terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A aculturação em nome da homogeneização social brasileira


A aculturação em nome da homogeneização social brasileira

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A aculturação apesar de uma herança maldita do sistema colonial, trata-se de um processo que sempre esteve presente na história da humanidade em diferentes momentos.

E a relevância da discussão e da reflexão a esse respeito está no fato de que ela não só invisibiliza e nega todos os aspectos socioculturais e comportamentais da identidade de um determinado grupo humano; mas, faz desse processo um instrumento de desajuste e conflito nas relações sociais.

Assim, olhando para o mundo do século XXI, onde milhares de pessoas encontram-se na condição de refugiados, ou seja, de pessoas que deixam tudo para trás para escapar de conflitos armados, perseguições e mudanças climáticas extremas, temos uma condição de perceber e entender melhor a questão da aculturação.

Sem certas amarras que o distanciamento temporal entre o colonialismo e a contemporaneidade estabelecem naturalmente, o importante nessa reflexão é focar no ponto nevrálgico do processo de aculturação que está na sua associação direta e, quase, simbiótica, com os cenários de extrema violência e ruptura.

Desse modo temos que partir da ideia de que os seres humanos são o resultado da sua identidade. O que diz respeito a todo o conjunto de aspectos materiais (biótipo) e subjetivos (costumes, crenças, normas, valores) que os caracterizam e são incorporados ao longo da sua existência.

Portanto, qualquer interferência nesse contexto representa uma transformação profunda do status de ser do indivíduo, provocando em muitas situações o não reconhecimento de si mesmo. Não é à toa que as questões identitárias estão profundamente associadas aos movimentos adaptativos. Ora, elas demandam tempo e certa estabilidade para se constituírem e se firmarem.

Então, quando entra em cena situações que rompem com essa dinâmica há um conflito existencial imediato entre manter a própria cultura, a própria identidade, ou permitir-se adequar e se ajustar aos padrões do outro, do opressor. O que para certos grupos sociais é demasiadamente brutal.

Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, quando milhares de japoneses refugiaram para o Brasil, eles constituíram pequenas comunidades no interior de São Paulo e do Paraná, principalmente, a fim de preservarem a sua cultura, com vistas a um dia poderem retornar à sua terra natal.

O fato de terem saído às pressas de seu país, nas condições em que o fizeram, havia deixado marcas profundas e dolorosas demais para terem que se submeter a uma perda identitária ainda maior. E muitos, apesar das conscientes manifestações de resistência cultural, acabaram morrendo pela força inconsciente da tristeza, da saudade, do inconformismo, da inadequação à nova realidade.

É por essas e por outras, que não se pode minimizar e banalizar a questão da aculturação dos povos originários, como se fez no período colonial.  O nível de informação e de conhecimento que se tem no século XXI sobre isso, permite ao cidadão contemporâneo compreender com clareza, a partir da visão da própria mobilidade humana nos processos migratórios.

Afinal, o cenário contemporâneo traz luz as desdobramentos e consequências desse processo para as identidades de quem migra e de quem os recebe, constituindo uma percepção de que nem sempre expressam características harmônicas e pacíficas. Sim, porque a aculturação impõe uma nova contextualização social para qual o indivíduo não está preparado.

Certamente foi com base nessa compreensão que a Constituição Federal, de 1988, fez questão de estabelecer que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).

Subjugá-los a um novo modelo cultural é condená-los a uma morte lenta e gradual. Principalmente, os grupos isolados ou com mínimo ou nenhum contato com o homem branco.  Haja vista a memória colonial brasileira, quando relata o contato inicial entre o colonizador português e os nativos brasileiros, em que resultou na morte de milhares de indígenas pelo contágio com a gripe, um vírus totalmente desconhecido, do ponto de vista biológico, por eles.

E enquanto o pior não acontece, a aculturação os transforma em verdadeiros fantasmas vivos de si mesmos. Deslocados. Desajustados. Confusos. Diante de uma existência totalmente antagônica à sua identidade. Língua estranha. Comida estranha. Costumes estranhos. Roupas estranhas. Remédios estranhos. ...

Mesmo porque, todo esse processo se dá, na maioria das vezes, de maneira impositiva, autoritária, abusiva, cruel. Há o emprego visível da desproporcionalidade de forças sendo reafirmada.

Portanto, antes de hastear a bandeira da aculturação dos povos originários, ou de quaisquer outros seres humanos, olhe no espelho e reflita sobre si mesmo, sobre o que seria da sua identidade se fizessem isso com você.

Afinal, como bem escreveu o cineasta português, Manoel de Oliveira, “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isso pode explicar um pouco os limites da própria vida”.