terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Dizia Luigi Pirandello, “Assim é, se lhe parece”. Será mesmo?!


Dizia Luigi Pirandello, “Assim é, se lhe parece”. Será mesmo?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não surpreende que a direita e seus matizes, mais ou menos radicais, estejam tentando, oportunisticamente, surfar na onda da tensão que se estabeleceu entre o governo brasileiro e de Israel.

Por lá, o estabelecimento de uma tensão internacional com o Brasil possibilita a construção de narrativas que poderiam colaborar para minimizar o seu isolamento, face as práxis ofensivas empregadas contra os palestinos.

Por aqui, o estabelecimento da tensão internacional com Israel possibilita a construção de narrativas com o intuito de desviar as atenções sobre as recentes investigações da Polícia Federal (PF) e os depoimentos que estão previstos.

Além disso, nem é preciso lembrar a recente relação amistosa que se estabeleceu entre o atual governo de Israel com membros da ultradireita nacional, nos últimos anos, inclusive no campo da espionagem, com compras de softwares e outros equipamentos de empresas israelenses, pelo governo brasileiro.

Bom, desde que mundo é mundo, as relações sociais são, geralmente, estreitadas por afinidades. No campo geopolítico, além dos aspectos ideológicos, as questões de comércio exterior e outras discussões diplomáticas, são o que compõe o cenário de proximidade ou de afastamento entre nações.

Assim, parece claro que, diante das conjunturas atuais de beligerância entre Israel e a Palestina, o governo israelense desejasse poder contar com um governo brasileiro mais alinhado ao seu posicionamento político-ideológico.

Mas, por conta de todos os movimentos diplomáticos brasileiros, desde o início do conflito, ainda que o Brasil tenha deixado patenteado à sua indignação quanto ao ato terrorista cometido pelo Hamas contra cidadãos israelenses, a busca por uma construção pacífica dialógica entre as partes e de um cessar-fogo imediato para conter a carnificina contra civis palestinos, a maioria mulheres e crianças, têm sido intensos e constantes. O que vai na contramão das expectativas do governo israelense.

Vamos e convenhamos que as páginas da história mundial estão repletas de figuras nefastas, abjetas, infames, cujas práxis genocidas depreciam totalmente a condição civilizada do ser humano. E cada vez que elas emergem no horizonte há sempre a esperança de que o aprendizado oriundo da dor, do sofrimento, da miséria humana, seja capaz de impedir um novo episódio.

Aliás, a grande escritora Mary Shelley, ainda no século XIX, escreveu: “se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (SHELLEY, p.54)1.

Por isso, é estranho que diante da desumanidade que retrata a guerra, estejam uns e outros voltados para se encher de uma cólera indignada diante de palavras, que podem ser substituídas por outras, ao invés de se ater aos fatos concretos traduzidos na visão do morticínio de seres humanos.

E a paz? Onde fica a luta pela paz? A luta pela preservação da espécie humana? É constrangedor pensar como o oportunismo de ocasião consegue o feito de flexibilizar crenças, valores e princípios humanos. Vidas são vidas. Não dá para relativizar. Não dá para aceitar que entre seres humanos existam aqueles que importam e os que não importam. Portanto, uma guerra é sempre o símbolo maior do fracasso civilizatório. E isso é tão impactante que não há palavras para mitigar os efeitos.

Quando se vê um campo de refugiados, ou crianças vagando solitárias entre os escombros, ou corpos espalhados pelas vias públicas, ou mães tomadas pela perplexidade da dor, ... ninguém se preocupa em saber qual a identidade nacional daqueles seres humanos. Ninguém se preocupa em saber se é aqui, ali ou acolá. Simplesmente, se é tomado pela indignação, pela incompreensão, pela empatia fraterna, pela dor e tudo mais a compor o senso humanitário do Homo sapiens.

Há uma citação do Professor Milton Santos que diz, “A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une”. Antes de quaisquer diferenças, somos humanos. É isso o que deveria nos unir, a nossa condição humana! Mortais. Falíveis. Incompletos. Imperfeitos. Limitados. Enfim... Gente, de carne e osso.

Se verdadeiramente olharmos para o mundo, com olhos de ver, perceberemos o quão cheio de cicatrizes existem na sua pele. Marcas adquiridas ao longo da sua jornada existencial, na medida em que se permitiu repetir os erros, as deformidades, as arbitrariedades, os delírios, os narcisismos, de geração em geração.

Infelizmente, não domesticamos o selvagem que nos habita. Em essência, não diferimos dos que habitavam as cavernas.  Somos brutos, bárbaros, irracionais, incivilizados. Não temos apreço pela vida do outro e, nem tampouco, pela nossa. Somos arrogantes, prepotentes, vaidosos, tiranos, egocêntricos. Como se o rodopiar do mundo dependesse da nossa própria vontade, do nosso querer.

Como escreveu Renato Russo, “Ainda que eu falasse a língua dos homens / E falasse a língua dos anjos / Sem amor eu nada seria [...]”2. Aproveitemos, então, a oportunidade que o momento nos traz para desenvolver uma reflexão lúcida e isenta, sob o viés dos (des) caminhos da realidade contemporânea.  



1 SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/. Acesso em: 1º jul. 2019.



2 Monte Castelo (1989) – Renato Russo / https://www.youtube.com/watch?v=YMQ4YFz7iL0