segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Atenção! A Aporofobia está por aí!


Atenção! A Aporofobia está por aí!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dar o nome certo para as coisas e as circunstâncias, não significa somente admitir que as reconhecemos; mas, particularmente, o bom senso em compreender que não o fazer, em nada, subtrai ou apaga sua existência. Sei que estes são tempos de negação, de cancelamento, de invisibilização; no entanto, esses movimentos não passam de tentativas desesperadas de abstenção das responsabilidades cotidianas que a vida nos impõe.

Por isso, diante do rigor que as conjunturas têm colocado à população brasileira, não há mais espaço para lançar sob os tapetes da nossa história, mais uma vez, o sentimento aporofóbico que persiste entranhado na alma e no inconsciente coletivo de milhares de cidadãos.

Estou me referindo ao “repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos” 1. Um termo criado pela escritora e filósofa espanhola, Adela Cortina, para definir o ódio aos indigentes e a aversão aos desfavorecidos. E tende a acontecer, sobretudo, quando encontra respaldo nos discursos e práticas de organizações políticas e econômicas.

Então, traçando um ponto de convergência entre o conceito e a atual realidade brasileira, percebo uma disparada rumo ao fracasso da coexistência social, a partir da formulação equivocada e desconexa das políticas públicas, no enfrentamento das desigualdades históricas do país. De modo que a exacerbação desses discursos não apenas cria um mecanismo de entretenimento da população, as pessoas se atém a fermentar essas narrativas em si mesmas e destilar seu ódio em manifestações inflamadas; mas, evita que sejam tomadas atitudes precisas a fim de resolver as verdadeiras demandas.

Geralmente, a aporofobia se transforma em mecanismo de justificativa sociogovernamental para as mazelas sociais, por meio da culpabilização das conjunturas pelos próprios desfavorecidos, como se estivessem em suas mãos todas as soluções capazes de aniquilar com as desigualdades do mundo. Nesse sentido, cria-se em torno deles um estereótipo de indolência, de incapacidade resolutiva, de autopiedade, como se estivessem resignados à espera de um auxílio, de uma esmola, de um donativo. Por isso, eles se contentariam em permanecer na indignidade por tanto tempo.

Entretanto, esse “verniz retórico” não adere, porque a própria dinâmica das conjunturas socioeconômicas do país descontrói os argumentos, a partir das oscilações estatísticas representativas desses grupos. A questão é simples, ou se criam propostas de políticas públicas bem planejadas e exequíveis, voltadas para mitigação e/ou resolução de desigualdades crônicas, ou se permite crescer indefinidamente a legião de vulneráveis e desfavorecidos.

A pobreza, a miséria, e em muitos casos, a migração ou deslocamento geográfico, são a materialização do fracasso no que diz respeito ao cumprimento da própria Constituição Federal vigente, ou seja, “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” 2. E não há distinção de direitos, porque, também, o mesmo documento manifesta que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (Artigo 5º). Além de abjeta, a aporofobia brasileira vem se sustentando, então, nas mais diversas manifestações de ilegalidade, na inconstitucionalidade, por meio da inação sociogovernamental.

Aliás, nos últimos dias, muito se comentou sobre o discurso de uma parlamentar estadual paulista, contrária ao trabalho assistencial de um padre na conhecida “Cracolândia”, região da Luz, em São Paulo. Apesar de sua formação jurídica, ela considera esse tipo de assistência social um “apoio à criminalidade” 3. Há décadas, o trabalho do padre Júlio Lancellotti junto à população de rua, marginalizada e abandonada pelo poder público, é motivo de discórdia, dada a sua combatividade e persistência cristã no auxílio aos vulneráveis.

A questão é que, enquanto ele cumpre o seu papel dentro das possibilidades mínimas que lhe é possível, o poder público se esquiva de seu próprio trabalho, no sentido de enfrentar com responsabilidade e seriedade os desafios existentes na complexa teia de mazelas sociais. As drogas, por exemplo, não são uma questão exclusiva da polícia. Drogas são um problema de Saúde Pública, de Economia, de Educação, de Cultura, enfim... Mas, a insistência em dissociar o cotidiano, como se pudessem colocar cada assunto em uma caixinha e resolver um de cada vez, posterga as soluções e as lança ao campo da impossibilidade eterna.

Esse é o ponto nevrálgico. Não se percebe nenhum esforço, ou empenho, efetivos para solucionar o que quer que seja. A sociedade se sujeita a viver de promessas, de discursos, para, também, se abster de agir, de pensar, de questionar,... Lhes parece mais aprazível ser aporofóbico do que se ajuntar aos “padres Júlio” que existem por aí, cuja fé está alicerçada na prática cristã e não no palavrório. Assim, podem cultivar o seu ódio, o seu desdém, a sua raiva, o seu preconceito, sem precisar levantar do sofá, ou doar o seu tempo, ou dispor de algum dinheiro, ou dedicar sua atenção.

Diante dessas considerações, a reflexão do escritor e professor ítalo-americano, Leo Buscaglia, diz muito. “[...]você só pode dar aos outros aquilo que possui. Se você é ignorante, ensina sua ignorância; portanto, tem que trabalhar para a sua sabedoria. Se estiver acorrentado, ensinará o seu preconceito, e, portanto, tem que trabalhar pela sua liberdade pessoal. Tudo parte de você. Se eu faço alguma coisa por mim, faço-o por você. Quanto mais próximo eu chegar de me amar, mais amor terei para lhe dar”. Se o mundo quiser romper, verdadeiramente, com suas “fobias”, terá que entender que o trabalho não é dele; mas, de cada um de nós.