Parece
que dessa vez a pizza vai queimar!
Por
Alessandra Leles Rocha
A cada semana que passa. A cada nova
notícia que emerge. É visível que a tensão se estabeleça diante da tênue linha
que separa a justiça e a impunidade, no Brasil. Especialmente, em relação às
parcelas de responsabilidade que cabem a cada um dos agentes públicos envolvidos
no âmbito das tragédias e calamidades socioeconômicas, ocorridas nos últimos
quatro anos.
Afinal, depois do 8 de janeiro,
quando o horror explodiu e foi além de Brasília/DF, as camadas ultrajantes da
recente história nacional começaram a ser reviradas e a trazer à tona o que de
pior existe na política brasileira, ou seja, a politicagem no sentido literal
da sua vilania.
Razão pela qual mais atenção
obteve o fato de o ex-presidente da República ter saído do país antes do fim do
seu mandato. Embora, a quilômetros de distância do olho desse furacão, isso em
nada mudou o fato de que as páginas da história que ele ajudou, e ainda
continua ajudando, a escrever, permanecem disponíveis para o escrutínio da
justiça e da opinião pública.
Aliás, é bom ressaltar que a
ideia de sair à francesa, como ele fez, não foi a melhor das estratégias. O
Brasil, tão camarada na acolhida aos estrangeiros; especialmente, aqueles em
uma situação pouco convencional, como foi o caso, nem sempre encontra a mesma
contrapartida.
No cenário internacional a
situação costuma ser bem outra, bem menos afável. Então, considerando que a
transitoriedade do status dele, enquanto agente público, para fins de
passaporte e autorização de permanência em país estrangeiro, se alterou muito
rapidamente, isso gerou inevitavelmente uma situação desagradável sob
diferentes aspectos diplomáticos.
Ora, independentemente se anônimo
ou famoso, fora do seu território nacional qualquer um será sempre um
estrangeiro, mesmo que tenha visto permanente ou status de naturalizado, mesmo
que siga fielmente as regras do jogo, porque aos olhos do nativo local ele (a)
é, e sempre será, um forasteiro.
Isso acontece porque “a ordem
social é mantida por meio de oposições binárias, tais como a divisão entre
“locais” (insiders) e “forasteiros” (outsiders). A produção de categorias pelas
quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status de “forasteiros”,
de acordo com o sistema social vigente, garante um certo controle social. A
classificação simbólica está, assim, intimamente relacionada à ordem social”
(Woodward, 2000, p. 46 1).
O que explica o fato de alguns
países demonstrarem um trato distinto entre situações de deslocamento
geográfico (migrantes), de refugiados e de imigrantes, inclusive, segundo
certos critérios nada humanitários e equitativos. Algo que a mídia tem trazido,
cada vez com mais frequência; sobretudo, em relação aos indivíduos em condições
absolutas de ilegalidade.
Desse modo, sobre eles (as) acaba
recaindo um peso gigantesco no que diz respeito ao cumprimento das normas, das
regras, das legislações locais. Entretanto, é bom lembrar que não é só a
ausência de autorização diplomática a constituir um obstáculo no processo
migratório.
As avaliações são feitas caso a
caso e obedecem a uma análise profunda dos pretensos candidatos a viver naquele
país de maneira temporária ou definitiva. O que significa que não basta apenas
a intenção de viver aqui, ali ou acolá. Tudo depende do aceite ou não por parte
daquela determinada embaixada ou consulado.
Se existem senões sociais, jurídicos
ou políticos, por exemplo, que possam vir a afetar as relações diplomáticas
entre os países envolvidos, a questão se torna ainda mais delicada. Não podemos
nos abster de considerar o fato de que tal contexto tem sido um desafio global
e imposto discussões éticas importantíssimas frente aos problemas sociais,
políticos e econômicos já presentes em cada país.
Afinal de contas, há tensões e
conflitos suficientes, em curso, que sinalizam os riscos de amplificá-las a
partir de migrações passíveis de mais discussão e de repercussão midiática e
diplomática negativa. Eventuais
excepcionalidades, nesse contexto, costumam sugerir um ar de distinção nem
sempre apropriado ou politicamente correto.
Particularmente, quando se vê
diariamente milhares de seres humanos sendo impedidos severa, e às vezes,
brutalmente, de entrar em diversos países. Pessoas que estão flagrantemente em
condição de indignidade humana e aquela acolhida, por um país estrangeiro, pode
significar-lhes, na maioria das vezes, o estreito limite entre a vida e a
morte.
Desse modo, feito esse breve
parêntese, voltemos à reflexão sobre a tênue linha que separa a justiça e a
impunidade no Brasil, a qual tanto vem afligindo milhares de brasileiros. Porque
não me parece que a impunidade vai vencer dessa vez. Começo a sentir cheiro de
pizza queimada!
O motivo parece claro. Certas
pessoas cometeram o erro crasso de mexer com a Democracia, com o Estado de
Direito, com a Amazônia e seus povos originários, com a dignidade humana, enfim
... Justamente em um país geopoliticamente estratégico. Mexeram, então, em
assuntos caros e sensíveis a um vasto contingente global.
O que significa que tudo isso
voltou os olhos do mundo para o Brasil e reverberou pressões diplomáticas muito
mais fortes e intensas do que aquelas que poderiam emergir internamente. Portanto,
há muita coisa em jogo, dessa vez.
E tomando, por exemplo, só o caso
do extermínio de povos indígenas, que já é de conhecimento do Tribunal Penal
Internacional (TPI), sediado em Haia/Países Baixos, há sinalização de eventual
possibilidade de resultado totalmente desfavorável aos indiciados, dada a
robustez do processo.
Vale ressaltar que o papel deste
tribunal só figura caso fique demonstrada qualquer impossibilidade do exercício
jurídico pela corte brasileira, no sentido de dar curso aos trâmites do processo
penal. Assim, se isso vir a acontecer, caso se tenha uma condenação pelo TPI,
não importa o domicílio do (a) acusado (a), pois onde ele (a) estiver será
preso e levado para Haia.
Assim sendo, ao que tudo indica,
dessa vez, o Brasil extrapolou as fronteiras do tolerável e a disposição em
favor da impunidade se esgotou. Ao seguir os rastros do desmantelamento
governamental operacionalizado, nesses últimos quatro anos, se tem a devida
dimensão das infrações penais que foram cometidas contra o país e sua população.
Sobretudo, em relação às parcelas mais vulneráveis e desassistidas. De modo que
há um sentimento de indignação tão forte, que o clamor por justiça não parece
que irá esmorecer.
Mas, sendo essa uma impressão é importante permanecer atento, vigilante. Pois, como disse o advogado e escritor Leon Frejda Szklarowsky, “A impunidade é a matriz e a geratriz de novos e insensatos acontecimentos e o desmoronamento do que ainda resta de bom na alma humana”.
1 SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença – A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, 133p.