terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Uma histórica sombra nefasta sobre o Brasil


Uma histórica sombra nefasta sobre o Brasil

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Assim pensa a direita e sua trupe. Sem constrangimentos. Sem pudores. Sem meias palavras. Essa gente faz questão de ostentar a sua incivilidade como instrumento de poder. Foi assim, durante a Segunda Guerra Mundial. É assim, agora. E se nada for feito para conter tamanha fúria, será assim, no futuro.

Entretanto, tal comportamento abjeto deixa claro, bem claro, que o rol de pessoas ligadas ao massacre e dizimação dos povos yanomamis, em Roraima, é bem maior do que parece e se associa a figuras dos diferentes entes da federação, ou seja, Municípios, Estado e União. Cada um com o seu quinhão de responsabilidades, diretas e indiretas, nessa monstruosidade social.

A fala do governador do estado de Roraima a um veículo de comunicação e informação nacional, por exemplo, é como um portal do tempo, em que se é lançado abruptamente aos idos de 1500, tamanho o negacionismo e o espírito depredatório presentes em suas palavras. Ele lança o povo Yanomami ao mais baixo nível de objetificação, em uma tentativa repugnante de justificar a desimportância social dessas pessoas para o país 1.

O que fez vir à tona a lembrança de uma descrição feita por Anne Frank, em seu diário nos tempos do nazismo, “Criticam tudo, e quero dizer mesmo tudo, sobre mim: o meu comportamento, a minha personalidade, as minhas maneiras; cada centímetro de mim, da cabeça aos pés, dos pés à cabeça, é objeto de mexericos e debates. São-me constantemente lançadas palavras duras e gritos, embora eu não esteja habituada com isso. Segundo as autoridades, eu deveria sorrir e aguentar”. Talvez, seja a mesma impressão e percepção dos Yanomamis. Como se tivessem nascido para não existir, ficando à disposição de serem propriedades dos poderosos, servindo-lhes e satisfazendo seus interesses, inclusive, os mais inomináveis.

Essa guinada saudosista imposta pela direita e sua trupe é estarrecedora! Ao invés do mundo buscar a reafirmação do que fez de melhor, de mais produtivo, de mais criativo, até aqui, ele revira os baús para trazer de volta o seu pior, o seu lado mais sombrio e desumano, a sua face mais odiosa e desprezível. E esse comportamento adquire ares ainda mais pesados e insuportáveis, porque ele teve que se ajustar e tentar fazer caber no contexto de uma realidade totalmente diferente; mas, não menos tóxica.

Pois é, infelizmente, ao juntar passado e presente o resultado se potencializou negativamente. O mundo comandado pelas forças cientificas e tecnológicas; sobretudo, no campo dos meios de informação e comunicação, não só acirraram o individualismo, o narcisismo e o egoísmo humano, como, também, possibilitaram a disseminação em larga escala dessas expressões e manifestações. De modo que ficou muito mais fácil espalhar essas ideias destrutivas e beligerantes, por aí.

Com a roda do tempo girando freneticamente, o ser humano foi consumido por uma fatídica e crônica falta de tempo para dar vazão a sua existência integral. Portanto, não se trata necessariamente de culpabilizar a fragilidade educacional quanto ao recrudescimento da estupidez, da ignorância. O fiel dessa balança é o tempo. Cada vez mais escasso pelo excesso de atividades e compromissos que se digladiam entre si na captura da atenção humana. 

O que em termos cognitivos e intelectuais coloca os indivíduos cada vez mais distantes das análises críticas e reflexivas, para alinhá-los ao efeito manada contemporâneo. Eles leem as manchetes, mas não os conteúdos e formam suas opiniões a partir da fragilidade de linhas que nem sempre dizem o essencial. Sob a máxima de não perderem o seu tempo, eles deixam de opinar, de escolher, de decidir, para se sujeitarem às opiniões, escolhas e decisões alheias já preestabelecidas.

Considerando que aqueles que controlam os meios tecnológicos são os mesmos que controlam toda a sociedade, eles conseguem manter o comportamento humano sob rédeas curtas, sem maiores tensões, agitações e rebeldias. Gota a gota, eles disseminam as suas ideologias através das ferramentas tecnológicas e virtuais, de modo que facilmente elas se incorporam no inconsciente coletivo, sem transpirar quaisquer preocupações sobre eventuais desdobramentos e consequências que possam emergir desse movimento.

É com base nesse cenário que a direita brasileira e sua trupe acreditam que podem fazer e acontecer sem a menor resistência. Que tendo eles o poder social, político e econômico, nas mãos, a sua empreitada obterá total êxito. Mas será? Excesso de confiança, de convicção, de certeza é sempre algo temerário, considerando que vida em si é atravessada pelo imponderável. Haja vista o próprio exemplo da segunda Guerra Mundial, não é mesmo?

Só posso dizer que, nesse momento, a exaustão de testemunhar os acontecimentos em tempo, quase real, é imensa e repleta de uma aura de tristeza, de dor, de indignação. É difícil de acreditar que um ser humano seja capaz de tamanha brutalidade, desprezo e covardia com seu semelhante, em nome da cobiça, da ganância, do poder 2.

Por isso, queria mesmo era fechar os olhos e só os abrir com a luz da justiça sendo feita, cumprida, exaltada.  Mas, por enquanto, o que resta é debruçar reflexivamente sobre o que disse Albert Camus, “Vou-lhe dizer um grande segredo, meu caro. Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias”. Afinal, “Não espere por uma crise para descobrir o que é importante em sua vida” (Platão) e na vida de seu país.


