Paternidade. Muito para
pensar...
Por Alessandra Leles Rocha
Quisera a vida fosse uma propaganda de margarina! Todo
mundo feliz! As relações humanas transcorrendo na mais perfeita harmonia e
afeto. Afinal, esse modelo de felicidade se ajusta na medida certa das nossas
projeções existenciais e expectativas cotidianas, gerando um conforto emocional
absurdamente interessante.
E, justamente, por isso, ele se torna um alvo fácil
de manipulação pelas correntes ideológicas mais conservadoras, que tentam
ressurgir e retomar seu espaço de influência e controle sobre a sociedade. Para
eles, a ideia é de que pessoas conscientes sobre o seu papel social,
principalmente, no contexto familiar, minimizaria eventuais rupturas com os padrões
e os valores tradicionais presentes no conservadorismo.
Acontece que esse é o século XXI e, até aqui,
muita água rolou sob as pontes do mundo, submetendo a sociedade a
transformações profundamente radicais, as quais não parecem ter deixado brechas
para eventuais reversões ou regressões.
De repente, muito a contragosto, diversos aspectos
do nosso idealismo existencial foram desafiados, ressignificados e reconstruídos
para tornar possível seguir em frente, perdendo, portanto, uma boa dose do seu
romantismo. O que para muitos tornou a vida mais brutalizada, mais incisiva, mais
desumana.
E um dos principais aspectos desse movimento, tem
sido as relações familiares. Infelizmente, a consequência mais imediata desse
processo tem se materializado nas violências. Feminicídio. Abandono parental. Infanticídio.
Homicídio de crianças e adolescentes. Abusos físicos, mentais e morais.
No entanto, a referida parcela conservadora da sociedade,
que luta tanto pela manutenção de padrões e comportamentos tradicionais, esforçando-se
ao máximo em invisibilizar e negar os fatos, também, se omite por completo no auxílio
as pessoas afetadas por essas violências. “Cada
um por si e Deus por todos”.
Daí a importância de, em pleno Dia dos Pais,
estabelecer uma reflexão profunda a respeito. O Feminicídio, por exemplo, tem
1338 registros oficiais no ano de 2020. Assassinadas, em sua maioria, por
companheiros, ex-companheiros ou pretensos companheiros, essas mulheres foram
ceifadas de suas famílias e da sociedade, de maneira torpe e cruel.
Entretanto, a perplexidade em torno desses atos,
geralmente, faz esquecer dos órfãos que eles produzem; bem como, das consequências
sociais graves que esta orfandade tende a produzir. Além de uma reprodução
sistemática de violências, essas crianças e adolescentes ficam vulneráveis ao
uso e tráfico de drogas, prostituição, baixa escolarização, e outros problemas.
Assim, se os homens são capazes de chegar a esse
ponto, o de matar suas companheiras, ex-companheiras ou pretensas companheiras
com requintes de barbárie ou na frieza da premeditação, diante de crianças e
adolescentes, seus filhos ou não, onde está o seu senso de humanidade, de paternidade?
Independentemente, dela ser constituída por vias diferentes
da maternidade, há nos dois processos o sentimento comum do cuidado, do
respeito, da proteção, da preservação da vida em todas as suas nuances. Bem,
pelo menos deveria haver. Mas, não é o que se percebe ou se vê.
Aliás, não é à toa a queda consecutiva nos
reconhecimentos de paternidade, no país. O que significa, pelo menos, em torno de 100
mil crianças sem saber quem é o seu pai biológico. Trata-se de um dos vieses do
chamado Abandono Parental ou Afetivo, o qual não implica somente em prejuízos psicoemocionais;
mas, também, em relação a direitos cidadãos fundamentais, porque o nome do pai
na certidão de nascimento possibilita o acesso a pensão alimentícia, herança,
inclusão em plano de saúde, previdência, ...
Esse tipo de abandono é assunto tão grave e
complexo que já gerou inúmeras decisões judiciais no Brasil. Porque, apesar do
afeto e do cuidado não serem moedas de troca, a atitude de abandono atinge
diretamente o Princípio da Dignidade Humana, reafirmado no Estatuto da Criança
e do Adolescente.
