segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Sobre Eleições e Fake News


Sobre Eleições e Fake News

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O uso indiscriminado da máquina pública, nesta eleição, me pareceu bastante perceptível! Um bocadinho só de atenção à quantidade de benesses eleitoreiras, posto que os veículos de informação e comunicação não se abstiveram de trazê-las a público, para entender como os caminhos fluíram. E somando esforços nesse sentido, as Fake News protagonizaram uma importância que merece reflexão.

Ora, ora. Inventando, distorcendo, manipulando, desqualificando, ... a era tecnológica das mentiras fez a festa, como se o mundo virtual estivesse dissociado do mundo real. Nada mais oportuno, dentro dessa sociedade contemporânea que se esconde no manto da pressa, do excesso de obrigações e deveres cotidianos, do desinteresse por esse ou aquele assunto, para se abster de pensar, refletir, analisar, construir a própria opinião. De modo que muito foi investido nessa estratégia, tanto em recursos quanto em construtores dessas narrativas.

A grande questão é que as Fake News extrapolam os limites da velha e boa mentira. Há planejamento, há método, há elaboração dos conteúdos. E no campo político-partidário descobriu-se um pulo do gato interessante que é a força da autoridade discursiva, ou seja, o lugar de fala de quem apresenta essas Fake News. Afinal, essa é uma marca indelével da história colonial brasileira, na perspectiva de dominados e dominadores.

Infelizmente, resiste até os dias atuais, no país, uma demarcação subjetiva em torno da importância do enunciador, em razão do espaço social que ele ocupa. Portanto, isso constrange os demais interlocutores no seu direito de questionar aquela fala, seja na forma ou no conteúdo, ocasionando uma aceitação submissa. Afinal, o enunciador se coloca na posição de que não é fala que estaria sendo questionada; mas, ele próprio.

Então, estivesse o enunciador, ele próprio se manifestando no post ou apenas reproduzindo um material de terceiros, o simples fato da sua presença no processo já seria o suficiente para a legitimação daquela informação. O que significa que a partir da repercussão daquela Fake News é possível apurar se o objetivo esperado foi cumprido ou não.

Tanto que, para reforçar esse mecanismo, entrou em cena nessas eleições o ativismo político-religioso, especialmente no campo das doutrinas protestantes neopentecostais. A autoridade dos pastores e ministros foi exercida, também, pela disseminação de Fake News, cujos teores das comunicações eram sensíveis às crenças e valores religiosos de seus fiéis. Sobretudo, em comunidades mais desassistidas e vulneráveis socialmente.

Isso demonstra que, em pleno século XXI, não é a simples existência dos recursos tecnológicos, das ferramentas virtuais de comunicação, o ponto crítico das Fake News. Está na construção das relações sociais a grande questão, quando se percebe o peso da autoridade discursiva estabelecida pela própria estratificação socioeconômica. Há uma inibição, um constrangimento, um desconforto, em se posicionar de maneira contrária em um diálogo com alguém que se considera mais importante socialmente.

Nesse sentido, o recente processo eleitoral trouxe dentro dessas questões relacionadas às Fake News, o fato de que a autoridade discursiva foi duramente contaminada pela construção político-ideológica, principalmente da ultradireita. Elas foram construídas basicamente para atender a esse tipo de manipulação social persuasiva, que cria uma atmosfera de governança satisfatória para o grupo que a implementou e disseminou. Um tipo de pressão e controle social travestido de escolha, de opinião.

Algo que deriva, no fundo, da nossa herança colonial histórica, a qual teceu essa ideia de que a certeza, o conhecimento, a opinião preponderante pertence a quem estudou mais, ou é mais rico, ou é mais poderoso, ou é mais influente. Então, se essa pessoa disse, essa é a verdade. Não cabe contestação. Não cabe questionamento. Não cabe nenhum tipo de desobediência. De modo que as mentiras travestidas de verdade passam a circular livremente pela sociedade e cumprir seus objetivos impunemente.

Sim, porque mesmo com a atuação das esferas jurídicas na contenção da disseminação dessas Fake News, a velocidade tecnológica é um adversário importante que não pode ser esquecido. Ainda que as decisões sejam rápidas, nem sempre elas impedem completamente o êxito das mentiras. De modo que acaba restando algum traço de prejuízo social pelo caminho, como se teve notícia nessas eleições.

Por isso, a grande discussão, que deveria ser proposta a partir dessas eleições, em torno das Fake News, parte do reconhecimento de que “Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir” (Michel Foucault).

Pois, o que está em jogo é entender que “O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas”, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade”; afinal, “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (Michel Foucault). 

O dia seguinte...


O dia seguinte...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É claro que a história só se decanta com o passar do tempo; mas, nesse primeiro momento a realidade já nos permite certas reflexões importantíssimas. O resultado do segundo turno do pleito eleitoral, ontem, tem muito a dizer!

Começo, então, discordando de muitos analistas políticos a respeito da ideia de que a eleição deixou o país fraturado. Ora, a verdade é que o Brasil não está fraturado, ele é. Essa é a base histórica nacional, um país marcado pelas desigualdades socioeconômicas que constituíram uma estratificação social de muito pouca, ou quase nenhuma, mobilidade ao longo desses pouco mais de 500 anos.