A aculturação em nome da homogeneização social brasileira


A aculturação em nome da homogeneização social brasileira

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A aculturação apesar de uma herança maldita do sistema colonial, trata-se de um processo que sempre esteve presente na história da humanidade em diferentes momentos.

E a relevância da discussão e da reflexão a esse respeito está no fato de que ela não só invisibiliza e nega todos os aspectos socioculturais e comportamentais da identidade de um determinado grupo humano; mas, faz desse processo um instrumento de desajuste e conflito nas relações sociais.

Assim, olhando para o mundo do século XXI, onde milhares de pessoas encontram-se na condição de refugiados, ou seja, de pessoas que deixam tudo para trás para escapar de conflitos armados, perseguições e mudanças climáticas extremas, temos uma condição de perceber e entender melhor a questão da aculturação.

Sem certas amarras que o distanciamento temporal entre o colonialismo e a contemporaneidade estabelecem naturalmente, o importante nessa reflexão é focar no ponto nevrálgico do processo de aculturação que está na sua associação direta e, quase, simbiótica, com os cenários de extrema violência e ruptura.

Desse modo temos que partir da ideia de que os seres humanos são o resultado da sua identidade. O que diz respeito a todo o conjunto de aspectos materiais (biótipo) e subjetivos (costumes, crenças, normas, valores) que os caracterizam e são incorporados ao longo da sua existência.

Portanto, qualquer interferência nesse contexto representa uma transformação profunda do status de ser do indivíduo, provocando em muitas situações o não reconhecimento de si mesmo. Não é à toa que as questões identitárias estão profundamente associadas aos movimentos adaptativos. Ora, elas demandam tempo e certa estabilidade para se constituírem e se firmarem.

Então, quando entra em cena situações que rompem com essa dinâmica há um conflito existencial imediato entre manter a própria cultura, a própria identidade, ou permitir-se adequar e se ajustar aos padrões do outro, do opressor. O que para certos grupos sociais é demasiadamente brutal.

Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, quando milhares de japoneses refugiaram para o Brasil, eles constituíram pequenas comunidades no interior de São Paulo e do Paraná, principalmente, a fim de preservarem a sua cultura, com vistas a um dia poderem retornar à sua terra natal.

O fato de terem saído às pressas de seu país, nas condições em que o fizeram, havia deixado marcas profundas e dolorosas demais para terem que se submeter a uma perda identitária ainda maior. E muitos, apesar das conscientes manifestações de resistência cultural, acabaram morrendo pela força inconsciente da tristeza, da saudade, do inconformismo, da inadequação à nova realidade.

É por essas e por outras, que não se pode minimizar e banalizar a questão da aculturação dos povos originários, como se fez no período colonial.  O nível de informação e de conhecimento que se tem no século XXI sobre isso, permite ao cidadão contemporâneo compreender com clareza, a partir da visão da própria mobilidade humana nos processos migratórios.

Afinal, o cenário contemporâneo traz luz as desdobramentos e consequências desse processo para as identidades de quem migra e de quem os recebe, constituindo uma percepção de que nem sempre expressam características harmônicas e pacíficas. Sim, porque a aculturação impõe uma nova contextualização social para qual o indivíduo não está preparado.

Certamente foi com base nessa compreensão que a Constituição Federal, de 1988, fez questão de estabelecer que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).

Subjugá-los a um novo modelo cultural é condená-los a uma morte lenta e gradual. Principalmente, os grupos isolados ou com mínimo ou nenhum contato com o homem branco.  Haja vista a memória colonial brasileira, quando relata o contato inicial entre o colonizador português e os nativos brasileiros, em que resultou na morte de milhares de indígenas pelo contágio com a gripe, um vírus totalmente desconhecido, do ponto de vista biológico, por eles.

E enquanto o pior não acontece, a aculturação os transforma em verdadeiros fantasmas vivos de si mesmos. Deslocados. Desajustados. Confusos. Diante de uma existência totalmente antagônica à sua identidade. Língua estranha. Comida estranha. Costumes estranhos. Roupas estranhas. Remédios estranhos. ...

Mesmo porque, todo esse processo se dá, na maioria das vezes, de maneira impositiva, autoritária, abusiva, cruel. Há o emprego visível da desproporcionalidade de forças sendo reafirmada.

Portanto, antes de hastear a bandeira da aculturação dos povos originários, ou de quaisquer outros seres humanos, olhe no espelho e reflita sobre si mesmo, sobre o que seria da sua identidade se fizessem isso com você.

Afinal, como bem escreveu o cineasta português, Manoel de Oliveira, “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isso pode explicar um pouco os limites da própria vida”.

domingo, 29 de janeiro de 2023

Yanomamis – Crise Humanitária. Crise Ambiental. Crise Capital.


Yanomamis – Crise Humanitária. Crise Ambiental. Crise Capital.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mahatma Gandhi dizia que “A natureza pode suprir todas as necessidades do homem, menos a sua ganância”. Assim, se por um lado as medidas humanitárias tomadas em relação ao abandono perverso e cruel dos Yanomamis representa o ponto de partida para o seu resgate da dignidade humana, por outro elas não eximem a necessidade urgente de ruptura com o ciclo de garimpagem e exploração ilegal na região onde vivem.

Enquanto muita gente se colocou na linha de frente para ajudar os Yanomamis, nesse momento tão crítico da sua história, disponibilizando tempo e esforços para salvá-los das doenças e do quadro famélico em que se encontram, percebi com certo pesar e tristeza um comportamento menos proativo de certos setores do governo federal, como o Ministério da Defesa, por exemplo.

