A
semente do mal...
Por
Alessandra Leles Rocha
Nos últimos dias, uma pergunta lateja
sem parar na minha mente: Que maldade é essa? Pena, que não seja tão simples
responder. Às vezes, penso na herança colonial maldita que abriu precedentes
para banir a dignidade humana no trato social. Outras, no germe primitivo e
bárbaro que se refugia na essência do Homo
sapiens. De repente, um rompante contemporâneo de ganância e poder. ...
Entretanto, pode ser isso ou
aquilo, ou tudo junto e misturado. Não sei. Só sei que o horror escapou do
controle e de uma denúncia aqui e outra acolá, se descobre um Brasil que destoa
de todos os princípios e valores humanitários, que algum dia se acreditou que
ele tinha, com uma desfaçatez tão assustadora que humilha e constrange.
O que já era indigerível,
inexplicável, abjeto, em relação aos Yanomamis, é só a ponta de um iceberg
gigantesco. As práxis desumanas estão por aí, disseminadas pela legitimidade
discursiva dos redutos ideológicos da direita e seus matizes 1. Como apontam, por exemplo, os dados de
2022, apresentados pelo Ministério do Trabalho (MT), sobre o resgate de “mais de 2,5 mil pessoas em situação
semelhante à de trabalho escravo – quase metade estava em Minas Gerais” 2.
Com informações obtidas através
de 462 fiscalizações, “No ano passado,
2575 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo, um
terço a mais que em 2021. Do total de resgates em 2022, 35 eram crianças e
adolescentes. [...]Entre os 20 estados fiscalizados, apenas Alagoas, Amazonas e
Amapá não registraram casos de escravidão contemporânea” 3.
Tomar ciência desses fatos é
chocante porque nos faz pensar em todos os engodos tecidos pela direita
nacional e seus matizes. Num piscar de olhos e a ideia do desenvolvimento, do
progresso, do combate à corrupção, viram fumaça na medida em que as bases de
tudo isso estão fincadas na naturalização e na banalização do trabalho análogo
à escravidão.
Mas, quem disse que para por aí? Se
nos permitirmos mergulhar mais fundo nessa lama fétida e viscosa, vamos começar
a perceber que a trivialização da precarização trabalhista no Brasil é só um
passo para a reafirmação da escravidão contemporânea, em muitos setores da
economia. Insalubridade. Longas jornadas. Insegurança social. Insuficiência
salarial. Discriminação. ... Em um movimento que, em muito pouco tempo, culmina
na expressão da indignidade humana.
Martin Luther King Jr. afirmava
que “Quem aceita o mal sem protestar,
coopera realmente com ele”. Sendo assim, cada brasileiro tem sido conivente
com esse cenário infame e sórdido. Quando silencia. Quando finge que não vê.
Quando nega. Quando desqualifica. Quando vulgariza. Afinal, “Nada no mundo é mais perigoso que a
verdadeira ignorância e a estupidez conscienciosa”, porque “Nossas vidas começam a terminar no dia em
que permanecemos em silêncio sobre as coisas que importam” (Martin Luther King
Jr.).
Não, não se pode esquecer o que
escreveu Bertolt Brecht, no poema É PRECISO AGIR, “Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso/ Eu não era
negro / Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu
também não era operário / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei
com isso / Porque eu não sou miserável / Depois agarraram uns desempregados /
Mas como eu tenho meu emprego / Também não me importei / Agora estão me levando
/ Mas já é tarde / Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa
comigo”.
Não sejamos ingênuos e
displicentes. É através desse tipo de inação social que a ferrugem
antidemocrática corrói o país. Não adianta, absolutamente nada, bradar pelos
quatro cantos pela defesa da Democracia e do Estado de Direito, se as
verdadeiras crenças, valores, princípios e convicções sustentam a indiferença, o
banimento, a segregação, a humilhação, a discriminação, a dizimação e quaisquer
outros tipos de violência contra seres humanos. Só alguém que realmente
acredite que exista pessoas importantes e pessoas desimportantes, no mundo,
para agir assim.
Infelizmente, esse é o caso do
Brasil. Criado e modelado para seguir os protocolos do pensamento direitista. Que
vive em função da manutenção de regalias e privilégios de uma elite dominante,
em detrimento de uma imensa massa populacional, que é exatamente quem move as
engrenagens socioeconômicas. Fato que explica as razões que levam ao não
questionamento do enriquecimento no país; pois, isso significaria, na maioria
dos casos, a publicização de práxis nada ortodoxas ou eticamente aceitáveis.
E assim, por trás dos horrores,
dos absurdos, das tragédias historicamente anunciadas, o Brasil se engana com o
discurso do país do futuro, das futuras gerações, e por aí vai. Porque o futuro
parece longe e fornece o respiro apreciado, de longa data, para a postergação,
para a inação. Então, ele acaba não chegando nunca por aqui. Está sempre na
abstração, no ideário, nos fiapos de esperança e de credulidade que os
desvalidos e desafortunados tentam se segurar. Não se pode esquecer que “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça
à justiça em todo o lugar” (Martin Luther King Jr.).
Não é justamente isso o que
acontece nesse país há mais de 500 anos? Dizia
Rui Barbosa que “A miopia intelectual é a mais constante geradora do egoísmo”.
Mas, infelizmente, ela vem sendo afirmada e reafirmada de geração em geração
pela direita e seus matizes. Vejam, por exemplo, que os recentes episódios
nacionais são a exata materialização de que “Não
falsifica a História somente quem inverte a verdade, senão também quem a omite”
(Rui Barbosa).
Pensemos. É o mínimo que se pode
fazer diante de tamanha maldade. Pensar não com vistas em se acomodar; mas, em
trabalhar a favor da justiça. Pois, já parece claro a todos que “A injustiça, senhores, desanima o trabalho,
a honestidade, o bem; cresta em flor o espírito dos moços, semeia no coração
das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não
acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove
a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a
cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas” (Rui Barbosa) 4.
1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/25/livro-de-coronel-que-negava-a-existencia-dos-yanomami-reflete-crenca-difundida-no-exercito-avaliam-especialistas.ghtml
2 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/01/24/fiscais-do-ministerio-do-trabalho-resgatam-mais-de-25-mil-pessoas-em-situacao-semelhante-a-de-trabalho-escravo-em-2022.ghtml
3 https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-01/trabalho-escravo-2575-pessoas-foram-resgatadas-em-2022
4 BARBOSA, R. 1849-1923. Excertos de discurso parlamentar de 17 de dezembro de 1914. In: Discursos Parlamentares. Obras Completas. v.XLI, 1914. Tomo III. pp.86-87.