Essa ideia de fratura, de polarização, não passa de estratégia narrativa das estruturas político-partidárias para formalização de um cenário social tensionado. Uma forma de fazer prevalecer pelo medo a posição de dominância e controle de uns sobre outros. Acontece que esse contexto se aprofunda ainda mais, porque não se resume a uma dicotomia de ricos e pobres, poderosos e oprimidos, importantes e desimportantes, facilmente perceptível por aí.

O que lhe dá sustentação para resistir durante tanto tempo está no campo do ideológico, do discurso, da narrativa, que não tem como não ser absorvido e impregnado no inconsciente coletivo, ao longo da história. De modo que apesar das transformações no curso governamental brasileiro as bases sempre foram as mesmas, conservando os valores, os princípios e as convicções que deveriam moldar e organizar a sociedade. Em suma, a velha história da casa grande e senzala!

Embora, seja fundamental admitir que isso decorre da imensa dificuldade, existente na população brasileira, em nomear a vida adequadamente, em tratar as questões com clareza e objetividade. Não é à toa que durante muito tempo, por exemplo, se vendeu e comprou a ideia de que o Brasil não era racista. Que o Brasil é pacífico, receptivo, tolerante, enfim...

Acontece que as dinâmicas não se dão somente pelas forças conjunturais internas; mas, também, pelas externas. Eis, então, que depois de atingir a um apogeu de desenvolvimento científico e tecnológico possibilitado pelas sucessivas Revoluções Industriais, as quais impactaram sobremaneira o estilo de vida e comportamento das sociedades, o mundo começou a ensaiar movimentos de retrocesso político-social, pelas mãos das parcelas elitistas da ultradireita.

Algo que não foi difícil de respingar em países de histórico colonial, como é o Brasil. Tanto o Colonialismo quanto o Neocolonialismo (Imperialismo), ocorridos ao redor do planeta, têm na estrutura social das suas colônias um estrato ínfimo de uma elite que detém os poderes locais e que reproduz sobre as demais camadas o mesmo modelo de dominação que o país em si recebe da sua metrópole. Uma governança de viés predatório que acirra as desigualdades e impossibilita o estabelecimento da igualdade e da equidade entre os cidadãos.

A grande questão é que esse cenário não se extingue no fluxo da história, dada a permanência dos registros ideológicos, discursivos, narrativos, circulando entre as gerações. Basta que haja situações sociais críticas e desconfortantes para que elas emerjam no intuito de se reafirmar e de se restabelecer. Daí a presença e a disseminação da ultradireita no mundo, nas últimas décadas, incluindo o Brasil.

Portanto, não está no contraditório político-partidário a beligerância nacional contemporânea. Está no seu ranço histórico de ex-colônia.  Está no seu inconformismo em relação à mobilidade social, ao acesso aos direitos cidadãos, à ruptura das dicotomias já citadas acima. É isso o que explica o desafio de restabelecer a paz, a unidade nacional, com vistas ao desenvolvimento, ao progresso e ao bem-estar social coletivo.  Porque esse movimento significa transformar 500 anos de história e reorganizar uma organização que parece perfeita aos olhos de uns e outros.

Vejam que o recrudescimento do racismo, da misoginia, da xenofobia, da homofobia, da aporofobia, da intolerância religiosa, imprime claramente essa resistência ao fluxo metamórfico natural da sociedade. Diante da legitimação político-discursiva da ultradireita e seus matizes, presente na contemporaneidade, essa resistência ultrapassou, no Brasil, as fronteiras do pensamento e da manifestação subliminar, que sempre ocuparam, para ganhar a manifestação explícita e contundente das ruas, sob vieses de autoritarismo e violência diversos.

No fundo, o topo da pirâmide tem medo de que a base, muito maior do que ele, possa ameaçar sua estabilidade, a manutenção de suas regalias, de seus privilégios, de seus poderes. Invisibilizar o outro é, portanto, possibilitar visibilizar a si mesmo, conferindo uma importância, um destaque, uma relevância, que no fundo é totalmente imaginária. Afinal, esta não é uma questão de ter; mas, uma questão de ser. É o ser, na expressão da sua coletividade, o que promove a dinâmica social. Não é esse ou aquele; mas, todos sem distinção.

Por linhas tortas, então, o universo decidiu fazer uma traquinagem! Escolheu justamente o bicentenário da Independência nacional como ponto de inflexão para o país. Mostrou que sempre é tempo de romper com o passado, de soltar as velhas amarras, de olhar para frente, de almejar o futuro, de destruir velhos paradigmas e construir novos. É; não há como voltar atrás, como conter essa transformação em curso!

Apesar de todos os pesares e esforços da ultradireita e seus matizes nacionais, o tempo é indomável! A força das conjunturas imposta pelas necessidades, pelas urgências, pelos acontecimentos, pelas pessoas, é incontrolável. Não basta quereres e vontades. Não basta autoritarismo, violência, brutalidade. Não basta o poder. Não basta o dinheiro. Não basta isso ou aquilo. A vida não se curva aos seus caminhos.

À revelia de sua vontade os direitistas viram o resultado do pleito eleitoral confirmar que pelas mãos da esquerda se tem, pela primeira vez na história, um Presidente da República eleito três vezes – 2002, 2006, 2022. Além disso, a formação de um movimento dialógico responsável e consciente, que permitiu consolidar uma frente partidária ampla, para que a chapa vencedora se sagrasse vitoriosa. No fim das contas, onde terá ido parar a narrativa arraigada da polarização eleitoral, hein?  