Trata-se de uma observação importante e pertinente, porque esse ministério deveria estar atuando de maneira mais ativa e efetiva, até mesmo para facilitar a chegada e o trabalho das forças de atendimento médico-hospitalar naquela região. Afinal de contas, durante muitos anos, o país se orgulhou e ostentou  a existência  do Batalhão Amazonas, o único Batalhão de Infantaria de Selva Aeromóvel do Exército Brasileiro com estrutura organizacional completa 1.

Imagino que o mesmo ainda se encontre ativo e operante, razão pela qual entendo que ele poderia ser de extrema ajuda na atual conjuntura. Primeiro, como um apoio adicional ao trabalho da Força Aérea Brasileira (FAB), que já montou um hospital de campanha na área externa da Casa de Saúde Indígena (Casai), em Boa Vista/RR, o qual vem operando em situação de superlotação 2, por conta do número de indígenas doentes que é muito superior à capacidade do mesmo.

Segundo, porque já se sabe por meio de relatórios institucionais e matérias jornalísticas, de diferentes veículos de imprensa nacional e estrangeiro, que garimpeiros e exploradores ilegais permanecem agindo de diferentes formas para obstaculizar quaisquer auxílios aos Yanomamis, a fim de comprometer a sua sobrevivência e subjugá-los à fúria de seus propósitos devastadores.

Sem contar que, enquanto eles dominam a região, a destruição da floresta persiste e a extração de ouro e outros minerais, de forma ilegal, acontece em total desrespeito às normas ambientais brasileiras. O que significa que a vida dos Yanomamis permanece ameaçada, considerando que o seu habitat natural está sendo destruído de maneira praticamente irreversível.

Desse modo, enquanto nenhuma medida for tomada, no sentido de fazer cumprir a legislação nacional e conter a atuação de garimpeiros e exploradores ilegais na região, o cenário atual, apesar da recente publicização da tragédia humanitária contra os povos indígenas, permanecerá fluindo.

É preciso entender que esse modelo de relação depredatória está atrelado a um movimento circular destrutivo, ou seja, eles destroem, roubam, matam, porque não existe qualquer tipo de resistência por parte do Estado brasileiro. São décadas e décadas assim, sem que se esboce qualquer contestação aos ultrajes criminosos presentes na região indígena.

Em linhas gerais, isso significa um modelo de dominação pelo poder paralelo da ilegalidade que não se constrange e nem se intimida, porque não reconhece e nem percebe a ação contundente do Estado brasileiro, através de seus corpos multissetoriais, dentro daquele espaço geográfico.

Reconheço que o desmantelamento recente 3, nos últimos quatro anos, da estrutura socioambiental, especialmente, na região norte brasileira, impôs desafios importantes nesse sentido. Acontece que essa pauta foi apresentada como a mais importante da nova gestão federal.

Então, há toda uma expectativa em relação às ações que irão colocar a situação nos trilhos novamente, o mais rápido possível. Afinal, a região Amazônica tem pressa. Os povos originários, incluindo os Yanomamis, têm pressa. A fauna e a flora têm pressa. Os rios e os igarapés têm pressa. O equilíbrio ambiental do planeta Terra tem pressa. De modo que todas as ajudas serão sempre muito bem-vindas!

O ator e ativista ambiental norte-americano, Ed Begley Jr., tem uma citação muito interessante. Ele disse, “Não entendo porque quando destruímos algo criado pelo homem, chamamos isso de vandalismo, mas quando destruímos algo criado pela natureza, chamamos de progresso”. Pois é, a avassaladora destruição dos prédios dos três poderes, em Brasília/DF, no último dia 8 de janeiro, prova essas palavras.

Não se trata de levar a reflexão para o campo do mais ou menos importante, porque em ambos os casos, Brasília e a Amazônia, estamos falando de patrimônio material e imaterial da humanidade. A questão é o modo como nos comportamos, como analisamos, como nomeamos as situações, como reagimos diante delas.

É isso que dá a dimensão da importância que elas têm ou, pelo menos em tese, deveriam ter. Portanto, isso define de que lado estamos, de que maneira nossa consciência cidadã se posiciona.

Diante de tudo o que temos visto em termos de transformações climáticas extremas e de destruição descomunal antrópica, no Brasil e no mundo, não há mais espaço para dizer que não entende que “Não herdamos a Terra de nossos ancestrais; nós pegamos emprestado de nossos filhos” (Wendell Berry).

Desse modo, qualquer resistência nesse contexto, antes do que se possa imaginar, será desconstruída pela lógica absoluta de que “Pessoas que não sustentam árvores, em breve, viverão em um mundo que não sustenta pessoas” (Bryce Nelson).

Parece que dessa vez a pizza vai queimar!


Parece que dessa vez a pizza vai queimar!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A cada semana que passa. A cada nova notícia que emerge. É visível que a tensão se estabeleça diante da tênue linha que separa a justiça e a impunidade, no Brasil. Especialmente, em relação às parcelas de responsabilidade que cabem a cada um dos agentes públicos envolvidos no âmbito das tragédias e calamidades socioeconômicas, ocorridas nos últimos quatro anos.

Afinal, depois do 8 de janeiro, quando o horror explodiu e foi além de Brasília/DF, as camadas ultrajantes da recente história nacional começaram a ser reviradas e a trazer à tona o que de pior existe na política brasileira, ou seja, a politicagem no sentido literal da sua vilania.

