terça-feira, 7 de maio de 2024

Águas que lavam ...


Águas que lavam ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Aos que já leram ou assistiram ao filme ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA 1, de José Saramago, não é difícil encontrar uma similaridade com a realidade das tragédias contemporâneas. Afinal de contas, o caos desnuda o ser humano nas suas mais profundas camadas. Do altruísmo à violência é possível transitar por toda essa dinâmica. Daí a necessidade de parar, olhar, pensar e refletir a respeito.

O Brasil vive nos últimos dias uma experiência traumática de evento extremo do clima. O Rio Grande do Sul contabiliza 388 municípios afetados pela inundação causada por chuvas torrenciais que atingiram o estado, desde a última semana. Até o momento já foram comunicadas oficialmente 90 mortos, 132 desaparecidos, 361 feridos e 1.367.506 cidadãos afetados.

Cidades foram submersas pelas águas. A energia elétrica precisou ser interrompida; bem como, o abastecimento de água. Há infestação de ratos e baratas em razão do refluxo de esgoto desencadeado pela força das águas pluviais. As imagens dão conta de uma terra, literalmente, arrasada.

Pessoas são resgatadas e levadas para abrigos, sob um misto de sentimentos objetivos e subjetivos que impactam diretamente a sua percepção dos fatos. Em síntese, o que se vê é a vida interrompida de maneira brutal, indigerível. E como na obra de Saramago, a tragédia no Rio Grande do Sul ressalta a desumanização que atingiu milhares de pessoas.

Elas, agora, são números, estatísticas, dentro da contabilidade institucional. Porque as suas referências identitárias foram destruídas, levadas pela força repentina de águas lamacentas. O que lhes resta é lutar pela sobrevivência dentro dos limites possíveis impostos pela realidade.

Isso significa que diante da crise, do colapso, da ruína, que se instalou a partir da chegada de uma catástrofe climática, todos os modelos e padrões sociais foram desconstruídos e submetidos abruptamente a uma organização fora do comum. As experiência individualista foi transformada em experiência coletiva.

E se por um lado esse cenário possibilita a expressão da solidariedade, da generosidade, da empatia, da alteridade, por outro, ele também é o lugar do egoísmo, do ódio, da rivalidade, da hostilidade, da desumanidade. Simplesmente, porque diante das adversidades o ser humano não reage, necessariamente, da mesma maneira.  

Em nome da sobrevivência ou do extravasamento das emoções e sentimentos, que já estavam, de algum modo, reprimidos anteriormente, há quem se permita abdicar do senso ético e moral, estabelecendo um verdadeiro vale-tudo.

Não é à toa que já se fala em saques de casas e comércios, roubos de helicópteros, barcos e jet-ski envolvidos nas operações de resgate, subtração de doações de roupas, alimentos e outros artigos de necessidade básica, solicitações de contribuição para contas não oficiais; bem como, uma verdadeira avalanche de Fake News.

Infelizmente, apesar das tragédias nivelarem a todos a um mesmo patamar conjuntural, a resposta de muitos vem da incivilidade, da barbárie, da selvageria. Diante da mais completa ausência de certezas, muitos seres humanos se percebem sem saída, acuados, fracos, diminuídos; de modo que, o ataque lhes parece a melhor defesa. Ora, a realidade é tão amarga, cruel, difícil, que não se vê possibilidade de enfrentá-la adequadamente, de peito aberto.  Então, se utiliza desses subterfúgios.

Portanto, as catástrofes carregam em si um traço distópico. Uma ruptura repentina dos padrões, dos protocolos, dos modelos, dentro de uma sociedade, passa sim, a organizá-la de uma maneira opressiva, assustadora, precária e sofrida. De modo que se torna necessária a existência de pessoas capazes de ver, a partir da lucidez e do afeto, para que seja possível acomodar a construção de uma nova realidade.

Depois de algo tão severamente impactante, parece claro que nada será como antes; afinal, foram rompidas amarras sociais fundamentais, em nome da sobrevivência. Assim, o papel de quem vê, o desenrolar dos acontecimentos, se torna fundamental.

Observem, então, que “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses” (José Saramago – Diário de Notícias, 2009).

Pois é, falamos que o impacto das tragédias, das catástrofes, das calamidades, é repentino. Mas, isso não quer dizer que em si mesmas elas não tenham sido tecidas por longos e tenebrosos invernos. O fato de não termos nos dado conta desse processo, por opção ou por mera ignorância, nada disso muda o rumo da história. Direta ou indiretamente, somos sempre afetados.

Assim, a grande verdade que temos bem diante do nariz é que, em algum momento de nossa existência, haveremos de nos perguntar: “As pálpebras limpam os olhos das poeiras. Que pálpebras limpam as poeiras do coração?” (Mia Couto – Na berma de nenhuma estrada, 2001).



1 SARAMAGO, J. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. - https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535930313/ensaio-sobre-a-cegueira-nova-edicao

Ensaio sobre a Cegueira – Trailer Oficial legendado em Português - https://www.youtube.com/watch?v=o4Fyw01Qokw