Pois é, o Brasil apontou a existência de uma força de reafirmação democrática descomunal! Resistiu ao retrocesso, à destruição, às mentiras, ao desmantelamento, ao ódio, à violência, ... Sim, a Democracia vive! E o que é a Democracia senão esse senso coletivo, plural, diverso, colocado em equilíbrio e em harmonia, contrapondo as bases da Autocracia, a fim de fazer valer o fluxo natural do desenvolvimento, do progresso, da evolução social.  

sábado, 29 de outubro de 2022

A esperança nunca para de soprar...


A esperança nunca para de soprar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Hoje é dia para ler e reler o poema Esperança 1, de Mário Quintana! Sorver de maneira delicada e profunda as palavras que compõem, de maneira quase infantil, o grande segredo da existência humana. Não entendeu? Ora, somos movidos cotidianamente pela esperança! Sem ela, tudo é terra arrasada, sem perspectiva, sem sonho, sem nada. É por essa emoção repentina, que brota de algum lugar dentro da alma, então, que a vida não desbota até a última gota. Que os fiapos de energia nos seguram pelas mãos.

Algo que me faz recordar Rubem Alves, quando escreveu que “Hoje não há razões para otimismo. Hoje só é possível ter esperança. Esperança é o oposto do otimismo. ‘Otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração’. Camus sabia o que era esperança. Suas palavras: ‘E no meio do inverno eu descobri que dentro de mim havia um verão invencível...’. Otimismo é alegria ‘por causa de’: coisa humana, natural. Esperança é alegria ‘a despeito de’: coisa divina. O otimismo tem suas raízes no tempo. A esperança tem suas raízes na eternidade. O otimismo se alimenta de grandes coisas. Sem elas, ele morre. A esperança se alimenta de pequenas coisas. Nas pequenas coisas ela floresce...” 2.

Assim, a partir dessa percepção podemos encontrar uma pista das razões que nos levam a resistir tão bravamente às tempestades e intempéries que investem contra os seres humanos, sem piedade. Quando tudo parece nos engolir, nos soterrar, nos massacrar, nos colocar de joelhos, eis que a esperança desconstrói o cenário e apazigua mente e coração. O que me faz acreditar que, por mais que se diga ter chegado ao fundo do poço, isso de fato nunca acontece. Estamos sempre presos a um último bastião de esperança. No entanto, ele não se consome em si mesmo, ele se renova para estar sempre à disposição quando se fizer necessário. É inesgotável. É atemporal.

É essa esperança que nos ajuda a cicatrizar as feridas do tempo, da vida. A não permitir que sangremos sem socorro, sem auxílio, sem amparo. Contudo, as cicatrizes permanecem para não nos deixar esquecer e acreditar que a vida possa ser resumida na autossuficiência da esperança. Não. Como bem destacou Mario Sergio Cortella, “Segundo o grande pensador da educação, Paulo Freire, é preciso ter esperança para chegar ao inédito viável e ao sonho. Cuidado! Há pessoas que têm esperança do verbo ‘esperar’. Esse grande educador e filósofo falava da esperança do verbo ‘esperançar’. Esperar é: ‘Ah, eu espero que dê certo, espero que aconteça, espero que resolva’. Esperançar é ir atrás, é não desistir. Esperançar é ser capaz de buscar o que é viável para fazer o inédito. Esperançar significa não se conformar” 3.

Você já deve ter lido o livro, ou assistido ao filme, O Curioso Caso de Benjamin Button 4. Trata-se de um conto do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald, publicado em 1922, no qual ele narra a história de um homem pela perspectiva inversa da vida, ou seja, da velhice para a infância. E dentre as mais famosas citações da obra está uma que coaduna exatamente com as palavras de Cortella. Ela diz o seguinte, “Para as coisas importantes, nunca é tarde demais, ou no meu caso, muito cedo, para sermos quem queremos. Não há um limite de tempo, comece quando quiser. Você pode mudar ou não. Não há regras. Podemos fazer o melhor ou o pior. Espero que você faça o melhor. Espero que veja as coisas que a assustam. Espero que sinta coisas que nunca sentiu antes. Espero que conheça pessoas com diferentes opiniões. Espero que viva uma vida da qual se orgulhe. Se você achar que não tem, espero que tenha a força para começar novamente”.

E se essa esperança não lhe satisfaz por considerar que esteja baseada na criação ficcional, veja a história da poetisa goiana Cora Coralina. Ela só publicou seu primeiro livro aos 75 anos de idade, embora tenha começado a escrever aos 14. Quando o assunto é esperança, ela é um exemplo indiscutível! Aliás, como ela mesma escreveu, “Eu sou aquela mulher / a quem o tempo / muito ensinou. / Ensinou a amar a vida. / Não desistir da luta. / Recomeçar na derrota. / Renunciar a palavras e pensamentos negativos. / Acreditar nos valores humanos. Ser otimista. / Creio numa força imanente / que vai ligando a família humana/ numa corrente luminosa / de fraternidade universal. / Creio na solidariedade humana. / Creio na superação dos erros / e angústias do presente. / Acredito nos moços. / Exalto sua confiança, / generosidade e idealismo. / Creio nos milagres da ciência / e na descoberta de uma profilaxia / futura dos erros e violências / do presente. / Aprendi que mais vale lutar / do que recolher dinheiro fácil. / Antes acreditar do que duvidar” (Ofertas de Aninha [ aos moços]) 5.

