O
papel das linguagens verbais e não verbais na tensão beligerante nacional
Por
Alessandra Leles Rocha
Às vésperas do segundo turno das
eleições presidenciais, insiste em rondar a sociedade brasileira um clima de
tensão beligerante, conforme mostram os veículos de informação e comunicação. Ofensas.
Ameaças. Mentiras. ... São muitos os recursos e estratégias que têm sido
empregados pelo campo político-partidário para vencer a disputa.
Eis que me deparei com uma
notícia, aparentemente desvinculada desse assunto; mas, que na verdade nos
lança a uma profunda reflexão sobre esses tempos. Uma criança se fantasiou de
Hitler para uma comemoração de Halloween (Dia das Bruxas) na escola e o assunto
reverberou de maneira muito negativa 1.
Pois bem, é lamentável que coisas
assim aconteçam em pleno século XXI. O próprio Duque de Sussex, Harry, em 2005,
foi fotografado usando um uniforme nazista na festa de um amigo 2. No entanto, caracterizar-se ou não
como nazista não é o ponto. É preciso discutir o processo de banalização, de trivialização
da barbárie humana, expresso através de inúmeros episódios históricos, como nesses
casos.
É visível a existência de uma construção
narrativa que coloca os horrores sofridos pela humanidade presos às páginas
amareladas da história, como se eles não permanecessem repercutindo pelo tempo.
Trata-se de uma tentativa clara de diluir esse horror através das gerações até
que ele se torne indiferente e imperceptível pelas pessoas, tendo em vista que,
em sua maioria, elas não experenciaram in loco a todos esses acontecimentos.
Portanto, sua percepção dos fatos
é distanciada da realidade e por isso, sofre interferência das manipulações
dialógicas do poder. O que explica, por exemplo, porque tanta gente brinca com
assuntos sérios e graves, dissociando o fato de que a história é cíclica e que
pode, a qualquer momento, vir a se repetir. Os arquivos subjetivos da história
estão sempre sendo vasculhados pelas linhas de poder a fim de apurar alguma
informação, alguma ideologia, algum modus
operandi, que satisfaça aos interesses de um determinado grupo em
detrimento de outro. Mesmo que os registros apontem ter havido insucesso na
empreitada inicial, nem sempre eles são desconsiderados.
É por essas e por outras, por
exemplo, que o povo judeu faz questão de manter viva as memórias dolorosas e terríveis
do que seus antepassados viveram no holocausto. Contar e recontar repetidas vezes
aquelas lembranças é uma forma muito eficaz de fazer com que as novas gerações
interajam com o passado. Ainda que não seja uma memória genuína, porque ela
nasce da perspectiva dos outros, ela é válida no sentido de não se permitir
esquecer tudo o que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.
Infelizmente, por aqui não é assim!
A construção histórica brasileira se incumbiu de estabelecer uma memória curta
aos seus cidadãos. Aliás, a história não recebe de uma parcela significativa da
população o apreço devido. De modo que, cada dia mais, ela vem sendo recortada,
sintetizada, adulterada, manipulada, para ser dispersa em migalhas desconectas
pelos instrumentos tecnológicos de comunicação, com o propósito de atender a
interesses que contrariam diretamente à construção cidadã, à ordem e ao equilíbrio
social.
Como se pela perspectiva de
slides, muitas vezes desfocados, se pudesse traçar o roteiro de um filme
inteiro, inclusive, abstraindo a sua essência mais profunda. Só que não. Daí
acontecerem situações como essa na escola infantil. Ninguém parou para pensar,
para analisar, para avaliar a escolha daquela fantasia. E o mundo fala! Além das
linguagens verbais, há todo um conjunto de linguagens não verbais apresentadas
na forma de signos, de símbolos, de imagens e de gestos. Os quais costumam ser
mais eloquentes do que as próprias linguagens escritas ou faladas.
Então, esse episódio pode sim,
ser interpretado como mais uma manifestação dessa tensão beligerante. Por trás
daquela criança existem adultos capazes de discernir a respeito do simbólico e
do não simbólico dentro da sociedade. Ao se omitirem a respeito, eles reafirmam
tanto a sua indiferença quanto a sua afronta em relação ao assunto. Afinal, não
se pode desconsiderar as inúmeras e recentes discussões nacionais em torno do
nazismo, do fascismo, pautas atribuídas aos movimentos de ultradireita.
Portanto, o horror que se
dissemina nesse caso não diz respeito somente ao ato de resgatar um pedaço da
história; mas, de naturalizá-lo dentro de um novo contexto social, apesar de
tudo o que ele representa. Esse tipo de atitude, de comportamento, estabelece
uma ruptura inequívoca com a empatia, a alteridade, arrastando as pessoas para
uma exacerbada manifestação do narcisismo individualista, que é desprovido do
senso de coletividade. Há uma supressão da fundamentação dos fatos em nome da prevalência
da liberdade e da expressão dos desejos, das vontades, dos quereres de alguém
ou de alguns.
1 https://revistacrescer.globo.com/fique-por-dentro/noticia/2022/10/foto-de-menino-fantasiado-de-hitler-em-festa-de-escola-gera-critica-e-colegio-de-presidente-prudente-se-pronuncia.ghtml
3 https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2022/10/26/policia-diz-que-ha-indicios-de-racismo-durante-show-de-seu-jorge-em-porto-alegre-e-aguarda-pericia-em-audios.ghtml
4 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/liminar-obriga-caixa-a-combater-assedio-sexual-e-moral-contra-funcionarios.shtml
6 https://www.em.com.br/app/colunistas/ricardo-kertzman/2022/09/17/interna_ricardo_kertzman,1394699/pobres-se-tornam-vitimas-banais-de-ricos-no-brasil-dos-cidadaos-de-bem.shtml
7 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/17/brasil-e-um-dos-paises-que-mais-matam-a-populacao-lgbtqia-diz-contarato