domingo, 8 de agosto de 2021

Paternidade. Muito para pensar...


Paternidade. Muito para pensar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quisera a vida fosse uma propaganda de margarina! Todo mundo feliz! As relações humanas transcorrendo na mais perfeita harmonia e afeto. Afinal, esse modelo de felicidade se ajusta na medida certa das nossas projeções existenciais e expectativas cotidianas, gerando um conforto emocional absurdamente interessante.

E, justamente, por isso, ele se torna um alvo fácil de manipulação pelas correntes ideológicas mais conservadoras, que tentam ressurgir e retomar seu espaço de influência e controle sobre a sociedade. Para eles, a ideia é de que pessoas conscientes sobre o seu papel social, principalmente, no contexto familiar, minimizaria eventuais rupturas com os padrões e os valores tradicionais presentes no conservadorismo.

Acontece que esse é o século XXI e, até aqui, muita água rolou sob as pontes do mundo, submetendo a sociedade a transformações profundamente radicais, as quais não parecem ter deixado brechas para eventuais reversões ou regressões.

De repente, muito a contragosto, diversos aspectos do nosso idealismo existencial foram desafiados, ressignificados e reconstruídos para tornar possível seguir em frente, perdendo, portanto, uma boa dose do seu romantismo. O que para muitos tornou a vida mais brutalizada, mais incisiva, mais desumana.

E um dos principais aspectos desse movimento, tem sido as relações familiares. Infelizmente, a consequência mais imediata desse processo tem se materializado nas violências. Feminicídio. Abandono parental. Infanticídio. Homicídio de crianças e adolescentes. Abusos físicos, mentais e morais.

No entanto, a referida parcela conservadora da sociedade, que luta tanto pela manutenção de padrões e comportamentos tradicionais, esforçando-se ao máximo em invisibilizar e negar os fatos, também, se omite por completo no auxílio as pessoas afetadas por essas violências. “Cada um por si e Deus por todos”.

Daí a importância de, em pleno Dia dos Pais, estabelecer uma reflexão profunda a respeito. O Feminicídio, por exemplo, tem 1338 registros oficiais no ano de 2020. Assassinadas, em sua maioria, por companheiros, ex-companheiros ou pretensos companheiros, essas mulheres foram ceifadas de suas famílias e da sociedade, de maneira torpe e cruel.

Entretanto, a perplexidade em torno desses atos, geralmente, faz esquecer dos órfãos que eles produzem; bem como, das consequências sociais graves que esta orfandade tende a produzir. Além de uma reprodução sistemática de violências, essas crianças e adolescentes ficam vulneráveis ao uso e tráfico de drogas, prostituição, baixa escolarização, e outros problemas.

Assim, se os homens são capazes de chegar a esse ponto, o de matar suas companheiras, ex-companheiras ou pretensas companheiras com requintes de barbárie ou na frieza da premeditação, diante de crianças e adolescentes, seus filhos ou não, onde está o seu senso de humanidade, de paternidade?

Independentemente, dela ser constituída por vias diferentes da maternidade, há nos dois processos o sentimento comum do cuidado, do respeito, da proteção, da preservação da vida em todas as suas nuances. Bem, pelo menos deveria haver. Mas, não é o que se percebe ou se vê.

Aliás, não é à toa a queda consecutiva nos reconhecimentos de paternidade, no país.  O que significa, pelo menos, em torno de 100 mil crianças sem saber quem é o seu pai biológico. Trata-se de um dos vieses do chamado Abandono Parental ou Afetivo, o qual não implica somente em prejuízos psicoemocionais; mas, também, em relação a direitos cidadãos fundamentais, porque o nome do pai na certidão de nascimento possibilita o acesso a pensão alimentícia, herança, inclusão em plano de saúde, previdência, ...

Esse tipo de abandono é assunto tão grave e complexo que já gerou inúmeras decisões judiciais no Brasil. Porque, apesar do afeto e do cuidado não serem moedas de troca, a atitude de abandono atinge diretamente o Princípio da Dignidade Humana, reafirmado no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Mas, é importante salientar que os esforços de reparação pela justiça, nem sempre conseguem romper com a compreensão distorcida e equivocada dos genitores quanto a uma objetificação do ser humano, na qual ele pode ser negligenciado, descartado, porque, muitas vezes, a repulsa em relação ao filho é algo insolúvel.