Portanto, há esperança! Em mim, em você, no outro...  Na ficção. Na realidade. Em cada átomo de energia existente no universo. Esperança no hoje, no amanhã, no depois de amanhã, ... sempre. Com ou sem lágrimas. Com ou sem sorrisos. Com ou sem abraços. Mas, sempre uma esperança genuína, motivante, transformadora. Uma esperança que tende a emergir o melhor que há em cada ser humano, apesar das sombras e das escuridões que tentam consumi-lo com voracidade.  Porque é esperança com ares de criança, com leveza, com alegria, com gosto de quero mais... Mais da vida. Mais do belo. Mais do sagrado. Mais do tempo. Mais... Apenas, mais.  

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O papel das linguagens verbais e não verbais na tensão beligerante nacional


O papel das linguagens verbais e não verbais na tensão beligerante nacional

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, insiste em rondar a sociedade brasileira um clima de tensão beligerante, conforme mostram os veículos de informação e comunicação. Ofensas. Ameaças. Mentiras. ... São muitos os recursos e estratégias que têm sido empregados pelo campo político-partidário para vencer a disputa.

Eis que me deparei com uma notícia, aparentemente desvinculada desse assunto; mas, que na verdade nos lança a uma profunda reflexão sobre esses tempos. Uma criança se fantasiou de Hitler para uma comemoração de Halloween (Dia das Bruxas) na escola e o assunto reverberou de maneira muito negativa 1.

Pois bem, é lamentável que coisas assim aconteçam em pleno século XXI. O próprio Duque de Sussex, Harry, em 2005, foi fotografado usando um uniforme nazista na festa de um amigo 2. No entanto, caracterizar-se ou não como nazista não é o ponto. É preciso discutir o processo de banalização, de trivialização da barbárie humana, expresso através de inúmeros episódios históricos, como nesses casos.

É visível a existência de uma construção narrativa que coloca os horrores sofridos pela humanidade presos às páginas amareladas da história, como se eles não permanecessem repercutindo pelo tempo. Trata-se de uma tentativa clara de diluir esse horror através das gerações até que ele se torne indiferente e imperceptível pelas pessoas, tendo em vista que, em sua maioria, elas não experenciaram in loco a todos esses acontecimentos.

Portanto, sua percepção dos fatos é distanciada da realidade e por isso, sofre interferência das manipulações dialógicas do poder. O que explica, por exemplo, porque tanta gente brinca com assuntos sérios e graves, dissociando o fato de que a história é cíclica e que pode, a qualquer momento, vir a se repetir. Os arquivos subjetivos da história estão sempre sendo vasculhados pelas linhas de poder a fim de apurar alguma informação, alguma ideologia, algum modus operandi, que satisfaça aos interesses de um determinado grupo em detrimento de outro. Mesmo que os registros apontem ter havido insucesso na empreitada inicial, nem sempre eles são desconsiderados.

É por essas e por outras, por exemplo, que o povo judeu faz questão de manter viva as memórias dolorosas e terríveis do que seus antepassados viveram no holocausto. Contar e recontar repetidas vezes aquelas lembranças é uma forma muito eficaz de fazer com que as novas gerações interajam com o passado. Ainda que não seja uma memória genuína, porque ela nasce da perspectiva dos outros, ela é válida no sentido de não se permitir esquecer tudo o que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.

Infelizmente, por aqui não é assim! A construção histórica brasileira se incumbiu de estabelecer uma memória curta aos seus cidadãos. Aliás, a história não recebe de uma parcela significativa da população o apreço devido. De modo que, cada dia mais, ela vem sendo recortada, sintetizada, adulterada, manipulada, para ser dispersa em migalhas desconectas pelos instrumentos tecnológicos de comunicação, com o propósito de atender a interesses que contrariam diretamente à construção cidadã, à ordem e ao equilíbrio social.  

Como se pela perspectiva de slides, muitas vezes desfocados, se pudesse traçar o roteiro de um filme inteiro, inclusive, abstraindo a sua essência mais profunda. Só que não. Daí acontecerem situações como essa na escola infantil. Ninguém parou para pensar, para analisar, para avaliar a escolha daquela fantasia. E o mundo fala! Além das linguagens verbais, há todo um conjunto de linguagens não verbais apresentadas na forma de signos, de símbolos, de imagens e de gestos. Os quais costumam ser mais eloquentes do que as próprias linguagens escritas ou faladas.

Então, esse episódio pode sim, ser interpretado como mais uma manifestação dessa tensão beligerante. Por trás daquela criança existem adultos capazes de discernir a respeito do simbólico e do não simbólico dentro da sociedade. Ao se omitirem a respeito, eles reafirmam tanto a sua indiferença quanto a sua afronta em relação ao assunto. Afinal, não se pode desconsiderar as inúmeras e recentes discussões nacionais em torno do nazismo, do fascismo, pautas atribuídas aos movimentos de ultradireita.

