A
incivilidade travestida de liberdade de expressão
Por
Alessandra Leles Rocha
Ah! A contemporaneidade e sua
legião de donos da razão! Esse é o cenário que temos bem diante do nariz e que insiste
em utilizar da liberdade de expressão, como uma prerrogativa para escancarar tanto
a sua incapacidade dialógica quanto a sua incivilidade.
Em quaisquer lugares do planeta,
onde a Democracia ainda prevaleça, todos têm direito a expressão de suas
crenças, valores, convicções, pontos de vista. No entanto, para tal há maneiras
e maneiras de se fazer, respeitando a civilidade, o bom senso, a dignidade
humana. Pena que o que se tem visto por aí siga, totalmente, na contramão desse
comportamento.
Lamento, mas, quando se decide
hastear a bandeira da ignorância, da deselegância, da estupidez, da
hostilidade, para estabelecer as suas manifestações do pensamento, faz-se a
opção declarada por um comportamento que não traduz em absoluto a liberdade de
expressão. Na verdade, o que se tem é uma abdicação de um direito pela
transgressão e pelo delito.
Esse foi o ponto estabelecido ao
longo da história humana sobre a Terra. Das cavernas à contemporaneidade, os indivíduos
foram sendo moldados pelas forças conjunturais que atuam nas sociedades a fim
de domesticar os arroubos da sua barbárie.
Não apenas do ponto de vista dos
comportamentos, das atitudes; mas, das construções ideológicas, das linguagens,
das comunicações, das relações dialógicas. Afinal, seres humanos foram dotados
de capacidade cognitiva e intelectual para se estabelecerem como seres sociais.
Mas, de repente, uns e outros
decidiram seguir na contramão da história e fincar pé em uma flexibilização
arbitrária e absurda da chamada liberdade de expressão, a partir de uma
verborragia isenta de quaisquer filtros éticos e morais.
Como se não houvesse mais nenhum vestígio
de formulação do pensamento, antes que ele ganhasse o terreno das linguagens. Fala-se
sem medida. Sem critério. Sem lógica. São falas, geralmente, imbuídas de
sentimentos pesados, ruins, destrutivos, altamente agressivos.
De modo que essa pseudoliberdade
de expressão não passa de uma reafirmação distorcida de vontades e quereres
individuais que não cabem e nem se ajustam aos parâmetros sociais estabelecidos
pelo senso coletivo.
Portanto, ela traduz uma
exacerbação visível de frustrações, de descontentamentos, de contrariedades,
que se inflamam de maneira consciente e inconsciente nos indivíduos, na medida
em que o mundo real diverge do seu mundinho idealizado.
Sem contar que há, no contexto contemporâneo,
uma tendência clara de abstenção do próprio posicionamento ideológico em nome
de seguir os fluxos sociais vigentes.
Isso significa dizer que muitas
pessoas não estão mais dispostas a exercitar a sua capacidade de leitura
analítica, crítica e reflexiva do mundo, por considerarem esse processo desgastante,
cansativo, complexo. Para elas é muito mais fácil, cômodo e de baixo dispêndio energético,
transitar pela superfície dos assuntos, embrenhar-se naquilo que parece ser um
senso coletivo, e pronto. Missão cumprida!
Principalmente, quando elas
encontram eco para extravasar suas frustrações, seus descontentamentos, suas contrariedades,
suas incompreensões, mesmo que estas não tenham sido forjadas a partir das
mesmas perspectivas que as suas. Para elas, o fundamental é a força, a energia,
o impacto, a aparência aglutinadora que esse movimento apresenta. Porque tudo isso dá sentido, expressa significância,
para algo que, na verdade, é completamente vazio, inconsistente e equivocado.
Essa encruzilhada contemporânea,
no fundo, diz mais do que se imagina. Ela nos confronta com uma obviedade sem
tamanho, que é o desaprendizado em relação ao uso correto e apropriado das
linguagens. Por isso, essa pseudoliberdade de expressão se consome em si mesma.
Fala-se, fala-se, fala-se; mas, e daí?
O mundo deixou de ser o que é?
Conseguiram fazê-lo caber na sua idealização pessoal? Aplacaram o seu
desconforto, o seu incômodo ou o seu desalento em relação a isso ou aquilo? Estamos
diante de um zero a zero. Essa pseudoliberdade não gera transformação, não muda
o curso da história, é apenas muita agitação por nada. Um modo estranho de
lançar holofotes sobre vidas aparentemente blasés, sem graça, sem expressão.
Portanto, muita atenção à dinâmica
da vida contemporânea. Como escreveu Noam Chomsky, “Se você acredita na liberdade de expressão, você acredita na liberdade
para exprimir opiniões de que você não gosta. Quer dizer, Goebbels era a favor
da liberdade de expressão para opiniões que ele gostava. Tal como Stalin. Se você
é a favor da liberdade de expressão, isso significa que você é a favor da
liberdade de exprimir precisamente opiniões que você despreza. Caso contrário, você
não é a favor da liberdade de expressão”.
É por
essas e por outras que devemos pensar sobre as seguintes palavras de Darcy
Ribeiro, “Às vezes se diz que nossa
característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por
excelência gentil e pacífico. Será assim? A feia verdade é que conflitos de
toda a ordem dilaceram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos,
religiosos, raciais etc. O mais assinalável é que nunca são conflitos puros. Cada
um se pinta com as cores dos outros”.
Assim, ao se arvorar em falar sobre liberdade de expressão, você deve sempre se lembrar de que ela demanda um grau de racionalidade, de civilidade, de dialogia, que não permite ser minimamente capaz de sucumbir à ignorância, à deselegância, à estupidez ou à violência, que de algum modo habitam você. Afinal, o que deve prevalecer é o seu melhor, jamais o seu pior.