Razão pela qual mais atenção obteve o fato de o ex-presidente da República ter saído do país antes do fim do seu mandato. Embora, a quilômetros de distância do olho desse furacão, isso em nada mudou o fato de que as páginas da história que ele ajudou, e ainda continua ajudando, a escrever, permanecem disponíveis para o escrutínio da justiça e da opinião pública.

Aliás, é bom ressaltar que a ideia de sair à francesa, como ele fez, não foi a melhor das estratégias. O Brasil, tão camarada na acolhida aos estrangeiros; especialmente, aqueles em uma situação pouco convencional, como foi o caso, nem sempre encontra a mesma contrapartida.  

No cenário internacional a situação costuma ser bem outra, bem menos afável. Então, considerando que a transitoriedade do status dele, enquanto agente público, para fins de passaporte e autorização de permanência em país estrangeiro, se alterou muito rapidamente, isso gerou inevitavelmente uma situação desagradável sob diferentes aspectos diplomáticos.

Ora, independentemente se anônimo ou famoso, fora do seu território nacional qualquer um será sempre um estrangeiro, mesmo que tenha visto permanente ou status de naturalizado, mesmo que siga fielmente as regras do jogo, porque aos olhos do nativo local ele (a) é, e sempre será, um forasteiro.

Isso acontece porque “a ordem social é mantida por meio de oposições binárias, tais como a divisão entre “locais” (insiders) e “forasteiros” (outsiders). A produção de categorias pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status de “forasteiros”, de acordo com o sistema social vigente, garante um certo controle social. A classificação simbólica está, assim, intimamente relacionada à ordem social” (Woodward, 2000, p. 46 1).

O que explica o fato de alguns países demonstrarem um trato distinto entre situações de deslocamento geográfico (migrantes), de refugiados e de imigrantes, inclusive, segundo certos critérios nada humanitários e equitativos. Algo que a mídia tem trazido, cada vez com mais frequência; sobretudo, em relação aos indivíduos em condições absolutas de ilegalidade.

Desse modo, sobre eles (as) acaba recaindo um peso gigantesco no que diz respeito ao cumprimento das normas, das regras, das legislações locais. Entretanto, é bom lembrar que não é só a ausência de autorização diplomática a constituir um obstáculo no processo migratório.

As avaliações são feitas caso a caso e obedecem a uma análise profunda dos pretensos candidatos a viver naquele país de maneira temporária ou definitiva. O que significa que não basta apenas a intenção de viver aqui, ali ou acolá. Tudo depende do aceite ou não por parte daquela determinada embaixada ou consulado.  

Se existem senões sociais, jurídicos ou políticos, por exemplo, que possam vir a afetar as relações diplomáticas entre os países envolvidos, a questão se torna ainda mais delicada. Não podemos nos abster de considerar o fato de que tal contexto tem sido um desafio global e imposto discussões éticas importantíssimas frente aos problemas sociais, políticos e econômicos já presentes em cada país.

Afinal de contas, há tensões e conflitos suficientes, em curso, que sinalizam os riscos de amplificá-las a partir de migrações passíveis de mais discussão e de repercussão midiática e diplomática negativa.  Eventuais excepcionalidades, nesse contexto, costumam sugerir um ar de distinção nem sempre apropriado ou politicamente correto.

Particularmente, quando se vê diariamente milhares de seres humanos sendo impedidos severa, e às vezes, brutalmente, de entrar em diversos países. Pessoas que estão flagrantemente em condição de indignidade humana e aquela acolhida, por um país estrangeiro, pode significar-lhes, na maioria das vezes, o estreito limite entre a vida e a morte. 

Desse modo, feito esse breve parêntese, voltemos à reflexão sobre a tênue linha que separa a justiça e a impunidade no Brasil, a qual tanto vem afligindo milhares de brasileiros. Porque não me parece que a impunidade vai vencer dessa vez. Começo a sentir cheiro de pizza queimada!

O motivo parece claro. Certas pessoas cometeram o erro crasso de mexer com a Democracia, com o Estado de Direito, com a Amazônia e seus povos originários, com a dignidade humana, enfim ... Justamente em um país geopoliticamente estratégico. Mexeram, então, em assuntos caros e sensíveis a um vasto contingente global.

O que significa que tudo isso voltou os olhos do mundo para o Brasil e reverberou pressões diplomáticas muito mais fortes e intensas do que aquelas que poderiam emergir internamente. Portanto, há muita coisa em jogo, dessa vez.

E tomando, por exemplo, só o caso do extermínio de povos indígenas, que já é de conhecimento do Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia/Países Baixos, há sinalização de eventual possibilidade de resultado totalmente desfavorável aos indiciados, dada a robustez do processo.

Vale ressaltar que o papel deste tribunal só figura caso fique demonstrada qualquer impossibilidade do exercício jurídico pela corte brasileira, no sentido de dar curso aos trâmites do processo penal. Assim, se isso vir a acontecer, caso se tenha uma condenação pelo TPI, não importa o domicílio do (a) acusado (a), pois onde ele (a) estiver será preso e levado para Haia.

Assim sendo, ao que tudo indica, dessa vez, o Brasil extrapolou as fronteiras do tolerável e a disposição em favor da impunidade se esgotou. Ao seguir os rastros do desmantelamento governamental operacionalizado, nesses últimos quatro anos, se tem a devida dimensão das infrações penais que foram cometidas contra o país e sua população. Sobretudo, em relação às parcelas mais vulneráveis e desassistidas. De modo que há um sentimento de indignação tão forte, que o clamor por justiça não parece que irá esmorecer.