Portanto, o horror que se dissemina nesse caso não diz respeito somente ao ato de resgatar um pedaço da história; mas, de naturalizá-lo dentro de um novo contexto social, apesar de tudo o que ele representa. Esse tipo de atitude, de comportamento, estabelece uma ruptura inequívoca com a empatia, a alteridade, arrastando as pessoas para uma exacerbada manifestação do narcisismo individualista, que é desprovido do senso de coletividade. Há uma supressão da fundamentação dos fatos em nome da prevalência da liberdade e da expressão dos desejos, das vontades, dos quereres de alguém ou de alguns.   

E apesar desse texto se referir a um exemplo ligado ao nazismo, as reflexões propostas cabem perfeitamente em inúmeras outras situações presentes, amiúde, no cotidiano brasileiro. Situações de racismo 3, de misoginia 4, de xenofobia 5, de aporofobia 6, de homofobia 7, de intolerância religiosa 8, que transitam por esses mesmos labirintos das linguagens e dos comportamentos humanos depreciativos. E que, lamentavelmente, atentam sem quaisquer pudores ou constrangimentos contra à dignidade humana, à cidadania, e se enviesam pelas práticas delituosas inflamadas pelo ódio e pela violência presentes no mundo real e no mundo virtual. 


quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Fome. Um problema meu, seu, nosso.


Fome. Um problema meu, seu, nosso.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É uma pena que o senso de superioridade brasileira seja tão distorcido e equivocado, que não permita enxergar a realidade como ela é. A ex-colônia portuguesa chamada Brasil, assim como tantas outras ex-colônias mundo afora, padece das mesmas agruras oriundas da desigualdade, o que inclui a fome. O que pode ser considerado o paradoxo dos paradoxos, quando o país figura como o 4º maior produtor agrícola do mundo.

Mas, isso é bom para entender que a fome não está necessariamente condicionada à produção e a quantidade de alimentos disponíveis. Fome tem a ver com distribuição de renda, com acesso a um regime nutricional equilibrado e satisfatórios às demandas corporais etárias e de sobrevivência, com desperdícios na produção e armazenamento de alimentos, com suficiência salarial, com emprego. E na medida com que ela é negligenciada e preterida no rol das prioridades de políticas econômicas, ela agiganta uma série de desdobramentos e consequências nefastas.  

Acontece que depois de uma história feia e absurdamente cruel escrita pelos movimentos colonialistas e neocolonialistas (imperialistas) ao redor do planeta, foram tecidas narrativas, a partir de argumentos técnico científicos, tais como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Índice de Gini, que colocaram a questão da fome como uma característica pertencente, quase que exclusivamente, aos países subdesenvolvidos.

O que fez com que o Brasil, por exemplo, se permitisse enxergar a fome a uma certa distância, durante muito tempo, pelo fato de ser enquadrado como país em desenvolvimento, ou seja, que vem apresentando avanços econômicos nos setores industriais e nas exportações, melhorias nos aspectos sociais, incluindo educação e saúde.

Então, ela não veio sendo tratada como um problema a ser resolvido, uma prioridade, uma urgência; mas, algo que existe e se mantém sob controle. O que não é verdade! Não há fome sob controle! Não é possível estabelecer quaisquer parâmetros toleráveis para a fome, em nenhum lugar do planeta. A fome é o limite mais visível e perverso entre a vida e a morte de um ser humano. A fome é, portanto, o marco mais emblemático da indigência, da indignidade. Nesse sentido, não é preciso que ela figure na imagem, retratada historicamente nos livros de geografia, de história e de sociologia, de um indivíduo esquálido, sem forças, pele e osso, para que seja percebida.

A fome começa a existir, quando as pessoas são privadas do acesso quantitativo e qualitativo de alimentos diariamente e começam a fazer malabarismos domésticos para mitigar os efeitos dessa escassez. E isso é tão sério que a Organização das Nações Unidas (ONU) criou um mapa para a fome no mundo, o qual estabelece que um país começa a integrá-lo quando mais de 2,5% da sua população enfrenta falta crônica de alimentos. E queira você admitir isso ou não, infelizmente, o Brasil faz parte dessa realidade!

De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil (I VIGISAN), publicado em 2021, “a fome havia retornado aos patamares de 2004”, o que significa que “no fim de 2020, 19,1 milhões de brasileiros/as conviviam com a fome. Em 2022, são 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer” 1. Porém, isso não diz tudo sobre essa realidade degradante. Os principais veículos de comunicação e informação do país dão conta de que a “Desnutrição provoca a maior hospitalização de bebês dos últimos 14 anos no Brasil, diz Fiocruz. O estudo mostra que, em 2021, foram oito crianças de até um ano de idade levadas ao hospital todos os dias por falta de comida” 2. Pois é, o Brasil que sempre gostou de apontar as crianças como o futuro do país...

De repente, a crueza da fome nos faz entender que não temos nem presente e nem futuro, para milhões de brasileiros (as). A fome não é somente o emagrecimento exagerado, ou a interrupção do crescimento e desenvolvimento corporal, ou as alterações psicocomportamentais, ou a perda de imunidade. Ela é o estágio mais grave da vulnerabilização social; portanto, ela compromete diretamente o acesso e o exercício à própria cidadania.

Ela aprofunda as desigualdades de maneira absoluta e, muitas vezes, irreversível. Como escreveu João Cabral de Melo Neto, “[...]E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina: / que é a morte que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia / (de fraqueza e de doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade, / e até gente não nascida)” (Morte e Vida Severina 3).