Mas, é importante salientar que os esforços de
reparação pela justiça, nem sempre conseguem romper com a compreensão
distorcida e equivocada dos genitores quanto a uma objetificação do ser humano,
na qual ele pode ser negligenciado, descartado, porque, muitas vezes, a repulsa
em relação ao filho é algo insolúvel.
Quanto aos infanticídios, homicídios de crianças e
adolescentes, segundo dados da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), “entre 2010 e 2020, pelo menos 103.149
crianças e adolescentes de até 19 anos morreram no Brasil, vítimas de agressão
[...]Do total, cerca de 2 mil vítimas tinham menos de 4 anos” 1.
Considerando se tratar de dados, ainda,
preliminares, a SBP considera que a Pandemia, nos últimos 2 anos, tenha contribuído
para o cenário de acirramento da violência doméstica, muito embora, os casos de
violência contra crianças e adolescentes sempre existiram, principalmente em
ambiente doméstico ou intrafamiliar.
Contudo, ainda, que os atos não cheguem a se
consumar na tragicidade mortal, os abusos físicos, mentais e morais não deixam
de ser causadores de impacto social relevante na vida de crianças e
adolescentes.
Segundo dados do Disque 100 (Disque Direitos
Humanos), “mais de 95 mil denúncias de violência
contra crianças e adolescentes foram registradas em 2020. Desse total, mais de
14 mil corresponderam a abuso sexual, estupro e exploração sexual. Os registros
ainda incluem violência física e psicológica”; e “[...] o que preocupa é o fato de que a maioria das violações ocorrem
na casa da criança e, ainda, o abusador são pessoas de confiança, na maioria
dos casos” 2.
Por isso, muito cuidado! As aparências enganam!
Toda essa apologia em torno de um modelo de “família
feliz”, de “pais maravilhosos”,
pode esconder uma infinitude de perversidades baseadas na estrutura de poder. Tanto
que o Congresso Nacional alterou “o
Decreto-Lei n.º 2.848, de 7/12/1940, Código Penal, a Lei n.º 8.069, de
13/07/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei n.º10.406, de
10/01/2002, Código Civil, para dispor sobre hipóteses de perda do poder
familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do
mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente” 3.
É fundamental que se entenda que os vínculos afetivos
mais profundos não emergem de doutrinas, de ideologias, de convicções arraigadas
diversas; mas, de algo genuíno que habita em cada ser humano. Ser pai, no
sentido literal da palavra, é decisão pessoal e intransferível; portanto, respaldada
pela consciência, pelo desejo, pelo afeto.
Jamais uma paternidade de caráter protocolar vai
conseguir alcançar a plenitude do seu papel. Daí uma tendência natural das
conjunturas saírem fora de controle, se perderem por caminhos totalmente incorretos
e perigosos. Para ser pai, de fato e de direito, o indivíduo precisa ouvir a si
mesmo, conhecer a si mesmo, não sair por aí, ouvindo e seguindo o que pensam
uns e outros. Paternidade é coisa séria! É para vida inteira.
Diante de tais considerações, esse movimento
desvirtuado sobre a paternidade se explica pelo próprio desvirtuamento humano,
na medida em que as pessoas têm abdicado do exercício do respeito, da empatia,
da responsabilidade mútua.
Na fugacidade do tempo, elas pensam que emoções e
sentimentos atrapalham, e se armam de uma postura indiferente, fria, totalmente
individualista; o que faz, então, esquecerem-se de que a paternidade é uma
extensão delas mesmas.
Que a paternidade se faz maior do que o próprio percentual
genético presente no DNA de suas células reprodutivas, porque traduz o ato narcísico
de reconhecer no outro os reflexos de sua própria imagem e comportamento,
independentemente, se bons ou ruins.
No fim das contas, é a paternidade que confere ao
ser humano um pouco da eternidade. Sem a paternidade, as gerações não se
consolidam. Razão pela qual, é necessária consciência sobre a dimensão do que
isso realmente significa, antes de sair por aí, dispersando seus
espermatozoides, aleatória e descompromissadamente. Pois, nunca se sabe, quais consequências
podem emergir das irresponsabilidades voluntárias e involuntárias de um homem. Bora
começar a pensar!