Quanto aos infanticídios, homicídios de crianças e adolescentes, segundo dados da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), “entre 2010 e 2020, pelo menos 103.149 crianças e adolescentes de até 19 anos morreram no Brasil, vítimas de agressão [...]Do total, cerca de 2 mil vítimas tinham menos de 4 anos” 1.

Considerando se tratar de dados, ainda, preliminares, a SBP considera que a Pandemia, nos últimos 2 anos, tenha contribuído para o cenário de acirramento da violência doméstica, muito embora, os casos de violência contra crianças e adolescentes sempre existiram, principalmente em ambiente doméstico ou intrafamiliar.

Contudo, ainda, que os atos não cheguem a se consumar na tragicidade mortal, os abusos físicos, mentais e morais não deixam de ser causadores de impacto social relevante na vida de crianças e adolescentes.

Segundo dados do Disque 100 (Disque Direitos Humanos), “mais de 95 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes foram registradas em 2020. Desse total, mais de 14 mil corresponderam a abuso sexual, estupro e exploração sexual. Os registros ainda incluem violência física e psicológica”; e “[...] o que preocupa é o fato de que a maioria das violações ocorrem na casa da criança e, ainda, o abusador são pessoas de confiança, na maioria dos casos” 2.

Por isso, muito cuidado! As aparências enganam! Toda essa apologia em torno de um modelo de “família feliz”, de “pais maravilhosos”, pode esconder uma infinitude de perversidades baseadas na estrutura de poder. Tanto que o Congresso Nacional alterou “o Decreto-Lei n.º 2.848, de 7/12/1940, Código Penal, a Lei n.º 8.069, de 13/07/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei n.º10.406, de 10/01/2002, Código Civil, para dispor sobre hipóteses de perda do poder familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente” 3.

É fundamental que se entenda que os vínculos afetivos mais profundos não emergem de doutrinas, de ideologias, de convicções arraigadas diversas; mas, de algo genuíno que habita em cada ser humano. Ser pai, no sentido literal da palavra, é decisão pessoal e intransferível; portanto, respaldada pela consciência, pelo desejo, pelo afeto.

Jamais uma paternidade de caráter protocolar vai conseguir alcançar a plenitude do seu papel. Daí uma tendência natural das conjunturas saírem fora de controle, se perderem por caminhos totalmente incorretos e perigosos. Para ser pai, de fato e de direito, o indivíduo precisa ouvir a si mesmo, conhecer a si mesmo, não sair por aí, ouvindo e seguindo o que pensam uns e outros. Paternidade é coisa séria! É para vida inteira.

Diante de tais considerações, esse movimento desvirtuado sobre a paternidade se explica pelo próprio desvirtuamento humano, na medida em que as pessoas têm abdicado do exercício do respeito, da empatia, da responsabilidade mútua.  

Na fugacidade do tempo, elas pensam que emoções e sentimentos atrapalham, e se armam de uma postura indiferente, fria, totalmente individualista; o que faz, então, esquecerem-se de que a paternidade é uma extensão delas mesmas.

Que a paternidade se faz maior do que o próprio percentual genético presente no DNA de suas células reprodutivas, porque traduz o ato narcísico de reconhecer no outro os reflexos de sua própria imagem e comportamento, independentemente, se bons ou ruins.

No fim das contas, é a paternidade que confere ao ser humano um pouco da eternidade. Sem a paternidade, as gerações não se consolidam. Razão pela qual, é necessária consciência sobre a dimensão do que isso realmente significa, antes de sair por aí, dispersando seus espermatozoides, aleatória e descompromissadamente. Pois, nunca se sabe, quais consequências podem emergir das irresponsabilidades voluntárias e involuntárias de um homem. Bora começar a pensar!   

Um comentário:

Acredito que todo comentário é o resultado da disposição de ler um texto até o final, ou seja, de uma maneira completa e atenta, a fim de extrair algo de bom, de interessante, de reflexivo, e, até quem sabe, de útil. Sendo assim, meus sinceros agradecimentos pelo tempo dedicado ao meu texto e por suas palavras.