Diante desse breve exposto, restam algumas perguntas que não querem calar: Será mesmo que somos um país em desenvolvimento? Será mesmo que somos o que pensamos ser? Será mesmo que a realidade cabe nos esconderijos ocultos da nossa idealização fantasiosa? Desenvolvimento, progresso, na minha percepção, pressupõe essencialmente em não deixar quem quer que seja para trás. Pressupõe igualdade, equidade, respeito, cuidado, dignidade, ... Não é à toa que Rachel de Queiroz nos tenha indagado, “Fala-se muito na crueldade e na bruteza do homem medievo. Mas o homem moderno será melhor? ” (As Terras Ásperas).

Responda a si mesmo. Aliás, devemos todos responder em silêncio contrito a essa pergunta. Não adianta, somos sim, responsáveis pela irresponsabilidade de deixar florescer pelos campos do mundo, diariamente, as sementes secas da fome. Pela nossa indiferença. Nossa negligência. Nossa desumanidade. Nosso egoísmo. Regamos a fome e fazemos brotar as lágrimas do sofrimento, da angústia e do desespero humano, por todo o planeta. Por isso, é que “a cada 4 segundos, uma pessoa morre de fome no mundo” 4 



3 MELO NETO, J. C. de. Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. p.73-79.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Viva Milton Nascimento! Viva Darcy Ribeiro! Viva Belchior!


Viva Milton Nascimento! Viva Darcy Ribeiro! Viva Belchior!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Todos os dias têm suas aventuras e desventuras, suas graças e seus castigos. Por quê? Não sei dizer. Mas, particularmente, acredito nas conjunturas dos astros, na composição etérea das energias, nas conspirações silenciosas dos deuses.

Hoje, é um dia assim, especial! A gratidão começa pela celebração de oito décadas de existência de um dos maiores nomes da música popular brasileira, Milton Nascimento 1. Carinhosamente chamado por Bituca. No entanto, eis que de repente a lista de extraordinários do dia não pode deixar de contemplar, também, o antropólogo, sociólogo e historiador Darcy Ribeiro 2, que estaria completando 100 anos, e o cantor e compositor Belchior 3.

Em tempos tão estranhos, sisudos, pesados, esse dia nos remete a um Brasil diferente. Um país que sabe se olhar, sabe se ver, sabe reconhecer a sua identidade plural, multicultural; bem como, o seu papel e a sua significância no mundo. Um país que não estabelece pudores e melindres para dissecar as suas camadas mais profundas e buscar caminhos para estabelecer a sua inteireza bonita, produtiva e pulsante.

Esses três grandes nomes brasileiros têm através de seus respectivos legados nos propiciado exatamente esse exercício. Não importando o dia, a hora ou o lugar. Porque apesar da sua notoriedade, da sua repercussão midiática, eles se fizeram acessíveis e populares ao conjunto do povo brasileiro, por meio da conexão estabelecida por suas palavras, em verso e prosa. De certo modo, tornando-se guias dos labirintos que perfazem a nossa própria cidadania, a fim de que pudéssemos, em algum momento, nos descobrir em essência, nos revelar em amplidão, ao encontrar as luzes no fim do túnel.

É ou não é para agradecer aos mistérios do universo algo dessa natureza, hein? Um dia marcado no calendário pela presença de gente assim, especial por excelência. Gente genuinamente brasileira e que faz questão de enaltecer suas raízes, de defender os seus potenciais de desenvolvimento e de progresso, com base na força da educação e da cultura. Gente que é a cara do Brasil, na transcendência da sua diversidade.

Pensar neles é realmente pacificador! Porque, ainda que nem tenham se dado conta disso, eles são capazes de romper com a nossa solidão, o nosso desalento, a nossa tristeza. De olhos abertos ou fechados, a consciência em relação às suas imagens, refletidas na nossa retina, imprime esperança. Do mesmo modo que suas palavras. Exala deles uma aura positiva, na qual dias melhores parecem bem mais do que uma simples perspectiva.

Embora, tenha que admitir que eles não se escondem em subterfúgios para tornar a realidade mais bonita ou palatável. São francos, diretos; às vezes, até um bocadinho cruéis. Mas, sem verdade não há transformação! Para mudar é preciso conhecer, saber onde pisa, traçar as estratégias de sobrevivência. Contudo, isso pode ser feito com delicadeza, com respeito, com serenidade, de modo que os resultados venham a ser melhores do que os esperados. E a prova está aí, bem diante de nós! Na sua atemporalidade. Na sua imortalidade. Afinal, 26 de outubro nos deu Bituca, Darcy e Belchior como presentes a serem desfrutados sempre, todos os dias.  

Bem mais do que admirar, respeitar, reverenciar suas obras, cada brasileiro (a) deveria mesmo, era mergulhar nesse vasto oceano de conhecimento, que ultrapassa todas as linhas e as entrelinhas para chegar em um lugar ainda sem nome. Um lugar onde cada um de nós seja capaz de se conectar com sua própria brasilidade, a sua própria essência humana e se permitir refletir a respeito.

