É
urgente e necessário refletir sobre a dignidade nacional!
Por
Alessandra Leles Rocha
Não, não é só pelos atos
antidemocráticos de 8 de janeiro, na capital federal, que vem a necessidade de
se colocar um freio urgente no extremismo da direita e sua trupe 1. Isso foi só a cereja do bolo! Na verdade,
é o conjunto da obra que se arrasta há alguns anos, no Brasil, que demanda
medidas de vigilância e aplicação de leis mais contundentes em nome de
preservar as orientações da Constituição Federal sobre uma sociedade livre
justa e solidária, a promoção do bem de todos, a defesa da paz, a solução pacífica
dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo. É sobre essas reflexões e
ações que emergiu o “Pacote da Democracia”
2 apresentado pelo Ministro da Justiça,
nos últimos dias.
O saudosismo oportunista de muita
gente por aí vem fomentando, há tempos, as traças antidemocráticas e impedindo
uma visão clara e objetivo sobre o país. O Brasil contemporâneo, do século XXI,
de um jeito ou de outro está ajustado aos caminhos do mundo. Portanto, está
longe de ser o país de seis décadas atrás. A população mais que dobrou. Os meios
de comunicação entraram na era das Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs), no nível mais high tech que
se possa imaginar 3. Os comportamentos e as ideologias
foram submetidos a uma série de desconstruções e ressignificações para atender
às exigências do novo modelo social. Nada é mais como antes!
Daí a necessidade imediata de
promover o desapego. Aceitar que, há alguns séculos, o Brasil rompeu com seus grilhões
obscurantistas históricos para viver a odisseia de uma democracia. E para isso
é fundamental que o cotidiano do país se distancie de realidades paralelas, de interpretações
constitucionais enviesadas e distorcidas, de achismos e casuísmos, de faltar
com o nome correto para as coisas e as situações. Ora, democracia não se faz da
boca para fora! A subjetividade democrática é intrínseca à sua materialidade em
ações e comportamentos. Se o Brasil
pretender figurar com destaque no panteão da democracia mundial é assim que
deve ser.
Assim sendo, passamos da hora de
medidas mais contundentes nesse contexto! Foi o eterno pisar em ovos das
autoridades brasileiras, em conjunto com uma significativa parcela da sociedade
civil, que distendeu, em diferentes formas e conteúdos, o tecido nacional já
carcomido pelas traças antidemocráticas e que resultou em um festival de
horrores e desumanidades inimaginados.
Bem que Darcy Ribeiro avisou: “Às vezes se diz que nossa característica é
a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será
assim? A feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceram a história
brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais
assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos
outros” (O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil, 1995).
Por isso, assistimos a quase 700
mil cidadãos brasileiros morrerem pela COVID-19, o negacionismo contribuir para
o desperdício de doses de vacina, a mais de 40 mil crianças e adolescentes se
tornarem órfãos pela pandemia, as milhares de pessoas desenvolverem silenciosamente
a chamada COVID-19 longa, o país ostentar a marca de 33 milhões de famintos, as
570 crianças yanomamis serem vítimas de mortes evitáveis, ... A beligerância sórdida
e abjeta foi explicitamente disseminada pela direita e sua trupe, nas arenas do
mundo real e virtual, sem maiores resistências.
Quiseram acreditar em bravata, em
fanfarronice, em presepada; mas, só porque isso parecia ser mais digerível. Na
verdade, ninguém era ingênuo o bastante para pensar que as investidas
terroristas e golpistas, exibidas em plena luz do dia ou da noite, não eram
para valer. Afinal, essa gente mostrou a cara para quem quisesse ver. Fez questão
de deixar as digitais físicas e imateriais nas suas ações. A troco de quê, se
não era para medir forças, hein? Será que todos ali eram loucos, insanos, fragilizados
na capacidade das suas faculdades mentais? Sem medo de errar, a resposta é não.
Eles foram movidos por uma convicção de impunidade, até certo ponto discursivamente
institucionalizada, de que as leis no país são demasiadamente flexíveis e permissíveis
com certos indivíduos.
Deu no que deu! O Brasil chegou
ao fundo do poço. Arrastou, e vem arrastando, sua vergonha pelas páginas das
mídias nacionais e estrangeiras, ou seja, se expondo a um nível de pressão interna
e, sobretudo, externa, para a defesa da democracia e do Estado de Direito,
jamais visto. Aliás, com sérias perspectivas de desdobramentos nos campos diplomáticos
e de comércio exterior, se nenhuma medida for efetivamente tomada para o restabelecimento
da ordem democrática no país. Portanto, não dá mais para passar pano, para
fingir que nada aconteceu, que não é bem assim. São necessárias atitudes
firmes, que garantam a não repetição desses ultrajes.
Temos, então, que falar sobre
isso, sim. Por quê? Como disse Zygmunt Bauman, “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para
uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o
outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma
vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão
e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada,
planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois”.
Assim, a proposta do “Pacote da Democracia” surge para trazer
à sociedade brasileira elementos que precisam ser analisados, refletidos e
colocados em prática. A fim de se estabelecer um ponto de equilíbrio e de
sensatez para reforçar a segurança nacional e fazer com que a liberdade, no
campo da expressão, não se transforme em sinônimo e/ou garantia de quaisquer
tipos de atentado contra a democracia. Pois, mediante tudo o que se viu
acontecer, e frente a perspectiva de que se nada for feito continuará, o Brasil
se tornará um eterno amontoado de escombros de uma guerra sem fim. Sem ordem. Sem
progresso. Sem desenvolvimento. Sem nada. Desse modo, mais do que um pacote
pela democracia, o que se tem é um instrumento em favor da recuperação e do fortalecimento
da dignidade nacional.
1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/27/presidente-do-pl-valdemar-costa-neto-diz-que-havia-propostas-com-teor-golpista-na-casa-de-todo-mundo.ghtml