A
aculturação em nome da homogeneização social brasileira
Por
Alessandra Leles Rocha
A aculturação apesar de uma
herança maldita do sistema colonial, trata-se de um processo que sempre esteve
presente na história da humanidade em diferentes momentos.
E a relevância da discussão e da
reflexão a esse respeito está no fato de que ela não só invisibiliza e nega todos
os aspectos socioculturais e comportamentais da identidade de um determinado
grupo humano; mas, faz desse processo um instrumento de desajuste e conflito
nas relações sociais.
Assim, olhando para o mundo do
século XXI, onde milhares de pessoas encontram-se na condição de refugiados, ou
seja, de pessoas que deixam tudo para trás para escapar de conflitos armados,
perseguições e mudanças climáticas extremas, temos uma condição de perceber e entender
melhor a questão da aculturação.
Sem certas amarras que o
distanciamento temporal entre o colonialismo e a contemporaneidade estabelecem
naturalmente, o importante nessa reflexão é focar no ponto nevrálgico do
processo de aculturação que está na sua associação direta e, quase, simbiótica,
com os cenários de extrema violência e ruptura.
Desse modo temos que partir da
ideia de que os seres humanos são o resultado da sua identidade. O que diz respeito
a todo o conjunto de aspectos materiais (biótipo) e subjetivos (costumes,
crenças, normas, valores) que os caracterizam e são incorporados ao longo da
sua existência.
Portanto, qualquer interferência
nesse contexto representa uma transformação profunda do status de ser do
indivíduo, provocando em muitas situações o não reconhecimento de si mesmo. Não
é à toa que as questões identitárias estão profundamente associadas aos
movimentos adaptativos. Ora, elas demandam tempo e certa estabilidade para se constituírem
e se firmarem.
Então, quando entra em cena
situações que rompem com essa dinâmica há um conflito existencial imediato
entre manter a própria cultura, a própria identidade, ou permitir-se adequar e se
ajustar aos padrões do outro, do opressor. O que para certos grupos sociais é
demasiadamente brutal.
Durante a Segunda Guerra Mundial,
por exemplo, quando milhares de japoneses refugiaram para o Brasil, eles
constituíram pequenas comunidades no interior de São Paulo e do Paraná,
principalmente, a fim de preservarem a sua cultura, com vistas a um dia poderem
retornar à sua terra natal.
O fato de terem saído às pressas
de seu país, nas condições em que o fizeram, havia deixado marcas profundas e
dolorosas demais para terem que se submeter a uma perda identitária ainda
maior. E muitos, apesar das conscientes manifestações de resistência cultural,
acabaram morrendo pela força inconsciente da tristeza, da saudade, do
inconformismo, da inadequação à nova realidade.
É por essas e por outras, que não
se pode minimizar e banalizar a questão da aculturação dos povos originários,
como se fez no período colonial. O nível
de informação e de conhecimento que se tem no século XXI sobre isso, permite ao
cidadão contemporâneo compreender com clareza, a partir da visão da própria
mobilidade humana nos processos migratórios.
Afinal, o cenário contemporâneo
traz luz as desdobramentos e consequências desse processo para as identidades
de quem migra e de quem os recebe, constituindo uma percepção de que nem sempre
expressam características harmônicas e pacíficas. Sim, porque a aculturação
impõe uma nova contextualização social para qual o indivíduo não está
preparado.
Certamente foi com base nessa
compreensão que a Constituição Federal, de 1988, fez questão de estabelecer que
“São reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).
Subjugá-los a um novo modelo
cultural é condená-los a uma morte lenta e gradual. Principalmente, os grupos
isolados ou com mínimo ou nenhum contato com o homem branco. Haja vista a memória colonial brasileira,
quando relata o contato inicial entre o colonizador português e os nativos
brasileiros, em que resultou na morte de milhares de indígenas pelo contágio com
a gripe, um vírus totalmente desconhecido, do ponto de vista biológico, por
eles.
E enquanto o pior não acontece, a
aculturação os transforma em verdadeiros fantasmas vivos de si mesmos.
Deslocados. Desajustados. Confusos. Diante de uma existência totalmente
antagônica à sua identidade. Língua estranha. Comida estranha. Costumes
estranhos. Roupas estranhas. Remédios estranhos. ...
Mesmo porque, todo esse processo
se dá, na maioria das vezes, de maneira impositiva, autoritária, abusiva,
cruel. Há o emprego visível da desproporcionalidade de forças sendo reafirmada.
Portanto, antes de hastear a
bandeira da aculturação dos povos originários, ou de quaisquer outros seres
humanos, olhe no espelho e reflita sobre si mesmo, sobre o que seria da sua
identidade se fizessem isso com você.
Afinal, como bem escreveu o cineasta português, Manoel de Oliveira, “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isso pode explicar um pouco os limites da própria vida”.