em 1940, quando disse “A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido” (Discurso final do filme “O Grande Ditador”)!

Na verdade, é bom que se diga que não é a ciência ou a tecnologia em si, o cerne do problema. A destruição que acena diante dos olhos emerge dos desequilíbrios humanos. É muita vaidade. Muita ganância. Muito poder. Muita indiferença. Muito (a) ... Está no indivíduo o impulso desvirtuante da sua dignidade civilizatória. De modo que ele não mais pesa as consequências de seus atos. Age sem rumo, sem freio, tomado por um sentimento supremacista estarrecedor, que sequer cogita a possibilidade de ser contido, de alguma forma, nos seus arroubos.

Algo que se explica pelo fato de o poder capital alicerçar esse campo do desenvolvimento social. Sim, porque esse poder inibe o contraditório, a contestação, a reflexão. Tanto que não se vê ações mais vibrantes e ruidosas por parte dos defensores da Tecnoética. Há um visível silenciamento impedindo a construção de um pensamento mais analítico e crítico pela sociedade. Assim, a tecnização garante seu status positivo, inovador, importante, sem quaisquer sinais contrários.

Portanto, antes de nos permitir encantar e inebriar diante dos avanços científicos e tecnológicos, paremos para observar como “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança” (Hannah Arendt). Talvez, seja o momento certo para reler o poema O homem; as viagens 2, de Carlos Drummond de Andrade. Porque se parecemos um gigante para pisar na Lua e um anão para enxergar-se diante do próprio espelho, é sinal de que “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime” (Hannah Arendt).



2 ANDRADE, C. D. de. As impurezas do branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p.20-22.   

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Não, não gosto de certo e errado.


Não, não gosto de certo e errado.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não gosto de certo e errado. A vida não pode ser analisada de forma tão taxativa. Mas, é justamente com base em dicotomias como essa que a Direita e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, por exemplo, tentam enquadrar o mundo.

Pela ótica da sua perspectiva, desconsiderando as reflexões cabíveis aos cenários, às conjunturas, em questão. O que significa que todo aquele que pensa diferente está automaticamente enquadrado no campo do erro.

Ora, a forma com que o indivíduo percebe, entende, sente, os fatos e acontecimentos da vida, é totalmente particular. A não ser quando ele (a) próprio (a) se permite influenciar pelo outro, passando a se impor o cabresto de um efeito manada, tão comum na contemporaneidade.

Aí ele (a) entra em umas de seguir roteiros, scripts, manuais, protocolos, sem ao menos se dar conta de onde tudo lhe conduzirá. E olhando para esse movimento, sinto um imenso pesar diante de constrangimentos e vergonhas, que muitos se submetem, por aí, só para satisfazer a esse pseudopertencimento social.

Pois é, deixam-se levar pelas artimanhas da pós-verdade, só para não destoar, não desalinhar, ao modus vivendi de uma determinada bolha contemporânea. Assim, se esquecem de olhar além de si mesmos, de ver o que acontece, de fato, no mundo real. De exercerem a sua própria existência.

Afinal, manter-se onde está é muito mais cômodo! Ter quem pense, analise e reflita, por você, reduz imensamente o trabalho intelectual humano. Basta escolher o nicho que pretende se instalar e, logo, você estará condicionado ao processo alienante que decidiu fazer parte.

Bom, mas tanta facilidade tem um preço! Limitar a sua capacidade cognitiva e intelectual a um único viés, o tornará um colaborador fiel e ativo de ideias, as quais, muitas vezes, você não entende ou, simplesmente, discorda. Aí você permanece onde está para não ser banido, invisibilizado ou cancelado.     

Por mais que as armadilhas do mundo contemporâneo tentem aprisionar as pessoas nesse regime de modulação, de alienação mental, ética e moral, sempre chega o momento em que elas não podem mais caber nessa estrutura.

O que me faz pensar sobre a correlação desse processo com o aumento dos casos de suicídio no mundo. Aliás, vale a leitura do artigo Por que a taxa de suicídios disparou nos EUA para maior nível em 83 anos 1, publicado no site da BBC News Brasil, hoje.

