O
veredicto
Por
Alessandra Leles Rocha
Embora não haja ineditismo na
inelegibilidade de um Ex-Presidente da República brasileiro, a decisão tomada,
hoje, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) diz muito ao eleitorado
direitista, em todos os seus matizes. Não, pela decisão se direcionar a um de
seus representantes; mas, pelo fato de desconstruir certos paradigmas que
vieram tentando reafirmar, com mais afinco, nos últimos cinco anos.
Talvez, o mais emblemático deles,
seja a ideia de que o poder pertence a todos aqueles que simpatizam e apoiam à
Direita. Afinal, essa é uma convicção tecida no inconsciente coletivo nacional,
desde os primórdios da colonização, quando todos os poderes, no campo social,
estavam concentrados nas mãos das elites. Desse modo, elas não só decidiam, mas
o faziam segundo seus interesses e conveniências, ou seja, estavam sempre aptas
a legislar em causa própria, enviesando radicalmente a simetria dos direitos e
deveres.
Algo que não é difícil de
perceber, quando se lança um olhar isento sobre os últimos anos no Brasil. A
Direita em todos os seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, não
assumiu simplesmente o poder, no que diz respeito a gestão pública. De saída ela
impôs a sua beligerância à República, à Democracia e ao Estado Democrático de
Direito.
Em relação à República, a
prioridade foi promover a ruptura com a participação popular, com a
possibilidade de os diversos segmentos sociais poderem contribuir para o bem
comum do país. Deixando a expressão República Federativa do Brasil praticamente
restrita à condição textual presente na Constituição de 1988.
Quanto à Democracia, em face da
alienação imputada por meio de distorções factuais e inverdades, promovidas por
autoridades e simpatizantes ao governo, com o auxílio intenso das mídias
sociais, o povo foi afetado no campo da construção de suas crenças, valores e princípios
cidadãos. Afinal, uma Democracia diante de tantos sinais de comprometimento e
deterioração ética e moral, impede a população de exercer a sua cidadania em
plenitude.
E o que dizer, então, sobre os
ataques contínuos ao Estado Democrático de Direito? De repente, o país foi
tomado por uma fúria contra a ideia de que, segundo determina a Constituição
Federal vigente, o poder do Estado é limitado pelos direitos dos cidadãos, a
fim de se evitar abusos do aparato estatal para com a população.
O modelo de governança decidiu,
então, insurgir contra as leis, desrespeitar o ordenamento jurídico e agir
segundo suas próprias convicções. Em cada espaço organizacional do governo, o
que se viu foi um rompimento explícito com os ritos, os códigos e as
regulamentações, em nome de uma nova ordem sumariamente estabelecida.
Assim, a decisão pela
inelegibilidade aponta para um resgate da normalidade institucional e
constitucional brasileira. A Constituição Cidadã, como é chamada a Constituição
de 1988, resistiu aos ataques abjetos da Direita e todos os seus matizes, mais
ou menos radicais e extremistas. Provando não só a existência de limites para a
manutenção da ordem e do equilíbrio social; mas, também, que quaisquer
tentativas de resgatar ideias retrógradas associadas a uma pseudossuperioridade
ou pseudoimportância, reafirmadas por certos grupos, especialmente, quando se
encontram em posições de poder e de influência, serão confrontadas e submetidas
aos rigores da lei.
Mas, não para por aí, a relevância
desse momento. O veredicto de hoje fortalece o Brasil, também, no cenário
internacional na medida em que une seus esforços aos de todos aqueles que vêm
se empenhando arduamente na defesa Democrática e contra a expansão das forças
autoritárias e radicais ao redor do planeta.
Sem contar que uma das grandes
lições que ficam desse processo no TSE é a atenção que se deve dar às palavras,
em razão do franco movimento contemporâneo de manipulação, desconstrução e
negação dos fatos, para disseminar inadvertidamente milhões de inverdades e
confundir o pensamento da sociedade.
Não é à toa, portanto, que as Fake News podem ser consideradas as
grandes promotoras de abalo à Democracia, porque através delas se criou uma
flexibilização e/ou relativização demasiada sobre o conjunto de conceitos que
orbitam o universo democrático.
O que significa que uma população
contaminada e inebriada por notícias falsas diminui o seu senso crítico e analítico
em relação ao fato de que “a própria defesa
da democracia é muitas vezes usada como pretexto para sua subversão. Aspirantes
a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e sobretudo,
ameaças à segurança – guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas –
para justificar medidas antidemocráticas” (Steven Levitsky).
Daí a necessidade de colocar a cabeça
para pensar e refletir sobre o ontem, o hoje e o amanhã, no contexto
brasileiro. A inelegibilidade pune pessoas; mas, não pune ideias. Portanto, o
desafio de evitar os retrocessos, os absurdos, as arbitrariedades, não acabou.
Há milhares de pessoas a pensar e defender os mesmos pontos de vista e
comportamentos que culminaram na inelegibilidade, nos atos antidemocráticos, na
minuta golpista, no negacionismo às vacinas, no terraplanismo, ...
E entender esse arraigamento ideológico implica em reconhecer que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico” (Umberto Eco - O cemitério de Praga, 2010).