Ah,
as certezas!
Por
Alessandra Leles Rocha
Ah, as certezas! Que no mundo contemporâneo
encenam o duelo entre a razão e a idealização exacerbada! Eis o delírio se
esfacelando, como tinha que ser! O movimento beligerante do grupo mercenário
Wagner, que estava trabalhando em favor do governo russo na guerra contra a
Ucrânia, expressa exatamente isso. Afinal, essas personagens emergiram,
justamente, do excesso de certezas russo.
A anexação da península da
Crimeia, pelo governo russo, em 2014, pode ser considerada um ensaio bem-sucedido
para as pretensões do Kremlin, se analisada do ponto de vista limitado ao seu
recorte espaço/temporal. E com base nisso, foi que a Rússia se encheu de
certezas sobre seu plano expansionista contemporâneo. Sem maiores resistências e
objeções iniciais, ela tinha como certo o sucesso, quando decidisse
operacionalizar uma ação de grandes proporções. É importante dizer que, nessa
ocasião, as relações russas com grupos mercenários já existiam1, embora oficialmente negadas.
Entretanto, querendo ou não
admitir, a contemporaneidade impôs para os humanos uma intensidade à sua dinâmica,
que o tempo se vestiu de uma imprevisibilidade fora de controle. Tudo pode
mudar a qualquer instante, à revelia das vontades e quereres de quem quer que
seja. Considerando, então, que de 2014 até 2022, se passou quase uma década, a estratégia
russa foi sim, contaminada por uma dose imensa de ingenuidade, no sentido de
acreditar que o seu balizamento referencial havia permanecido intacto.
Nesses oito anos, muita água
correu por debaixo das pontes do mundo! Inclusive, com o surgimento de um vírus
desconhecido que colocou a humanidade de joelhos. O funcionamento das estruturas sociais,
políticas, econômicas, diplomáticas, foi radicalmente alterado em relação ao
que vigorava, até então. Houve uma ruptura drástica e dramática para os seres
humanos que impôs a necessidade de construir novos paradigmas capazes de sustentar
uma nova ordem social em curso. A vida precisou, portanto, ser repensada sob as
perspectivas de micros e macrocosmos.
E ao decidir invadir a Ucrânia,
em 2022, a Rússia se absteve por completo de considerar essa outra realidade
global, na qual ainda reverberava, por exemplo, os desdobramentos e consequências
pandêmicas. O cenário era de um mundo enlutado, empobrecido, em franco processo
de reorganização, que não precisava de nenhum outro tipo de instabilidade ou de
tensão. Todos precisavam de paz para se reequilibrar diante de árduo processo
de rescaldo.
Mas, o pensamento russo apostou suas
fichas na convicção de que esse seria, então, um momento ainda mais ideal,
tendo em vista que, pelo menos em tese, eles venceriam de maneira rápida e sem
maiores consequências. Pois é, enceguecidos pelas certezas, eles não perceberam
que a Pandemia havia sido um instrumento de agregação, que buscava pela
cooperação coletiva o fortalecimento das populações, e deram um gigantesco tiro
no pé.
A guerra se iniciou e as conjunturas
mostraram a sua face, bem mais hostil, aos russos. Da idealização para a
prática eles descobriram um verdadeiro abismo! Uma muralha de resistência
estendeu-se além das fronteiras ucranianas, dado o apoio internacional de
diversos países; sobretudo, aqueles pertencentes a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN). Acontece que a resistência prolongou a duração do
conflito, como era de se esperar. Em uma guerra, quanto mais o tempo passa,
mais o emprego de investimentos financeiros se torna necessário para conter a
assimetria das forças.
Mas não era somente isso que não estava
nos planos do governo russo. Seu exército não conseguiria suprir a demanda do
conflito e as baixas inevitáveis viriam a fragilizar cada vez mais o seu
poderio. Sem contar com forças militares adicionais, oriundas de possíveis parceiros
diplomáticos, eles não tiveram outra opção a não ser estreitar, cada vez mais,
os laços com os mercenários para lutar a seu favor. Acontece que mercenários
não lutam por bandeiras, por ideias, por líderes, eles lutam por diferentes
tipos de vantagens, gerando um poço sem fundo para um leque bastante
diversificado de ambições.
O que significa que as recentes notícias,
dando conta de que houve um recuo quanto a uma invasão de Moscou pelo grupo 2, deve ter custado muito caro para a
Rússia e provocado, inevitavelmente, um impacto severo sobre suas estruturas de
poder. Quem diria, mais uma traquinagem do imponderável sobre o excesso de
certezas do Kremlin! A rebeldia dos mercenários expôs para o mundo a dimensão
da imprevidência russa quando decidiu criar uma guerra. Aliás, uma lição
importantíssima para todo o cenário político-partidário global! Cuidado com o
excesso de certezas! Com as vaidades! Com os pseudopoderes! Com os mercenários
de plantão!
O mundo contemporâneo não
transita de maneira linear, homogênea, uniforme. Muito pelo contrário! Da manhã
para tarde, da tarde para a noite, da noite para a madrugada, tudo pode mudar! Já
que o narcisismo, o individualismo e o egocentrismo correm soltos, sem amarras.
Assim, um evento aqui, ou ali, ou acolá, para desalinhar as órbitas dos astros
e alterar o curso dos planos infalíveis de uns e outros, por aí.
Porque no campo das relações
coletivas, foi, é e sempre será uma maluquice total pensar que se pode
responder pelo (in) consciente do outro. Todo mundo sabe, ou pelo menos deveria
saber, que o ser humano é um ser inacabado, incompleto, sujeito às mudanças
internas e externas da vida, as quais se impõem diante dele, e para isso, ele nem
sempre precisa pedir benção para ninguém.