Lamentavelmente, a opressão exercida sob diferentes formas, conteúdos e intensidades, dentro da estrutura social, está cada vez mais insuportável para o ser humano.  Afinal de contas, nenhum efeito manada produzido é capaz de alterar a identidade do indivíduo na sua plenitude.

E são essas arestas, que resistem ao processo, a fazer com que, de uma hora para outra, manifestem o seu desajuste, a sua insubordinação, o seu inconformismo, e levem os indivíduos a comportamentos intempestivos e/ou deletérios.

Vejam o quanto isso é perverso e cruel. A humanidade é induzida por diferentes agentes sociais a se render às pressões de ajustamento aos roteiros, scripts, manuais e protocolos, a fim de serem aceitas.

Então, elas se submetem a esse processo, depositando todas as esperanças e expectativas de que, de fato, irão conseguir. No entanto, com o passar do tempo, elas vão padecendo de tantas decepções, frustrações, decorrentes da incompatibilidade entre a sua natureza identitária – crenças, valores, princípios, convicções – e as imposições sociais, que elas se rebelam.  

E essa desobediência, ou insurgência, pode se manifestar de maneira imprevisível. Mas, a síntese desse processo é sempre uma expressão de adoecimento físico, psicológico e emocional. O que torna essa, uma questão seríssima a ser discutida mundialmente.

Nesse sentido, é fundamental observar como tem se tornado, mais e mais comum, a utilização da palavra resiliência, como uma qualidade a ser buscada integralmente pelo indivíduo contemporâneo. Mas, sejamos honestos, diante da realidade atual, quem consegue constantemente se adaptar às situações difíceis, às fontes infinitas de estresse?

Cada ser humano tem seu próprio limite. Por mais que se queira flexibilizá-lo, remodelá-lo, a exaustão persistente e recorrente faz minar a sua vitalidade. Faz as pessoas adoecerem. Sobretudo, porque elas percebem que todos os seus esforços empenhados não traduzem as respostas almejadas. É como se a sua resiliência se transformasse em nadar, nadar, e morrer na praia.

A verdade é que a contemporaneidade pira a cabeça de qualquer um! Ela ordena que você seja flexível, adaptável, mutável, ... desde que não esbarre ou ultrapasse os limites predeterminados em todos os seus roteiros, scripts, manuais, protocolos.

Que você seja você; mas, não tanto, não muito. Que você esteja mais atento (a) às mídias sociais do que, necessariamente, à sua construção e produção de conhecimento.  Que você ... No fundo, ela quer que você se transforme em um robô adestrado, que respira e vai ao banheiro.

E se você não consegue seguir tudo isso à risca, você é alçado de imediato à perspectiva de certo e errado, que uns e outros decidiram impor.  Essa é a dinâmica dessa espiral de loucura, desse labirinto insano, em que mais de 8 bilhões de seres humanos participam. Alguns voluntariamente. Outros inadvertidamente. Mas, pouco importa.

Chegamos, então, ao temido ponto de inflexão, ou seja, “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós” (Jean-Paul Sartre). O que em linhas gerais, no contexto dessa breve reflexão, significa assumir as rédeas do próprio protagonismo, de pensar com a própria cabeça, de libertar-se das amarras do certo e do errado, de defender, com unhas e dentes, a dignidade identitária.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Dizia Luigi Pirandello, “Assim é, se lhe parece”. Será mesmo?!


Dizia Luigi Pirandello, “Assim é, se lhe parece”. Será mesmo?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não surpreende que a direita e seus matizes, mais ou menos radicais, estejam tentando, oportunisticamente, surfar na onda da tensão que se estabeleceu entre o governo brasileiro e de Israel.

Por lá, o estabelecimento de uma tensão internacional com o Brasil possibilita a construção de narrativas que poderiam colaborar para minimizar o seu isolamento, face as práxis ofensivas empregadas contra os palestinos.

Por aqui, o estabelecimento da tensão internacional com Israel possibilita a construção de narrativas com o intuito de desviar as atenções sobre as recentes investigações da Polícia Federal (PF) e os depoimentos que estão previstos.

Além disso, nem é preciso lembrar a recente relação amistosa que se estabeleceu entre o atual governo de Israel com membros da ultradireita nacional, nos últimos anos, inclusive no campo da espionagem, com compras de softwares e outros equipamentos de empresas israelenses, pelo governo brasileiro.

