Águas que
lavam ...
Por Alessandra
Leles Rocha
Aos que já leram ou assistiram ao
filme ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA 1, de José
Saramago, não é difícil encontrar uma similaridade com a realidade das
tragédias contemporâneas. Afinal de contas, o caos desnuda o ser humano nas
suas mais profundas camadas. Do altruísmo à violência é possível transitar por
toda essa dinâmica. Daí a necessidade de parar, olhar, pensar e refletir a
respeito.
O Brasil vive nos últimos dias
uma experiência traumática de evento extremo do clima. O Rio Grande do Sul
contabiliza 388 municípios afetados pela inundação causada por chuvas
torrenciais que atingiram o estado, desde a última semana. Até o momento já
foram comunicadas oficialmente 90 mortos, 132 desaparecidos, 361 feridos e
1.367.506 cidadãos afetados.
Cidades foram submersas pelas
águas. A energia elétrica precisou ser interrompida; bem como, o abastecimento
de água. Há infestação de ratos e baratas em razão do refluxo de esgoto desencadeado
pela força das águas pluviais. As imagens dão conta de uma terra,
literalmente, arrasada.
Pessoas são resgatadas e levadas
para abrigos, sob um misto de sentimentos objetivos e subjetivos que impactam
diretamente a sua percepção dos fatos. Em síntese, o que se vê é a vida
interrompida de maneira brutal, indigerível. E como na obra de Saramago, a tragédia
no Rio Grande do Sul ressalta a desumanização que atingiu milhares de pessoas.
Elas, agora, são números, estatísticas,
dentro da contabilidade institucional. Porque as suas referências identitárias
foram destruídas, levadas pela força repentina de águas lamacentas. O que lhes
resta é lutar pela sobrevivência dentro dos limites possíveis impostos pela
realidade.
Isso significa que diante da
crise, do colapso, da ruína, que se instalou a partir da chegada de uma
catástrofe climática, todos os modelos e padrões sociais foram desconstruídos e
submetidos abruptamente a uma organização fora do comum. As experiência individualista
foi transformada em experiência coletiva.
E se por um lado esse cenário
possibilita a expressão da solidariedade, da generosidade, da empatia, da alteridade,
por outro, ele também é o lugar do egoísmo, do ódio, da rivalidade, da
hostilidade, da desumanidade. Simplesmente, porque diante das adversidades o
ser humano não reage, necessariamente, da mesma maneira.
Em nome da sobrevivência ou do
extravasamento das emoções e sentimentos, que já estavam, de algum modo, reprimidos
anteriormente, há quem se permita abdicar do senso ético e moral, estabelecendo
um verdadeiro vale-tudo.
Não é à toa que já se fala em
saques de casas e comércios, roubos de helicópteros, barcos e jet-ski
envolvidos nas operações de resgate, subtração de doações de roupas, alimentos
e outros artigos de necessidade básica, solicitações de contribuição para
contas não oficiais; bem como, uma verdadeira avalanche de Fake News.
Infelizmente, apesar das tragédias
nivelarem a todos a um mesmo patamar conjuntural, a resposta de muitos vem da
incivilidade, da barbárie, da selvageria. Diante da mais completa ausência de
certezas, muitos seres humanos se percebem sem saída, acuados, fracos, diminuídos;
de modo que, o ataque lhes parece a melhor defesa. Ora, a realidade é tão amarga,
cruel, difícil, que não se vê possibilidade de enfrentá-la adequadamente, de
peito aberto. Então, se utiliza desses subterfúgios.
Portanto, as catástrofes carregam
em si um traço distópico. Uma ruptura repentina dos padrões, dos protocolos,
dos modelos, dentro de uma sociedade, passa sim, a organizá-la de uma maneira
opressiva, assustadora, precária e sofrida. De modo que se torna necessária a existência
de pessoas capazes de ver, a partir da lucidez e do afeto, para que seja
possível acomodar a construção de uma nova realidade.
Depois de algo tão severamente
impactante, parece claro que nada será como antes; afinal, foram rompidas
amarras sociais fundamentais, em nome da sobrevivência. Assim, o papel de quem
vê, o desenrolar dos acontecimentos, se torna fundamental.
Observem, então, que “O egoísmo
pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do
cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental
que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada
momento, for susceptível de servir os nossos interesses” (José Saramago –
Diário de Notícias, 2009).
Pois é, falamos que o impacto das
tragédias, das catástrofes, das calamidades, é repentino. Mas, isso não quer
dizer que em si mesmas elas não tenham sido tecidas por longos e tenebrosos
invernos. O fato de não termos nos dado conta desse processo, por opção ou por
mera ignorância, nada disso muda o rumo da história. Direta ou indiretamente, somos
sempre afetados.
Assim, a grande verdade que temos
bem diante do nariz é que, em algum momento de nossa existência, haveremos de
nos perguntar: “As pálpebras limpam os olhos das poeiras. Que pálpebras
limpam as poeiras do coração?” (Mia Couto – Na berma de nenhuma estrada, 2001).
1 SARAMAGO,
J. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. -
https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535930313/ensaio-sobre-a-cegueira-nova-edicao
Ensaio sobre a Cegueira – Trailer Oficial legendado em Português - https://www.youtube.com/watch?v=o4Fyw01Qokw