Talvez, hoje, seja um bom dia para dar adeus à preguiça e dedicar atenção a esses caras geniais! Ouvir mais a letra do que a melodia! Ler mais as palavras do que os textos! Deixar-se tocar pelos trabalhos individualmente e não, apenas, pelo conjunto da obra. Como quem saboreia um prato sem pressa, destilando os gostos, as nuances, as combinações, até alcançar o resultado final. Construindo uma compreensão própria em torno das percepções desse processo único, singular.  

A incivilidade travestida de liberdade de expressão


A incivilidade travestida de liberdade de expressão

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ah! A contemporaneidade e sua legião de donos da razão! Esse é o cenário que temos bem diante do nariz e que insiste em utilizar da liberdade de expressão, como uma prerrogativa para escancarar tanto a sua incapacidade dialógica quanto a sua incivilidade.

Em quaisquer lugares do planeta, onde a Democracia ainda prevaleça, todos têm direito a expressão de suas crenças, valores, convicções, pontos de vista. No entanto, para tal há maneiras e maneiras de se fazer, respeitando a civilidade, o bom senso, a dignidade humana. Pena que o que se tem visto por aí siga, totalmente, na contramão desse comportamento.

Lamento, mas, quando se decide hastear a bandeira da ignorância, da deselegância, da estupidez, da hostilidade, para estabelecer as suas manifestações do pensamento, faz-se a opção declarada por um comportamento que não traduz em absoluto a liberdade de expressão. Na verdade, o que se tem é uma abdicação de um direito pela transgressão e pelo delito.

Esse foi o ponto estabelecido ao longo da história humana sobre a Terra. Das cavernas à contemporaneidade, os indivíduos foram sendo moldados pelas forças conjunturais que atuam nas sociedades a fim de domesticar os arroubos da sua barbárie.

Não apenas do ponto de vista dos comportamentos, das atitudes; mas, das construções ideológicas, das linguagens, das comunicações, das relações dialógicas. Afinal, seres humanos foram dotados de capacidade cognitiva e intelectual para se estabelecerem como seres sociais.

Mas, de repente, uns e outros decidiram seguir na contramão da história e fincar pé em uma flexibilização arbitrária e absurda da chamada liberdade de expressão, a partir de uma verborragia isenta de quaisquer filtros éticos e morais.

Como se não houvesse mais nenhum vestígio de formulação do pensamento, antes que ele ganhasse o terreno das linguagens. Fala-se sem medida. Sem critério. Sem lógica. São falas, geralmente, imbuídas de sentimentos pesados, ruins, destrutivos, altamente agressivos.

De modo que essa pseudoliberdade de expressão não passa de uma reafirmação distorcida de vontades e quereres individuais que não cabem e nem se ajustam aos parâmetros sociais estabelecidos pelo senso coletivo.

Portanto, ela traduz uma exacerbação visível de frustrações, de descontentamentos, de contrariedades, que se inflamam de maneira consciente e inconsciente nos indivíduos, na medida em que o mundo real diverge do seu mundinho idealizado.

Sem contar que há, no contexto contemporâneo, uma tendência clara de abstenção do próprio posicionamento ideológico em nome de seguir os fluxos sociais vigentes.

Isso significa dizer que muitas pessoas não estão mais dispostas a exercitar a sua capacidade de leitura analítica, crítica e reflexiva do mundo, por considerarem esse processo desgastante, cansativo, complexo. Para elas é muito mais fácil, cômodo e de baixo dispêndio energético, transitar pela superfície dos assuntos, embrenhar-se naquilo que parece ser um senso coletivo, e pronto. Missão cumprida!

Principalmente, quando elas encontram eco para extravasar suas frustrações, seus descontentamentos, suas contrariedades, suas incompreensões, mesmo que estas não tenham sido forjadas a partir das mesmas perspectivas que as suas. Para elas, o fundamental é a força, a energia, o impacto, a aparência aglutinadora que esse movimento apresenta.  Porque tudo isso dá sentido, expressa significância, para algo que, na verdade, é completamente vazio, inconsistente e equivocado.

Essa encruzilhada contemporânea, no fundo, diz mais do que se imagina. Ela nos confronta com uma obviedade sem tamanho, que é o desaprendizado em relação ao uso correto e apropriado das linguagens. Por isso, essa pseudoliberdade de expressão se consome em si mesma. Fala-se, fala-se, fala-se; mas, e daí?

O mundo deixou de ser o que é? Conseguiram fazê-lo caber na sua idealização pessoal? Aplacaram o seu desconforto, o seu incômodo ou o seu desalento em relação a isso ou aquilo? Estamos diante de um zero a zero. Essa pseudoliberdade não gera transformação, não muda o curso da história, é apenas muita agitação por nada. Um modo estranho de lançar holofotes sobre vidas aparentemente blasés, sem graça, sem expressão.

Portanto, muita atenção à dinâmica da vida contemporânea. Como escreveu Noam Chomsky, “Se você acredita na liberdade de expressão, você acredita na liberdade para exprimir opiniões de que você não gosta. Quer dizer, Goebbels era a favor da liberdade de expressão para opiniões que ele gostava. Tal como Stalin. Se você é a favor da liberdade de expressão, isso significa que você é a favor da liberdade de exprimir precisamente opiniões que você despreza. Caso contrário, você não é a favor da liberdade de expressão”.

É por essas e por outras que devemos pensar sobre as seguintes palavras de Darcy Ribeiro, “Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de toda a ordem dilaceram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros”.

