sábado, 24 de junho de 2023

Ah, as certezas!


Ah, as certezas!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ah, as certezas! Que no mundo contemporâneo encenam o duelo entre a razão e a idealização exacerbada! Eis o delírio se esfacelando, como tinha que ser! O movimento beligerante do grupo mercenário Wagner, que estava trabalhando em favor do governo russo na guerra contra a Ucrânia, expressa exatamente isso. Afinal, essas personagens emergiram, justamente, do excesso de certezas russo.

A anexação da península da Crimeia, pelo governo russo, em 2014, pode ser considerada um ensaio bem-sucedido para as pretensões do Kremlin, se analisada do ponto de vista limitado ao seu recorte espaço/temporal. E com base nisso, foi que a Rússia se encheu de certezas sobre seu plano expansionista contemporâneo. Sem maiores resistências e objeções iniciais, ela tinha como certo o sucesso, quando decidisse operacionalizar uma ação de grandes proporções. É importante dizer que, nessa ocasião, as relações russas com grupos mercenários já existiam1, embora oficialmente negadas.

Entretanto, querendo ou não admitir, a contemporaneidade impôs para os humanos uma intensidade à sua dinâmica, que o tempo se vestiu de uma imprevisibilidade fora de controle. Tudo pode mudar a qualquer instante, à revelia das vontades e quereres de quem quer que seja. Considerando, então, que de 2014 até 2022, se passou quase uma década, a estratégia russa foi sim, contaminada por uma dose imensa de ingenuidade, no sentido de acreditar que o seu balizamento referencial havia permanecido intacto.

Nesses oito anos, muita água correu por debaixo das pontes do mundo! Inclusive, com o surgimento de um vírus desconhecido que colocou a humanidade de joelhos.  O funcionamento das estruturas sociais, políticas, econômicas, diplomáticas, foi radicalmente alterado em relação ao que vigorava, até então. Houve uma ruptura drástica e dramática para os seres humanos que impôs a necessidade de construir novos paradigmas capazes de sustentar uma nova ordem social em curso. A vida precisou, portanto, ser repensada sob as perspectivas de micros e macrocosmos.  

E ao decidir invadir a Ucrânia, em 2022, a Rússia se absteve por completo de considerar essa outra realidade global, na qual ainda reverberava, por exemplo, os desdobramentos e consequências pandêmicas. O cenário era de um mundo enlutado, empobrecido, em franco processo de reorganização, que não precisava de nenhum outro tipo de instabilidade ou de tensão. Todos precisavam de paz para se reequilibrar diante de árduo processo de rescaldo.

Mas, o pensamento russo apostou suas fichas na convicção de que esse seria, então, um momento ainda mais ideal, tendo em vista que, pelo menos em tese, eles venceriam de maneira rápida e sem maiores consequências. Pois é, enceguecidos pelas certezas, eles não perceberam que a Pandemia havia sido um instrumento de agregação, que buscava pela cooperação coletiva o fortalecimento das populações, e deram um gigantesco tiro no pé.

A guerra se iniciou e as conjunturas mostraram a sua face, bem mais hostil, aos russos. Da idealização para a prática eles descobriram um verdadeiro abismo! Uma muralha de resistência estendeu-se além das fronteiras ucranianas, dado o apoio internacional de diversos países; sobretudo, aqueles pertencentes a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Acontece que a resistência prolongou a duração do conflito, como era de se esperar. Em uma guerra, quanto mais o tempo passa, mais o emprego de investimentos financeiros se torna necessário para conter a assimetria das forças.    

Mas não era somente isso que não estava nos planos do governo russo. Seu exército não conseguiria suprir a demanda do conflito e as baixas inevitáveis viriam a fragilizar cada vez mais o seu poderio. Sem contar com forças militares adicionais, oriundas de possíveis parceiros diplomáticos, eles não tiveram outra opção a não ser estreitar, cada vez mais, os laços com os mercenários para lutar a seu favor. Acontece que mercenários não lutam por bandeiras, por ideias, por líderes, eles lutam por diferentes tipos de vantagens, gerando um poço sem fundo para um leque bastante diversificado de ambições.

O que significa que as recentes notícias, dando conta de que houve um recuo quanto a uma invasão de Moscou pelo grupo 2, deve ter custado muito caro para a Rússia e provocado, inevitavelmente, um impacto severo sobre suas estruturas de poder. Quem diria, mais uma traquinagem do imponderável sobre o excesso de certezas do Kremlin! A rebeldia dos mercenários expôs para o mundo a dimensão da imprevidência russa quando decidiu criar uma guerra. Aliás, uma lição importantíssima para todo o cenário político-partidário global! Cuidado com o excesso de certezas! Com as vaidades! Com os pseudopoderes! Com os mercenários de plantão!

O mundo contemporâneo não transita de maneira linear, homogênea, uniforme. Muito pelo contrário! Da manhã para tarde, da tarde para a noite, da noite para a madrugada, tudo pode mudar! Já que o narcisismo, o individualismo e o egocentrismo correm soltos, sem amarras. Assim, um evento aqui, ou ali, ou acolá, para desalinhar as órbitas dos astros e alterar o curso dos planos infalíveis de uns e outros, por aí.

Porque no campo das relações coletivas, foi, é e sempre será uma maluquice total pensar que se pode responder pelo (in) consciente do outro. Todo mundo sabe, ou pelo menos deveria saber, que o ser humano é um ser inacabado, incompleto, sujeito às mudanças internas e externas da vida, as quais se impõem diante dele, e para isso, ele nem sempre precisa pedir benção para ninguém.