quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

A semente do mal...


A semente do mal...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nos últimos dias, uma pergunta lateja sem parar na minha mente: Que maldade é essa? Pena, que não seja tão simples responder. Às vezes, penso na herança colonial maldita que abriu precedentes para banir a dignidade humana no trato social. Outras, no germe primitivo e bárbaro que se refugia na essência do Homo sapiens. De repente, um rompante contemporâneo de ganância e poder. ...

Entretanto, pode ser isso ou aquilo, ou tudo junto e misturado. Não sei. Só sei que o horror escapou do controle e de uma denúncia aqui e outra acolá, se descobre um Brasil que destoa de todos os princípios e valores humanitários, que algum dia se acreditou que ele tinha, com uma desfaçatez tão assustadora que humilha e constrange.  

O que já era indigerível, inexplicável, abjeto, em relação aos Yanomamis, é só a ponta de um iceberg gigantesco. As práxis desumanas estão por aí, disseminadas pela legitimidade discursiva dos redutos ideológicos da direita e seus matizes 1. Como apontam, por exemplo, os dados de 2022, apresentados pelo Ministério do Trabalho (MT), sobre o resgate de “mais de 2,5 mil pessoas em situação semelhante à de trabalho escravo – quase metade estava em Minas Gerais” 2.

Com informações obtidas através de 462 fiscalizações, “No ano passado, 2575 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo, um terço a mais que em 2021. Do total de resgates em 2022, 35 eram crianças e adolescentes. [...]Entre os 20 estados fiscalizados, apenas Alagoas, Amazonas e Amapá não registraram casos de escravidão contemporânea” 3.

Tomar ciência desses fatos é chocante porque nos faz pensar em todos os engodos tecidos pela direita nacional e seus matizes. Num piscar de olhos e a ideia do desenvolvimento, do progresso, do combate à corrupção, viram fumaça na medida em que as bases de tudo isso estão fincadas na naturalização e na banalização do trabalho análogo à escravidão.

Mas, quem disse que para por aí? Se nos permitirmos mergulhar mais fundo nessa lama fétida e viscosa, vamos começar a perceber que a trivialização da precarização trabalhista no Brasil é só um passo para a reafirmação da escravidão contemporânea, em muitos setores da economia. Insalubridade. Longas jornadas. Insegurança social. Insuficiência salarial. Discriminação. ... Em um movimento que, em muito pouco tempo, culmina na expressão da indignidade humana.

Martin Luther King Jr. afirmava que “Quem aceita o mal sem protestar, coopera realmente com ele”. Sendo assim, cada brasileiro tem sido conivente com esse cenário infame e sórdido. Quando silencia. Quando finge que não vê. Quando nega. Quando desqualifica. Quando vulgariza. Afinal, “Nada no mundo é mais perigoso que a verdadeira ignorância e a estupidez conscienciosa”, porque “Nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio sobre as coisas que importam” (Martin Luther King Jr.).

Não, não se pode esquecer o que escreveu Bertolt Brecht, no poema É PRECISO AGIR, “Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso/ Eu não era negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como eu tenho meu emprego / Também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde / Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo”.

Não sejamos ingênuos e displicentes. É através desse tipo de inação social que a ferrugem antidemocrática corrói o país. Não adianta, absolutamente nada, bradar pelos quatro cantos pela defesa da Democracia e do Estado de Direito, se as verdadeiras crenças, valores, princípios e convicções sustentam a indiferença, o banimento, a segregação, a humilhação, a discriminação, a dizimação e quaisquer outros tipos de violência contra seres humanos. Só alguém que realmente acredite que exista pessoas importantes e pessoas desimportantes, no mundo, para agir assim.

Infelizmente, esse é o caso do Brasil. Criado e modelado para seguir os protocolos do pensamento direitista. Que vive em função da manutenção de regalias e privilégios de uma elite dominante, em detrimento de uma imensa massa populacional, que é exatamente quem move as engrenagens socioeconômicas. Fato que explica as razões que levam ao não questionamento do enriquecimento no país; pois, isso significaria, na maioria dos casos, a publicização de práxis nada ortodoxas ou eticamente aceitáveis.

E assim, por trás dos horrores, dos absurdos, das tragédias historicamente anunciadas, o Brasil se engana com o discurso do país do futuro, das futuras gerações, e por aí vai. Porque o futuro parece longe e fornece o respiro apreciado, de longa data, para a postergação, para a inação. Então, ele acaba não chegando nunca por aqui. Está sempre na abstração, no ideário, nos fiapos de esperança e de credulidade que os desvalidos e desafortunados tentam se segurar. Não se pode esquecer que “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar” (Martin Luther King Jr.).

Não é justamente isso o que acontece nesse país há mais de 500 anos? Dizia Rui Barbosa que “A miopia intelectual é a mais constante geradora do egoísmo”. Mas, infelizmente, ela vem sendo afirmada e reafirmada de geração em geração pela direita e seus matizes. Vejam, por exemplo, que os recentes episódios nacionais são a exata materialização de que “Não falsifica a História somente quem inverte a verdade, senão também quem a omite” (Rui Barbosa).

Pensemos. É o mínimo que se pode fazer diante de tamanha maldade. Pensar não com vistas em se acomodar; mas, em trabalhar a favor da justiça. Pois, já parece claro a todos que “A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor o espírito dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas” (Rui Barbosa) 4.

 


4 BARBOSA, R. 1849-1923. Excertos de discurso parlamentar de 17 de dezembro de 1914. In: Discursos Parlamentares. Obras Completas. v.XLI, 1914. Tomo III. pp.86-87.