Assim, ao se arvorar em falar sobre liberdade de expressão, você deve sempre se lembrar de que ela demanda um grau de racionalidade, de civilidade, de dialogia, que não permite ser minimamente capaz de sucumbir à ignorância, à deselegância, à estupidez ou à violência, que de algum modo habitam você. Afinal, o que deve prevalecer é o seu melhor, jamais o seu pior. 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Chega de semear o ódio!


Chega de semear o ódio!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já passou da hora de entender, o seu ódio é só seu! Se engana quem pensa que destilar um sentimento tão indigno irá mudar o mundo e ajustá-lo às suas vontades e quereres. O ódio é um problema seu com você, não com os outros. É muito importante falar sobre isso, considerando uma exacerbação desse sentimento, especialmente, em relação às minorias sociais no Brasil.  

Vira daqui, mexe dali, e os veículos de informação e comunicação trazem relatos de manifestações de racismo, de misoginia, de xenofobia, de homofobia, de gordofobia, de aporofobia, ... que não podem ficar restritas em si mesmas. É preciso discutir a respeito. É preciso refletir enquanto sociedade.

Se a ideia de quem alimenta, promove e espalha o ódio contra minorias é fazê-las se absterem da sua cidadania, do seu direito de transitarem livres pelos espaços sociais, de manifestarem suas opiniões, isso não somente fere a legislação brasileira; mas, também, aponta para o tamanho da estupidez nacional.

Somos únicos, diversos, plurais, e cada um de nós representa uma força humana indiscutível para a movimentação das engrenagens sociais, nos mais diversos campos da vida.

Portanto, basta uma análise fria e breve sobre esse ódio para entender de maneira franca e objetiva que nenhum país sobrevive pelo esforço de um único recorte social que se julga mais importante, ou mais privilegiado, ou mais poderoso, ... enfim.

Infelizmente, a estratificação socioeconômica das populações criou esse tipo de armadilha nos inconscientes coletivos, ou seja, as gradações de importância ou desimportância social. É daí que emerge essa pseudossuperioridade, esse pseudopoder, essa pseudodistinção.

Pseudo sim, porque nossa própria condição humana não nos permite, em sã consciência, cogitar algo dessa natureza. Somos todos mortais. Falíveis. Frágeis. Vulneráveis. E não há nada no mundo, no campo material, que mude essa máxima.

O que nos coloca em posições diferentes na sociedade é um conjunto infinito de possibilidades e impossibilidades, de acessibilidades e inacessibilidades, de aptidões e não aptidões, de competências e incompetências.

Mas, nem por isso, o que somos no frigir dos ovos nos faz mais ou menos que ninguém, porque é pela junção dos esforços, dos trabalhos, que o país segue adiante.

Qualquer um que falte, que se ausente, deixa uma lacuna, deixa uma perda a ser sentida e percebida em algum momento. Mas, mesmo assim, alguns querem odiar sem limites!

Se me permitem perguntar, será que esses que odeiam tanto se prontificariam a assumir os papeis sociais desempenhados por todos aqueles que foram suas vítimas? Será que eles fariam isso em nome de não permitir eventuais prejuízos ao desenvolvimento e ao progresso socioeconômico do país?

Porque para nutrir e destilar tanto ódio a fim de segregar pessoas de maneira cruel e perversa, essa gente teria que arcar, no mínimo, com essas consequências socioeconômicas; visto que, pelo altruísmo, pela empatia, pela alteridade, elas jamais se comprometeriam.

Aliás, quando o assunto caminha por essa via, eles (as) logo se escondem sob o manto velho e esfarrapado de desculpas imperdoáveis; pois, sabem que para o seu ódio não há justificativa sustentável.

Sua frustração por não viverem no mundo idealizado de suas mentes os (as) fazem se comportar dessa maneira tão bizarra, tão non sense; para não dizer, em muitos casos, criminosa.

O pior é que de grão em grão eles (as) se aglutinam e aí, “Basta que um homem odeie outro para que o ódio ganhe pouco a pouco a humanidade inteira” (Jean-Paul Sartre).

E isso é preocupante não apenas pelo fato em si; mas, porque os muros de ódio, que estão sendo habilmente erguidos, não estão permitindo à humanidade perceber os desafios e os imponderáveis que já se desenham no horizonte.

Haja vista as guerras, as epidemias, os eventos climáticos extremos, os deslocamentos populacionais forçados, as crises econômicas e o empobrecimento global, ... que sinalizam, sem quaisquer pudores, a necessidade imperiosa do estabelecimento da unidade humana, em nome da sobrevivência no planeta Terra.

O que me faz lembrar de uma propaganda da Organização Internacional Médicos sem Fronteiras que diz, “Quem pode salvar a vida de um ser humano é outro ser humano”1.

Temos que pensar que a velocidade de transformação imposta ao planeta está cada vez mais frenética. Já se foi o tempo em que as perspectivas eram cunhadas em décadas. A negligência, a irresponsabilidade, a imprevidência, consumiram esse tempo!

Agora, tudo pode acontecer a qualquer momento. Daí a total impossibilidade de permanecer com os pés fincados em lamaçais de ódio e sangue. O tempo urge e clama pela sobrevivência da espécie humana.

Chega de semear o ódio! Eu sei, você sabe, ele sabe, ... “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (art. 1º, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948). Isso diz tudo.