Fome.
Um problema meu, seu, nosso.
Por
Alessandra Leles Rocha
É uma pena que o senso de
superioridade brasileira seja tão distorcido e equivocado, que não permita
enxergar a realidade como ela é. A ex-colônia portuguesa chamada Brasil, assim como
tantas outras ex-colônias mundo afora, padece das mesmas agruras oriundas da
desigualdade, o que inclui a fome. O que pode ser considerado o paradoxo dos
paradoxos, quando o país figura como o 4º maior produtor agrícola do mundo.
Mas, isso é bom para entender que
a fome não está necessariamente condicionada à produção e a quantidade de
alimentos disponíveis. Fome tem a ver com distribuição de renda, com acesso a
um regime nutricional equilibrado e satisfatórios às demandas corporais etárias
e de sobrevivência, com desperdícios na produção e armazenamento de alimentos, com
suficiência salarial, com emprego. E na medida com que ela é negligenciada e
preterida no rol das prioridades de políticas econômicas, ela agiganta uma
série de desdobramentos e consequências nefastas.
Acontece que depois de uma
história feia e absurdamente cruel escrita pelos movimentos colonialistas e
neocolonialistas (imperialistas) ao redor do planeta, foram tecidas narrativas,
a partir de argumentos técnico científicos, tais como o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) e o Índice de Gini, que colocaram a questão da
fome como uma característica pertencente, quase que exclusivamente, aos países
subdesenvolvidos.
O que fez com que o Brasil, por
exemplo, se permitisse enxergar a fome a uma certa distância, durante muito
tempo, pelo fato de ser enquadrado como país em desenvolvimento, ou seja, que
vem apresentando avanços econômicos nos setores industriais e nas exportações,
melhorias nos aspectos sociais, incluindo educação e saúde.
Então, ela não veio sendo tratada
como um problema a ser resolvido, uma prioridade, uma urgência; mas, algo que
existe e se mantém sob controle. O que não é verdade! Não há fome sob controle!
Não é possível estabelecer quaisquer parâmetros toleráveis para a fome, em
nenhum lugar do planeta. A fome é o limite mais visível e perverso entre a vida
e a morte de um ser humano. A fome é, portanto, o marco mais emblemático da indigência,
da indignidade. Nesse sentido, não é preciso que ela figure na imagem, retratada
historicamente nos livros de geografia, de história e de sociologia, de um indivíduo
esquálido, sem forças, pele e osso, para que seja percebida.
A fome começa a existir, quando
as pessoas são privadas do acesso quantitativo e qualitativo de alimentos
diariamente e começam a fazer malabarismos domésticos para mitigar os efeitos dessa
escassez. E isso é tão sério que a Organização das Nações Unidas (ONU) criou um
mapa para a fome no mundo, o qual estabelece que um país começa a integrá-lo
quando mais de 2,5% da sua população enfrenta falta crônica de alimentos. E queira
você admitir isso ou não, infelizmente, o Brasil faz parte dessa realidade!
De acordo com o Inquérito
Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no
Brasil (I VIGISAN), publicado em 2021, “a
fome havia retornado aos patamares de 2004”, o que significa que “no fim de 2020, 19,1 milhões de
brasileiros/as conviviam com a fome. Em 2022, são 33,1 milhões de pessoas sem
ter o que comer” 1. Porém,
isso não diz tudo sobre essa realidade degradante. Os principais veículos de comunicação
e informação do país dão conta de que a “Desnutrição
provoca a maior hospitalização de bebês dos últimos 14 anos no Brasil, diz Fiocruz.
O estudo mostra que, em 2021, foram oito crianças de até um ano de idade
levadas ao hospital todos os dias por falta de comida” 2.
Pois é, o Brasil que sempre gostou de apontar as crianças como o futuro do
país...
De repente, a crueza da fome nos
faz entender que não temos nem presente e nem futuro, para milhões de
brasileiros (as). A fome não é somente o emagrecimento exagerado, ou a interrupção
do crescimento e desenvolvimento corporal, ou as alterações
psicocomportamentais, ou a perda de imunidade. Ela é o estágio mais grave da
vulnerabilização social; portanto, ela compromete diretamente o acesso e o
exercício à própria cidadania.
Ela aprofunda as desigualdades de
maneira absoluta e, muitas vezes, irreversível. Como escreveu João Cabral de Melo
Neto, “[...]E se somos Severinos / iguais
em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina: / que é a
morte que se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos
vinte, / de fome um pouco por dia / (de fraqueza e de doença / é que a morte
severina / ataca em qualquer idade, / e até gente não nascida)” (Morte e Vida
Severina 3).
Diante desse breve exposto, restam
algumas perguntas que não querem calar: Será mesmo que somos um país em
desenvolvimento? Será mesmo que somos o que pensamos ser? Será mesmo que a
realidade cabe nos esconderijos ocultos da nossa idealização fantasiosa? Desenvolvimento,
progresso, na minha percepção, pressupõe essencialmente em não deixar quem quer
que seja para trás. Pressupõe igualdade, equidade, respeito, cuidado, dignidade,
... Não é à toa que Rachel de Queiroz nos tenha indagado, “Fala-se muito na crueldade e na bruteza do homem medievo. Mas o homem
moderno será melhor? ” (As Terras Ásperas).
Responda a si mesmo. Aliás, devemos todos responder em silêncio contrito a essa pergunta. Não adianta, somos sim, responsáveis pela irresponsabilidade de deixar florescer pelos campos do mundo, diariamente, as sementes secas da fome. Pela nossa indiferença. Nossa negligência. Nossa desumanidade. Nosso egoísmo. Regamos a fome e fazemos brotar as lágrimas do sofrimento, da angústia e do desespero humano, por todo o planeta. Por isso, é que “a cada 4 segundos, uma pessoa morre de fome no mundo” 4.
2 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/10/25/desnutricao-provoca-a-maior-hospitalizacao-de-bebes-dos-ultimos-14-anos-no-brasil-diz-fiocruz.ghtml
3 MELO NETO,
J. C. de. Morte e Vida Severina e Outros
Poemas em Voz Alta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. p.73-79.