Bom, desde que mundo é mundo, as relações sociais são, geralmente, estreitadas por afinidades. No campo geopolítico, além dos aspectos ideológicos, as questões de comércio exterior e outras discussões diplomáticas, são o que compõe o cenário de proximidade ou de afastamento entre nações.

Assim, parece claro que, diante das conjunturas atuais de beligerância entre Israel e a Palestina, o governo israelense desejasse poder contar com um governo brasileiro mais alinhado ao seu posicionamento político-ideológico.

Mas, por conta de todos os movimentos diplomáticos brasileiros, desde o início do conflito, ainda que o Brasil tenha deixado patenteado à sua indignação quanto ao ato terrorista cometido pelo Hamas contra cidadãos israelenses, a busca por uma construção pacífica dialógica entre as partes e de um cessar-fogo imediato para conter a carnificina contra civis palestinos, a maioria mulheres e crianças, têm sido intensos e constantes. O que vai na contramão das expectativas do governo israelense.

Vamos e convenhamos que as páginas da história mundial estão repletas de figuras nefastas, abjetas, infames, cujas práxis genocidas depreciam totalmente a condição civilizada do ser humano. E cada vez que elas emergem no horizonte há sempre a esperança de que o aprendizado oriundo da dor, do sofrimento, da miséria humana, seja capaz de impedir um novo episódio.

Aliás, a grande escritora Mary Shelley, ainda no século XIX, escreveu: “se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (SHELLEY, p.54)1.

Por isso, é estranho que diante da desumanidade que retrata a guerra, estejam uns e outros voltados para se encher de uma cólera indignada diante de palavras, que podem ser substituídas por outras, ao invés de se ater aos fatos concretos traduzidos na visão do morticínio de seres humanos.

E a paz? Onde fica a luta pela paz? A luta pela preservação da espécie humana? É constrangedor pensar como o oportunismo de ocasião consegue o feito de flexibilizar crenças, valores e princípios humanos. Vidas são vidas. Não dá para relativizar. Não dá para aceitar que entre seres humanos existam aqueles que importam e os que não importam. Portanto, uma guerra é sempre o símbolo maior do fracasso civilizatório. E isso é tão impactante que não há palavras para mitigar os efeitos.

Quando se vê um campo de refugiados, ou crianças vagando solitárias entre os escombros, ou corpos espalhados pelas vias públicas, ou mães tomadas pela perplexidade da dor, ... ninguém se preocupa em saber qual a identidade nacional daqueles seres humanos. Ninguém se preocupa em saber se é aqui, ali ou acolá. Simplesmente, se é tomado pela indignação, pela incompreensão, pela empatia fraterna, pela dor e tudo mais a compor o senso humanitário do Homo sapiens.

Há uma citação do Professor Milton Santos que diz, “A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Antes de quaisquer diferenças, somos humanos. É isso o que deveria nos unir, a nossa condição humana! Mortais. Falíveis. Incompletos. Imperfeitos. Limitados. Enfim... Gente, de carne e osso.

Se verdadeiramente olharmos para o mundo, com olhos de ver, perceberemos o quão cheio de cicatrizes existem na sua pele. Marcas adquiridas ao longo da sua jornada existencial, na medida em que se permitiu repetir os erros, as deformidades, as arbitrariedades, os delírios, os narcisismos, de geração em geração.

Infelizmente, não domesticamos o selvagem que nos habita. Em essência, não diferimos dos que habitavam as cavernas.  Somos brutos, bárbaros, irracionais, incivilizados. Não temos apreço pela vida do outro e, nem tampouco, pela nossa. Somos arrogantes, prepotentes, vaidosos, tiranos, egocêntricos. Como se o rodopiar do mundo dependesse da nossa própria vontade, do nosso querer.

Como escreveu Renato Russo, “Ainda que eu falasse a língua dos homens / E falasse a língua dos anjos / Sem amor eu nada seria [...]”2. Aproveitemos, então, a oportunidade que o momento nos traz para desenvolver uma reflexão lúcida e isenta, sob o viés dos (des) caminhos da realidade contemporânea.  



1 SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/. Acesso em: 1º jul. 2019.



2 Monte Castelo (1989) – Renato Russo / https://www.youtube.com/watch?v=YMQ4YFz7iL0