Uma viagem à Lua. Uma viagem ao ego.
Por Alessandra Leles Rocha
Nada
mais simbólico para a hipocrisia contemporânea, do que os aplausos e ovações ao
pouso de uma nave, construída pela iniciativa privada norte-americana, na Lua.
Em 2019, eu escrevi o texto Fomos à Lua, e daí? 1,
por conta das manifestações em torno dos 50 anos da missão espacial, na qual um
ser humano pisou no solo lunar pela primeira vez. Todas as minhas considerações,
naquela ocasião, não diferem do meu pensamento atual.
Seres
humanos; sobretudo, aqueles pertencentes às camadas mais privilegiadas, não
estão nem aí para sua espécie e todas as mazelas que podem afetá-la. Seres humanos
são narcísicos e terrivelmente individualistas. O que explica porque demandas históricas
não são resolvidas e sim, postergadas ad aeternum. Trazendo a sensação
de que a espécie humana está burlando as regras do jogo da vida, avançando as
casas sem poder.
Ora,
não haveria nada de mal ou de terrível se todos os avanços científicos e
tecnológicos, os quais permitem inclusive as viagens interplanetárias, acontecessem
no contexto de um mundo em que tudo estivesse na mais perfeita ordem. Acontece que
não está! A Terra está imersa em desafios estruturais históricos, tais como a
fome, a miséria, as epidemias, as desigualdades, as violências, os
preconceitos, enfim. Vivemos sob contínua tensão.
Além
disso, pela perspectiva de uma ótica humanista e empática, não há razões para
se comemorar uma viagem espacial, quando o planeta Terra padece a tragicidade
de conflitos bélicos em curso. Isso pode sim, ser considerada hipocrisia em estado
bruto! Olha-se para o céu porque se tem medo de olhar para o que acontece no
horizonte dos seus próprios olhos. Acontece que a realidade é tão avassaladora
que, por mais que se tente fingir não a ver, ela não desaparece pela força da artificialidade
hipócrita.
Vejam
que essa mesma ciência e tecnologia contemporânea, em breve, produzirá o aumento
descompensado do empobrecimento no planeta, em razão da expansão da tecnização.
Estamos à beira de uma desocupação laboral em massa, porque construções, tais como
a Inteligência Artificial (I.A.), não dependerão mais de mão de obra humana. O
que significa que haverá o acirramento das mazelas históricas que não foram
resolvidas.
Pois
é, enquanto se entoa essa ode hipócrita à tecnologia, que se gastam bilhões
para materializar seus delírios, a raça humana sucumbe a concretude de
problemas reais. Ah, se tivéssemos dado atenção às palavras de Charles Chaplin,
em 1940, quando disse “A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado
empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que
máquinas precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de
afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será
perdido” (Discurso final do filme “O Grande Ditador”)!
Na verdade,
é bom que se diga que não é a ciência ou a tecnologia em si, o cerne do
problema. A destruição que acena diante dos olhos emerge dos desequilíbrios humanos.
É muita vaidade. Muita ganância. Muito poder. Muita indiferença. Muito (a) ... Está
no indivíduo o impulso desvirtuante da sua dignidade civilizatória. De modo que
ele não mais pesa as consequências de seus atos. Age sem rumo, sem freio,
tomado por um sentimento supremacista estarrecedor, que sequer cogita a possibilidade
de ser contido, de alguma forma, nos seus arroubos.
Algo
que se explica pelo fato de o poder capital alicerçar esse campo do
desenvolvimento social. Sim, porque esse poder inibe o contraditório, a contestação,
a reflexão. Tanto que não se vê ações mais vibrantes e ruidosas por parte dos
defensores da Tecnoética. Há um visível silenciamento impedindo a construção de
um pensamento mais analítico e crítico pela sociedade. Assim, a tecnização garante
seu status positivo, inovador, importante, sem quaisquer sinais contrários.
Portanto,
antes de nos permitir encantar e inebriar diante dos avanços científicos e
tecnológicos, paremos para observar como “Vivemos tempos sombrios, onde as
piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança” (Hannah
Arendt). Talvez, seja o momento certo para reler o poema O homem; as
viagens 2, de Carlos Drummond de
Andrade. Porque se parecemos um gigante para pisar na Lua e um anão para
enxergar-se diante do próprio espelho, é sinal de que “Em nome de interesses
pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para
quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime” (Hannah Arendt).