Mas, sendo essa uma impressão é importante permanecer atento, vigilante. Pois, como disse o advogado e escritor Leon Frejda Szklarowsky, “A impunidade é a matriz e a geratriz de novos e insensatos acontecimentos e o desmoronamento do que ainda resta de bom na alma humana”. 



1 SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença – A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, 133p. 

sábado, 28 de janeiro de 2023

É urgente e necessário refletir sobre a dignidade nacional!


É urgente e necessário refletir sobre a dignidade nacional!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não é só pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, na capital federal, que vem a necessidade de se colocar um freio urgente no extremismo da direita e sua trupe 1. Isso foi só a cereja do bolo! Na verdade, é o conjunto da obra que se arrasta há alguns anos, no Brasil, que demanda medidas de vigilância e aplicação de leis mais contundentes em nome de preservar as orientações da Constituição Federal sobre uma sociedade livre justa e solidária, a promoção do bem de todos, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo. É sobre essas reflexões e ações que emergiu o “Pacote da Democracia” 2 apresentado pelo Ministro da Justiça, nos últimos dias.

O saudosismo oportunista de muita gente por aí vem fomentando, há tempos, as traças antidemocráticas e impedindo uma visão clara e objetivo sobre o país. O Brasil contemporâneo, do século XXI, de um jeito ou de outro está ajustado aos caminhos do mundo. Portanto, está longe de ser o país de seis décadas atrás. A população mais que dobrou. Os meios de comunicação entraram na era das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), no nível mais high tech que se possa imaginar 3. Os comportamentos e as ideologias foram submetidos a uma série de desconstruções e ressignificações para atender às exigências do novo modelo social. Nada é mais como antes!

Daí a necessidade imediata de promover o desapego. Aceitar que, há alguns séculos, o Brasil rompeu com seus grilhões obscurantistas históricos para viver a odisseia de uma democracia. E para isso é fundamental que o cotidiano do país se distancie de realidades paralelas, de interpretações constitucionais enviesadas e distorcidas, de achismos e casuísmos, de faltar com o nome correto para as coisas e as situações. Ora, democracia não se faz da boca para fora! A subjetividade democrática é intrínseca à sua materialidade em ações e comportamentos.  Se o Brasil pretender figurar com destaque no panteão da democracia mundial é assim que deve ser.

Assim sendo, passamos da hora de medidas mais contundentes nesse contexto! Foi o eterno pisar em ovos das autoridades brasileiras, em conjunto com uma significativa parcela da sociedade civil, que distendeu, em diferentes formas e conteúdos, o tecido nacional já carcomido pelas traças antidemocráticas e que resultou em um festival de horrores e desumanidades inimaginados.

Bem que Darcy Ribeiro avisou: “Às vezes se diz que nossa característica é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros” (O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil, 1995).

Por isso, assistimos a quase 700 mil cidadãos brasileiros morrerem pela COVID-19, o negacionismo contribuir para o desperdício de doses de vacina, a mais de 40 mil crianças e adolescentes se tornarem órfãos pela pandemia, as milhares de pessoas desenvolverem silenciosamente a chamada COVID-19 longa, o país ostentar a marca de 33 milhões de famintos, as 570 crianças yanomamis serem vítimas de mortes evitáveis, ... A beligerância sórdida e abjeta foi explicitamente disseminada pela direita e sua trupe, nas arenas do mundo real e virtual, sem maiores resistências.

Quiseram acreditar em bravata, em fanfarronice, em presepada; mas, só porque isso parecia ser mais digerível. Na verdade, ninguém era ingênuo o bastante para pensar que as investidas terroristas e golpistas, exibidas em plena luz do dia ou da noite, não eram para valer. Afinal, essa gente mostrou a cara para quem quisesse ver. Fez questão de deixar as digitais físicas e imateriais nas suas ações. A troco de quê, se não era para medir forças, hein? Será que todos ali eram loucos, insanos, fragilizados na capacidade das suas faculdades mentais? Sem medo de errar, a resposta é não. Eles foram movidos por uma convicção de impunidade, até certo ponto discursivamente institucionalizada, de que as leis no país são demasiadamente flexíveis e permissíveis com certos indivíduos.

Deu no que deu! O Brasil chegou ao fundo do poço. Arrastou, e vem arrastando, sua vergonha pelas páginas das mídias nacionais e estrangeiras, ou seja, se expondo a um nível de pressão interna e, sobretudo, externa, para a defesa da democracia e do Estado de Direito, jamais visto. Aliás, com sérias perspectivas de desdobramentos nos campos diplomáticos e de comércio exterior, se nenhuma medida for efetivamente tomada para o restabelecimento da ordem democrática no país. Portanto, não dá mais para passar pano, para fingir que nada aconteceu, que não é bem assim. São necessárias atitudes firmes, que garantam a não repetição desses ultrajes.  

Temos, então, que falar sobre isso, sim. Por quê? Como disse Zygmunt Bauman, “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois”.

Assim, a proposta do “Pacote da Democracia” surge para trazer à sociedade brasileira elementos que precisam ser analisados, refletidos e colocados em prática. A fim de se estabelecer um ponto de equilíbrio e de sensatez para reforçar a segurança nacional e fazer com que a liberdade, no campo da expressão, não se transforme em sinônimo e/ou garantia de quaisquer tipos de atentado contra a democracia. Pois, mediante tudo o que se viu acontecer, e frente a perspectiva de que se nada for feito continuará, o Brasil se tornará um eterno amontoado de escombros de uma guerra sem fim. Sem ordem. Sem progresso. Sem desenvolvimento. Sem nada. Desse modo, mais do que um pacote pela democracia, o que se tem é um instrumento em favor da recuperação e do fortalecimento da dignidade nacional.  

