sábado, 24 de fevereiro de 2024

Uma viagem à Lua. Uma viagem ao ego.


Uma viagem à Lua. Uma viagem ao ego.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nada mais simbólico para a hipocrisia contemporânea, do que os aplausos e ovações ao pouso de uma nave, construída pela iniciativa privada norte-americana, na Lua. Em 2019, eu escrevi o texto Fomos à Lua, e daí? 1, por conta das manifestações em torno dos 50 anos da missão espacial, na qual um ser humano pisou no solo lunar pela primeira vez. Todas as minhas considerações, naquela ocasião, não diferem do meu pensamento atual.

Seres humanos; sobretudo, aqueles pertencentes às camadas mais privilegiadas, não estão nem aí para sua espécie e todas as mazelas que podem afetá-la. Seres humanos são narcísicos e terrivelmente individualistas. O que explica porque demandas históricas não são resolvidas e sim, postergadas ad aeternum. Trazendo a sensação de que a espécie humana está burlando as regras do jogo da vida, avançando as casas sem poder.

Ora, não haveria nada de mal ou de terrível se todos os avanços científicos e tecnológicos, os quais permitem inclusive as viagens interplanetárias, acontecessem no contexto de um mundo em que tudo estivesse na mais perfeita ordem. Acontece que não está! A Terra está imersa em desafios estruturais históricos, tais como a fome, a miséria, as epidemias, as desigualdades, as violências, os preconceitos, enfim. Vivemos sob contínua tensão.

Além disso, pela perspectiva de uma ótica humanista e empática, não há razões para se comemorar uma viagem espacial, quando o planeta Terra padece a tragicidade de conflitos bélicos em curso. Isso pode sim, ser considerada hipocrisia em estado bruto! Olha-se para o céu porque se tem medo de olhar para o que acontece no horizonte dos seus próprios olhos. Acontece que a realidade é tão avassaladora que, por mais que se tente fingir não a ver, ela não desaparece pela força da artificialidade hipócrita.

Vejam que essa mesma ciência e tecnologia contemporânea, em breve, produzirá o aumento descompensado do empobrecimento no planeta, em razão da expansão da tecnização. Estamos à beira de uma desocupação laboral em massa, porque construções, tais como a Inteligência Artificial (I.A.), não dependerão mais de mão de obra humana. O que significa que haverá o acirramento das mazelas históricas que não foram resolvidas.

Pois é, enquanto se entoa essa ode hipócrita à tecnologia, que se gastam bilhões para materializar seus delírios, a raça humana sucumbe a concretude de problemas reais. Ah, se tivéssemos dado atenção às palavras de Charles Chaplin, em 1940, quando disse “A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido” (Discurso final do filme “O Grande Ditador”)!

Na verdade, é bom que se diga que não é a ciência ou a tecnologia em si, o cerne do problema. A destruição que acena diante dos olhos emerge dos desequilíbrios humanos. É muita vaidade. Muita ganância. Muito poder. Muita indiferença. Muito (a) ... Está no indivíduo o impulso desvirtuante da sua dignidade civilizatória. De modo que ele não mais pesa as consequências de seus atos. Age sem rumo, sem freio, tomado por um sentimento supremacista estarrecedor, que sequer cogita a possibilidade de ser contido, de alguma forma, nos seus arroubos.

Algo que se explica pelo fato de o poder capital alicerçar esse campo do desenvolvimento social. Sim, porque esse poder inibe o contraditório, a contestação, a reflexão. Tanto que não se vê ações mais vibrantes e ruidosas por parte dos defensores da Tecnoética. Há um visível silenciamento impedindo a construção de um pensamento mais analítico e crítico pela sociedade. Assim, a tecnização garante seu status positivo, inovador, importante, sem quaisquer sinais contrários.

Portanto, antes de nos permitir encantar e inebriar diante dos avanços científicos e tecnológicos, paremos para observar como “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança” (Hannah Arendt). Talvez, seja o momento certo para reler o poema O homem; as viagens 2, de Carlos Drummond de Andrade. Porque se parecemos um gigante para pisar na Lua e um anão para enxergar-se diante do próprio espelho, é sinal de que “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime” (Hannah Arendt).



2 ANDRADE, C. D. de. As impurezas do branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. p.20-22.