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A semente do mal...


A semente do mal...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nos últimos dias, uma pergunta lateja sem parar na minha mente: Que maldade é essa? Pena, que não seja tão simples responder. Às vezes, penso na herança colonial maldita que abriu precedentes para banir a dignidade humana no trato social. Outras, no germe primitivo e bárbaro que se refugia na essência do Homo sapiens. De repente, um rompante contemporâneo de ganância e poder. ...

Entretanto, pode ser isso ou aquilo, ou tudo junto e misturado. Não sei. Só sei que o horror escapou do controle e de uma denúncia aqui e outra acolá, se descobre um Brasil que destoa de todos os princípios e valores humanitários, que algum dia se acreditou que ele tinha, com uma desfaçatez tão assustadora que humilha e constrange.  

O que já era indigerível, inexplicável, abjeto, em relação aos Yanomamis, é só a ponta de um iceberg gigantesco. As práxis desumanas estão por aí, disseminadas pela legitimidade discursiva dos redutos ideológicos da direita e seus matizes 1. Como apontam, por exemplo, os dados de 2022, apresentados pelo Ministério do Trabalho (MT), sobre o resgate de “mais de 2,5 mil pessoas em situação semelhante à de trabalho escravo – quase metade estava em Minas Gerais” 2.

Com informações obtidas através de 462 fiscalizações, “No ano passado, 2575 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo, um terço a mais que em 2021. Do total de resgates em 2022, 35 eram crianças e adolescentes. [...]Entre os 20 estados fiscalizados, apenas Alagoas, Amazonas e Amapá não registraram casos de escravidão contemporânea” 3.

Tomar ciência desses fatos é chocante porque nos faz pensar em todos os engodos tecidos pela direita nacional e seus matizes. Num piscar de olhos e a ideia do desenvolvimento, do progresso, do combate à corrupção, viram fumaça na medida em que as bases de tudo isso estão fincadas na naturalização e na banalização do trabalho análogo à escravidão.

Mas, quem disse que para por aí? Se nos permitirmos mergulhar mais fundo nessa lama fétida e viscosa, vamos começar a perceber que a trivialização da precarização trabalhista no Brasil é só um passo para a reafirmação da escravidão contemporânea, em muitos setores da economia. Insalubridade. Longas jornadas. Insegurança social. Insuficiência salarial. Discriminação. ... Em um movimento que, em muito pouco tempo, culmina na expressão da indignidade humana.

Martin Luther King Jr. afirmava que “Quem aceita o mal sem protestar, coopera realmente com ele”. Sendo assim, cada brasileiro tem sido conivente com esse cenário infame e sórdido. Quando silencia. Quando finge que não vê. Quando nega. Quando desqualifica. Quando vulgariza. Afinal, “Nada no mundo é mais perigoso que a verdadeira ignorância e a estupidez conscienciosa”, porque “Nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio sobre as coisas que importam” (Martin Luther King Jr.).

Não, não se pode esquecer o que escreveu Bertolt Brecht, no poema É PRECISO AGIR, “Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso/ Eu não era negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como eu tenho meu emprego / Também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde / Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo”.

Não sejamos ingênuos e displicentes. É através desse tipo de inação social que a ferrugem antidemocrática corrói o país. Não adianta, absolutamente nada, bradar pelos quatro cantos pela defesa da Democracia e do Estado de Direito, se as verdadeiras crenças, valores, princípios e convicções sustentam a indiferença, o banimento, a segregação, a humilhação, a discriminação, a dizimação e quaisquer outros tipos de violência contra seres humanos. Só alguém que realmente acredite que exista pessoas importantes e pessoas desimportantes, no mundo, para agir assim.

Infelizmente, esse é o caso do Brasil. Criado e modelado para seguir os protocolos do pensamento direitista. Que vive em função da manutenção de regalias e privilégios de uma elite dominante, em detrimento de uma imensa massa populacional, que é exatamente quem move as engrenagens socioeconômicas. Fato que explica as razões que levam ao não questionamento do enriquecimento no país; pois, isso significaria, na maioria dos casos, a publicização de práxis nada ortodoxas ou eticamente aceitáveis.

E assim, por trás dos horrores, dos absurdos, das tragédias historicamente anunciadas, o Brasil se engana com o discurso do país do futuro, das futuras gerações, e por aí vai. Porque o futuro parece longe e fornece o respiro apreciado, de longa data, para a postergação, para a inação. Então, ele acaba não chegando nunca por aqui. Está sempre na abstração, no ideário, nos fiapos de esperança e de credulidade que os desvalidos e desafortunados tentam se segurar. Não se pode esquecer que “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar” (Martin Luther King Jr.).

Não é justamente isso o que acontece nesse país há mais de 500 anos? Dizia Rui Barbosa que “A miopia intelectual é a mais constante geradora do egoísmo”. Mas, infelizmente, ela vem sendo afirmada e reafirmada de geração em geração pela direita e seus matizes. Vejam, por exemplo, que os recentes episódios nacionais são a exata materialização de que “Não falsifica a História somente quem inverte a verdade, senão também quem a omite” (Rui Barbosa).

Pensemos. É o mínimo que se pode fazer diante de tamanha maldade. Pensar não com vistas em se acomodar; mas, em trabalhar a favor da justiça. Pois, já parece claro a todos que “A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor o espírito dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas” (Rui Barbosa) 4.

 


4 BARBOSA, R. 1849-1923. Excertos de discurso parlamentar de 17 de dezembro de 1914. In: Discursos Parlamentares. Obras Completas. v.XLI, 1914. Tomo III. pp.86-87. 

Por onde andam nossos olhos de ver?


Por onde andam nossos olhos de ver?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por onde andam nossos olhos de ver? Essa é a pergunta que deveríamos estar fazendo diante da barbárie explícita cometida contra o país. Afinal, tudo o que se tem notícia de mais abjeto, repugnante, desprezível, ocorrido no Brasil recente, diz respeito a cada cidadão (ã), seja ele (a) quem for.

Entretanto, já ficou patenteado que há um abismo na compreensão a esse respeito. Ora, olhos de ver demandam mais do que a captação de imagens. Olhos de ver exigem a medida perfeita da decodificação realizada pela razão e sensibilidade. O que requer uma certa habilidade e competência aparentemente perdidas ao longo do tempo.

Razões para isso não faltam; mas, também, elucidam que não se trata necessariamente de um fenômeno nacional. O fluxo da contemporaneidade fornece elementos importantes para essa compreensão. Seja no desequilíbrio de forças entre a liberdade e a segurança. Seja na amplidão desmedida dos limites. Seja no individualismo que vem exacerbando e acentuando as raízes narcísicas e egoístas do primitivo que habita em nós.

E ainda que sejam análises interessantes e elucidativas, sob muitos aspectos, elas não dão conta de satisfazer plenamente a compreensão a respeito. Dentro da infinidade de outros caminhos crítico-reflexivos possíveis, me parece que as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), merecem uma atenção especial.

Pois, ainda que os avanços científicos e tecnológicos façam parte cada vez mais da dinâmica cotidiana e das relações sociais, em um caminho que não parece ter volta, paira no ar uma certa displicência quanto ao seu papel influenciador e promotor de transformações profundas no comportamento humano. A tal ponto que o senso humanitário, em tese, intrínseco aos seres humanos, está sendo substituído gradualmente por uma visão relacional tecnológica.

O convívio homem/máquina tem encantado, de maneira tão impactante os indivíduos, que eles acabam absorvidos por esse movimento. Fazendo-os se desconectar, muitas vezes inconscientemente, do mundo real, das demandas naturais de qualquer pessoa. Há uma perda nítida de sensibilidade, de empatia, de cuidados no trato humano, como se tivessem desaprendido ou se esquecido de serem gente de carne e osso.

Os olhos estão fixos aos limites das telas, criadas para hipnotizar e estimular os sentidos, a fim de capturar as atenções por longas jornadas de tempo e produzir efeitos e resultados que são esperados pela face tecnocrata do mundo. E se as pessoas acabam envolvidas nessa teia, ao ponto de se esquecerem de satisfazer as necessidades fisiológicas mais fundamentais, imagina o que acontece em relação à sua percepção da realidade factual.

O mundo real perdeu a sua dimensão, a sua plenitude. De repente ele foi fragmentado para se tornar frames de notícias que, no fundo, tendem a distanciar o ser humano de uma interpretação lógica e completa dos acontecimentos. Porque alguém predefine o que é ou não importante, sob o pretexto de facilitar e dinamizar as escolhas e as decisões dos seres humanos.

E assim, relembrando as palavras de Albert Einstein, “Poucos são aqueles que veem com seus próprios olhos e sentem com seus próprios corações”. Porque as percepções e as perspectivas foram manipuladas, ajustadas, modeladas, a fim de satisfazer aos interesses do mundo tecnológico em franca expansão.

Quem dita as regras não quer uma legião de olhos que veem. Isso significaria discussão, opinião, manifestação, contestação, enfim... Daí eles quererem olhos que se limitam a enxergar, ou seja, que se contentam em manter-se aprisionados ao domínio das telas. Silenciosos e pacíficos na sua subordinação tecnológica confortável.

Dizem eles que isso é o que há de melhor. Não precisam pensar. Nem se desgastar. Nem se estressar. Nem perder horas e horas elaborando seus pensamentos e ideias. Tudo está pronto! Ao alcance das mãos! Fruto do melhor que o mundo high tech pode oferecer! Basta encontrar sua tribo virtual e deixar que a tecnologia faça o resto.

Pois é, eu diria que isso é assustador! Segundo José Saramago, “A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente”. Por mais tecnologizados estejamos, o ser humano ainda é humano. Ele ainda vive e reina em um mundo real. Repleto de desafios, de mazelas, de questões ponderáveis e imponderáveis, as quais ele precisa lidar e tentar resolver, ainda que minimamente. Algo que por mais fantástica que sejam as novas tecnologias, elas não conseguem.

Não é à toa que Albert Einstein escreveu, “Aquele que já não consegue sentir espanto nem surpresa está, por assim dizer, morto; os seus olhos estão apagados”. Portanto, é nesse ponto que se descobre a impossibilidade de existir sem os olhos de ver. Somente por essa mágica simbiose que acontece entre a retina e a alma que a nossa inventividade, a nossa criatividade, todo o nosso potencial intelectual e cognitivo se liberta e nos possibilita realizar. Realizar por nós, pelos outros, pelo mundo, no sentido de uma edificação social que vislumbre o que há de mais belo, de mais puro e de mais sagrado.  

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Arautos de um flagelo premeditado


Arautos de um flagelo premeditado

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Confesso que me incomoda bastante a perplexidade nacional diante de certos acontecimentos, os quais não passam de tragédias ampla e historicamente anunciadas. Não vejo ninguém se perguntar as razões, por exemplo, que levaram

ao vazamento de óleo de um petroleiro na Baía de Guanabara (1975), ao Vale da Morte em Cubatão/SP (1980), ao incêndio na Vila de Socó em Cubatão/SP (1984), ao acidente com césio-137 em Goiânia/GO (1987), ao vazamento de óleo na Baía de Guanabara (2000), ao vazamento de óleo nos Rios Barigui e Iguaçu no paraná (2000), ao naufrágio da plataforma P-36 na Bacia de Campos (2001), ao rompimento da barragem de Cataguases/MG (2003), ao rompimento da barragem Bom Jardim em Miraí/MG (2007), ao vazamento de óleo na Bacia de Campos (2011), ao incêndio no Porto de Santos (2015), ao rompimento da barragem do Fundão em Mariana/MG (2015) 1, ao rompimento da barragem Mina do Feijão em Brumadinho/MG (2019) 2, as tempestades no vale do Itajaí/SC (2020), aos temporais no Estado de São Paulo (2022), as enchentes na Bahia (2022), as chuvas em Petrópolis (2022) 3, ao abandono e a negligência com os Povos Yanomamis (2019 – 2023) 4.

A presença ou não de um componente ambiental direto na deflagração desses episódios, não reduz ou exime o ponto principal a ser analisado e refletido, que é o papel antrópico. Esse tipo de catástrofe se nutre de um longo e silencioso processo de indiferença humana deliberada, sustentada por uma histórica certeza de impunidade. As classes dominantes no Brasil sentem-se legitimadas e amparadas pela força capital que atrasa e posterga a ação da justiça, a fim de que uma eventual punição não logre êxito pelo fato de o curso processual se arrastar até que se alcance o momento da prescrição do caso.  

Mas, antes disso, essas pessoas têm a convicção de que o seu espaço na sociedade é de tamanha importância, que elas não precisam se curvar às leis, às normas, às diretrizes que regem a dinâmica social. De onde parece surgir um poder paralelo que estabelece os próprios parâmetros para satisfazer às suas vontades e seus interesses, independentemente, das consequências e dos desdobramentos que possam resultar disso. Tudo porque elas têm o poder capital que é, segundo elas, o passaporte para colocar o mundo sob os seus pés, seja em que circunstância for.

Então, qual a razão da perplexidade? O fato de ver os veículos de informação e de comunicação noticiando o clímax da tragédia em tempo real? O espanto deveria emergir da inação que nos levou a permitir que a situação chegasse ao ponto que chegou, ou seja, de todo o silêncio, subserviência, anuência, displicência, indiferença, ... Porque não há acaso.  A vida é feita de processos, de movimentos, que resultam em consequências. Algumas boas. Outras ruins. Mas, a base que os sustenta é o que traz a perspectiva dos acontecimentos em curto, em médio e em longo prazo. Cabe a vigilância, a observação, no acompanhamento dos fatos.

Principalmente, em razão de que os afetados pelas tragédias, quase sempre, são aqueles que estão abaixo do topo da pirâmide social. Aqueles cujo poder capital inexiste, estando subjugados aos que detêm esse poder. Mais do que a desimportância que as classes dominantes atribuem aos menos privilegiados, o pior é constatar que eles próprios são levados a se perceber assim, na medida da construção de uma inação frente aos seus interesses. Como se houvesse uma outorga silenciosa do seu direito cidadão que é, na verdade, inalienável; mas, com frequência acaba corrompido pelas tentações e más intenções do mundo.  

Não sejamos ingênuos diante do óbvio. Os mais afetados pelas calamidades chegam a esse ponto porque foram, primeiramente, alijados do seu lugar de fala no mundo. Os poderosos não têm quaisquer interesses em ouvi-los e, muito menos, permitir que falem, que se expressem. Não querem saber o que pensam, como vivem, quais os seus sonhos, nada. Querem que permaneçam onde estão, cumprindo a sina que lhes foi imposta pela realidade desigual e ultrajante do país. Dentro desse contexto é que os menos ou não favorecidos acabam privados da sua dignidade humana e expostos, à revelia de sua vontade, a todo tipo de desgraça que a irresponsabilidade voluntária e consciente pode promover.

Pois é, fazendo vista grossa para situações tão abjetas, o Brasil conquista as páginas dos veículos de comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, com a exibição da vergonha em tamanho natural. Não que ele tenha, necessariamente, algum constrangimento ou pudor nesse sentido. Mas deveria. Porque essas vergonhas estampadas, para quem quiser ver, dizem respeito ao seu mais absoluto descompromisso com a dignidade da pessoa humana.

Mais do que isso, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Com o desenvolvimento nacional. Com a erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais. Com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme estabelece a Constituição federal vigente.

É preciso, então, virar essa página de tantos absurdos! Essa é, sem dúvida alguma, a sinalização mais clara e objetiva de que o país estaria mesmo convicto no seu propósito de reafirmação democrática. Atento e atuante aos preceitos constitucionais e legais para não mais permitir a expressão da perplexidade oportunista, que não leva nada, nem ninguém, a lugar algum.

Afinal, como escreveu Umberto Eco, “Justificar tragédias como vontade divina tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas”. O que reforça implicitamente a noção mais exata de que “A tragédia da vida é o que morre dentro do homem enquanto ele vive” (Albert Schweitzer). Porque é exatamente isso que nos faz arautos de um flagelo premeditado.